terça-feira, 27 de outubro de 2009

René Girard e o Mecanismo Mimético.


Eis aqui alguns trechos de uma longa e esclarecedora entrevista com o Antropólogo francês René Girard. Ela constitui o livro Um Longo Argumento Do Principio Ao Fim. Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello, tradução: Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro:Topbooks, 2000. João Cezar e Pierpaolo assistiram um seminário ministrado por Girard na Universidade de Stanford em 1995. Depois, a dupla propôs ao pensador francês participar de uma série de conversas gravadas, entre os anos de 1995 e 1999, na Universidade de Stanford e depois na residência do antropólogo. Trata-se de uma excelente e didática introdução aos conceitos principais de seu pensamento. Apreciem minha seleção, um tanto arbitrária, ilustrada pelas pinturas de Caravaggio e a gravura "Sending Out the Scapegoat" de William James Webb.


"A expressão 'mecanismo mimético' é empregada num sentido amplo, por ser usada para designar o processo como um todo, o que inclui o desejo mimético e a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua resolução pelo bode expiatório. A expressão 'desejo mimético' refere-se apenas ao desejo que é sugerido por um modelo. Para mim, o desejo mimético é o desejo 'real'. Deveríamos distinguir desejos de apetites. Apetites envolvem coisas como comida e sexo, que não estão necessariamente ligadas a desejos, pois têm um fundamento biológico. Todo apetite, no entanto, pode ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que exista um modelo – a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do que seja o desejo mimético."

"O primeiro a definir maravilhosamente bem esse tipo de rivalidade foi Santo Agostinho nas Confissões. A cena por ele descrita é a de duas crianças amamentadas pela mesma ama. As duas disputam o leite dela, apesar de haver mais do que o suficiente para ambas. Cada uma quer todo o leite para si, no intuito de impedir a outra de obtê-lo."

"O que vem a ser o desejo? Eis a verdadeira questão. O mundo moderno é ultra-individualista, quer que o desejo seja estritamente individualizado: ‘o meu desejo é pessoal, único; não há outro como o meu’. Noutras palavras, meu apego ao objeto do desejo é de certo modo predeterminado. E se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais diferença entre instinto e desejo. Ou seja, se ‘meu’ desejo tem sua origem na minha individualidade, então, ele é fixo – característica dos instintos, que não são nada individuais! A mobilidade do desejo, em contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, decorre da imitação. Aí reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade, com seus pares. Constato isso sempre que vejo meus netos disputarem o mesmo brinquedo, apesar de haver outros idênticos à disposição deles."


"Atribuo uma imensa importância ao ultimo mandamento do ‘Decálogo’: ‘não cobiçarás a casa do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem nada que lhe pertençe’ (Ex 20,17). Vemos aqui, ao que tudo indica, o nascimento da idéia de desejo mimético, pois a lei busca enumerar os objetos que não devemos cobiçar. Todavia, antes que conclua essa lista de objetos, é como se constatasse que não faz sentido lista-los, por serem demasiado numerosos: os limites fixados são o próximo e ‘tudo o que pertence ao próximo’. Essa é a proibição final do décimo mandamento. Nunca tinha reparado nisso antes de escrever Je vois Satan tomber commel’éclair. Esse mandamento é uma proibição do desejo mimético. Mas o que precede o décimo mandamento? ‘Não matarás. Não cometerás adultério. Não furtarás. Não levantarás falso testemunho contra teu próximo.’ (Ex 20, 13-16). Trata-se, portanto, de quatro crimes contra o próximo: mata-lo, roubar-lhe a mulher, as propriedades, difama-lo. Qual é a razão desses atos? O quinto mandamento dessa seqüência e último do decálogo revela a causa: desejo mimético. As palavras finais: ‘tudo o que pertence ao próximo’ atribuem a este um lugar privilegiado: ele vem primeiro; constitui, portanto o modelo. E aí está noção de desejo mimético! Quando os Evangelhos falam em termos de imitação e não proibição, estão seguindo a orientação contida no décimo mandamento. A maioria das pessoas erroneamente supõe que, nos Evangelhos , a imitação é uma só: imitação de Jesus, logo imitação que priva o indivíduo de seu próprio desejo não imitativo. Mas não é verdade! Só priva do skándalon, implicado na rivalidade mimética. Significa, pois, a escolha de um modelo que resguarda os indivíduos da rivalidade mimética, que a inibe, ao invés de encorajá-la. O modelo que estimula a rivalidade mimética não é pior do que nós, talvez seja até muito melhor, mas ele deseja do mesmo modo que desejamos, egoística, avidamente. E imitamos o egoísmo dele, que é um mau modelo para nós, e vice-versa."

"Se o desejo é mimético, o sujeito deseja o mesmo objeto que seu modelo. Se o sujeito deseja o objeto possuído ou desejado pelo modelo, só há duas possibilidades: ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou pertence a outro mundo. Uma vez que estejamos num outro mundo, não podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado, só podemos ter com esse modelo uma relação que, em Mesonge romantique, chamei de mediação externa. Com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação positiva. Se nos achamos no mesmo mundo que o modelo, então o objeto que ele deseja está ao nosso alcance e a rivalidade irrompe. Chamei a este tipo de rivalidade mediação interna. É uma rivalidade que se reforça por si mesma. Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica: pois, à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo; imitador de seu imitador."


"Em tal situação, caminha-se sempre para uma simetria maior e, consequentemente, para mais conflito, já que a simetria só pode produzir duplos. Os duplos surgem com o desaparecimento do objeto, e, no calor da rivalidade, os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados, idênticos. A crise mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais. Essa indiferenciação se torna possível pelo desaparecimento do objeto."

"Esse, aliás, é o sentido da palavra skándalon. Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão disputando um mesmo objeto, então, deve tratar-se de alguma coisa pelo qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade mimética somente cresce. Enquanto isto acontece, o objeto também tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para que a mimésis se torne puramente antagonística, o objeto precisa desaparecer. Quando isso ocorre, temos a proliferação dos duplos e a emergência da crise mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimésis se converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne cumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada comunidade, até que o processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o ‘bode expiatório’. Numa descrição esquemática, eis como funciona o mecanismo mimético. O mecanismo expiatório encerra a crise, já que a culpa é transferida unanimemente para o bode expiatório. A importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da violência contra a vítima."

"Vale recordar que, na Bíblia, vemos os primeiros exemplos de resistência ao contágio mimético, resistência essa oferecida por uma minoria que expõe e denuncia o mecanismo do bode expiatório. É também o caso dos discípulos de Jesus; o que não deixa de surpreender, pois, a princípio, eles aderem ao arrebatamento mimético. A adesão mais notável é a de Pedro, cuja negação manifesta sua anuência ao mecanismo do bode expiatório e tem grande importância teórica."




"Cabe ainda assinalar que o mecanismo mimético é particularmente óbvio no rito. No entanto, os antropólogos não atinam por que razão o rito só começaria com uma desordem, com uma deliberada crise cultural. Isso acontece porque a comunidade reencena a crise mimética que leva ao mecanismo do bode expiatório, na esperança de assim reativar seu poder reconciliador."

"Permitam-me destacar mais uma vez o que é o mecanismo mimético. Geralmente utilizo a expressão ‘mecanismo mimético’ para referir-me ao mecanismo do bode expiatório. Noutras palavras, quando tende a tornar-se oportunista, o desejo mimético orienta-se paradoxalmente por modelos substitutos, antagonistas substitutos. O paradoxo do desejo mimético consiste no fato de parecer solidamente fixado num objeto específico, quando, na verdade, é inteiramente oportunista. A era dos escândalos na qual vivemos corresponde a um deslocamento do desejo. Um grande skándalon coletivo equivale ao pequeno skándalon entre dois vizinhos multiplicado muitas vezes. Quando o skándalon em pequena escala se torna oportunista, tende a unir-se ao maior skándalon ali em curso, tranqüilizando-se pelo fato de sua indignação ser partilhada por muitos. Nesse momento, a mimésis se torna ‘lateral’ em vez de voltar-se apenas para o vizinho, e isso é sinal de crise, de contágio crescente. O skándalon maior devora os menores, até restar um único escândalo, uma única vítima – assim funciona o mecanismo do bode expiatório. Decerto existe uma formulação melhor para isso, embora ainda não a tenha encontrado! Há um magnífico exemplo desse fenômeno em Julio César, de Shakespeare: o recrutamento mimético dos conspiradores contra César. Na peça, Ligário, um dos conspiradores está muito doente, mas a idéia de matar César o restabelece, e seu ressentimento difuso se concentra. Ele esquece tudo, pois César passa a ser o alvo fixo de seu ódio. A partir daquele momento, pode odiar a César: que progresso! Infelizmente, nove entre dez políticos agem assim. O chamado espírito partidário não é senão isso. Escolha todos os demais como bode expiatório: que comodidade, que alívio! Nietzsche trata disso, mas não se pode dizer que tenha concebido uma teoria do bode expiatório; antes a evita, por causa de suas conotações religiosas, que se recusa a levar em consideração."
"Pode-se dizer que o desejo mimético esteve sempre presente, não se limitando apenas à era moderna?
Sim, e é fundamentalmente bom, por ser indispensável à humanidade do homem, por assim dizer."
"Sempre que um apetite se transforma em desejo, entre em cena um modelo que o afeta?
Não se trata de uma verdade absoluta. Por exemplo, segundo os marxistas, certos sentimentos surgem numa classe social e são por isso especificamente sociais. Alguns marxistas afirmam que o desejo mimético é uma coisa aristocrática, uma forma de luxo. Mas é claro! Na Idade Média, só a nobreza podia dar-se a esse luxo. O sistema da cavalaria constitui um modo de glorificar o desejo mimético. Cervantes compreendeu isso muito bem. Num mundo de terrível carência, o homem comum sem dúvida só tinha apetites. Na Idade Média, é o que atestam os Fabliaux, os quais trata sobretudo de apetites físicos. Por isso, não digo que toda violência venha do desejo mimético: no plano dos apetites, as pessoas lutam pelo pedaço de pão que de fato lhes falta. Portanto, os marxistas estão parcialmente certos. Se a teoria mimética negasse a objetividade de certas lutas, seria falsa, mascararia a existência e suas necessidades básicas. Quanto mais cruel e selvagem for uma sociedade, mais violência ocorrerá nela, em nome da satisfação de tudo o que é pura necessidade. Até mesmo no nível da necessidade real, em que a rivalidade começa por causa de um objeto, esta é impregnada pela mimésis. Há sempre determinada mediação social envolvida no processo. Não se deve excluir a possibilidade de uma violência inteiramente desvinculada de qualquer desejo mimético. Mas a maioria de nós não vive num mundo de terrivel carência."

"Quando há uma única vítima e ela é destruída, não se tem a vingança como reação, porque todos hostilizavam e culpavam essa única vítima. E, assim, alcança-se ao menos um momento de paz e silencio."

"Portanto o mecanismo do bode expiatório precede qualquer espécie de ordem cultural. É precisamente o que permite o desenvolvimento de uma ordem cultural."

"Exato! A pergunta é: de que modo? E a resposta está no rito: graças a ele, uma ordem cultural pode desenvolver-se. O rito equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação. O rito vira instituição reguladora das crises."

"Há uma experiência de racionalidade nos ritos. Os membros de uma dada comunidade interpretam a sua própria experiência passada em matéria de conflito e reconciliação e acham-se numa posição tal, que não podem interpretá-la de outra maneira. Isto é, uma vez que não entendem o mecanismo mimético, terminam vendo o restabelecimento da paz como decorrência de terem vitimado o indivíduo que a destruiu. Assim, o bode expiatório, que acabaram de matar, é considerado responsável pela paz restaurada e torna-se sagrado. Essa é a idéia básica de La violence et le sacré; noutras palavras, a hipótese de assassinato fundador como origem do processo de hominização, isto é, o próprio início do que viria a ser a cultura humana."


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Prazeres Sonoros do Centro de Música Barroca de Versailles.




Encontrei este CD num sebo no centro de São Paulo. Vinha encartado numa revista francesa especializada em música erudita, chamada Classica (edição de novembro de 2000, volume 27).
É uma pequena amostra de música barroca.
1. Henry Desmarest (1661-1741): Messe à deux choeurs: Kyrie 4:32
2. Henry Desmarest (1661-1741): Grand Motets Lorrains: Usquequo Domine 6:48
3. Estiene Moulinié (v. 1600-v.1669): L´Humaine Comédie: Consert de différents oyseaux 9:34
4. François Couperin (1668-1773): Pièces de clavecin: Tierce entaille. 2:57
5. Giovanni Battista Pergolesi (1701-1736): Stabat Mater: Stabat Mater 3:45
6. Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736): Stabat Mater: Quando Corpus Morietur - Amen 3:32
Na capa, uma pintura de Jean-Marc Nattier (1685-1766) - Terpsichore, Musa da Música. Pintura à óleo, California Palace of the Legion of Honor.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Deixa ela entrar (Låt den räte komma in/Let the Right One In), 2008 Direção: Tomas Alfredson









Assisti ontem o filme sueco "Deixa Ela Entrar". Magnífico em vários aspectos. Meu exigente cineasta interior/imaginário tem poucos reparos a fazer. O cinema do país de Victor Sjostrom (1879-1960) e Ingmar Bergman (1918-2007) permanece vigoroso, apresentando material de excelente qualidade.

Deixando de lado as polêmicas a respeito de seu gênero, "terror", "suspense com drama", ou ainda "drama com elementos de terror". Como se este fosse algo indigno para falar de assuntos mais densos. Temos aqui um "filme de formação" sobre as dores de crescimento da adolescência, cujo eixo é a questão da amizade e da vingança. Amizade que enfrenta a diferença e o medo entre as pessoas. O fantástico serve aqui como veículo de exposição das desventuras da condição humana.




Oskar é um garoto de 12 anos e vive com a mãe num conjunto de apartamentos, na periferia de Estocolmo no começo da década de 1980. Os pais são separados. A Suécia está sob um governo de caráter socialista.
A vida familiar do menino é um tanto "largada". A mãe oscila entre certa rigidez e indiferença no trato com o garoto, seguramente relacionada a sua intensa jornada de trabalho. De qualquer forma não está isenta de afeto. O pai é mais carinhoso, ainda que um tanto distante. Vive numa fazenda, onde Oskar vai visitá-lo regularmente. Mas estas visitas também acabam ficando enfadonhas.

Introvertido, leitor de livros policiais e de terror (subentendemos assim, pois Oskar afirma que "lê apenas livros", também gosta de colecionar recortes sobre crimes horrendos) o menino vive sofrendo o que hoje conhecermos por "bullying" por parte de colegas valentões. Nunca revida as agressões, sofrendo calado. Todavia, em seu íntimo maquina vinganças imaginárias, brincando com seu canivete...

A vizinhança anda temerosa com uma série de crimes, onde pessoas são amarradas e tem seu sangue drenado.



Certa noite, brincando solitário no pátio do apartamento, Oskar conhece Eli, garota da mesma idade, que havia se mudado há pouco com Hakan, homem que aparenta ser seu pai, num apartamento ao lado... Ele estranha seu cheiro e o fato dela não sentir frio. Este primeiro contato termina de forma meio rude. Noutra noite, as arestas estão mais aparadas, e Oskar empresta seu cubo mágico e, se surpreende no dia seguinte, por ela tê-lo remontado corretamente. Dessa forma a amizade vai se solidificando. Os diálogos são ternos, simples e bem escritos, apropriados a crianças de 12 anos de idade, em nada soando forçado ou artificial. Oskar passa um tempo extra na escola estudando código morse e entrega para ela uma folha com algumas mensagens. E depois "conversam" entre si, batendo levemente na parede.
Certa hora Eli percebe que Oskar está com o rosto ferido. Ele conta a verdade (algo que sempre esconde da mãe, as agressões dos outros meninos). A nova amiga recomenda, com toda convicção, que ele "revide, com mais força ainda". Dito e feito. Numa excursão da escola, perto de um lago Oskar golpeia seu rival com um pedaço de madeira, sangrando seu ouvido. Por uns tempos não é incomodado.




Entretanto, Oskar acaba descobrindo a natureza inumana de Eli.
Seguindo um costume arcaico para selar a amizade, Oskar, num quarto escuro, fere a mão com o canivete e convida Eli a misturar o seu sangue com o dele. O resultado é desastroso: Eli sai correndo para não concretizar sua pulsão vampírica.
Após este arrebatamento, Oskar vai se recompondo seus sentimentos e a acolhe novamente como amiga. Embora não aceite de todo a necessidade que ela tem de tirar vidas. Implacável, ela pede que ele se coloque no lugar dela por algum tempo. E ele tenta fazer...
Da genealogia de Eli, praticamente nada sabemos. Apenas que ela guarda pequeno tesouro de jóias e objetos antigos. O dinheiro parece ser um mal necessário. Seu modus operandi é sutil. Nunca mostrado explicitamente. Apenas seu rosto belo e impiedoso coberto de sangue


O roteiro não glamouriza, nem deprecia o vampirismo. Apenas atesta sua realidade, desvelando a mecânica vampírica, modo com a qual Eli aprende a sobreviver por séculos e séculos. De certa maneira, os mortos-vivos acabam involuntariamente sendo os "mortais/normais/adultos", pessoas cujas falhas e omissões as fazem olhar para dentro de si, mas sempre de forma hesitante, sem uma atitude mais decisiva. Como se os ataques de Eli adiantassem, como se fossem um golpe de misericórdia, um processo de apodrecimento extremamente lento. Novamente, o fantástico surge como mediador, oferecendo o processo da miséria humana, a incomunicabilidade entre as pessoas, a necessidade de seguirmos em frente, apesar de tudo...

A narrativa elíptica do filme é lenta e segura, colocando os elementos aos poucos, sem sobrecarregar o espectador de informações desnecessárias. Não há necessidade de caninos escancarados. Logo sabemos da sina de Hakan: o responsável pelos assassinatos, servo ( e antigo amante ?), depois de uma discussão com Eli. Os poucos (e eficientes) efeitos digitais são acionados em momentos estratégicos. Assim como sequências sangrentas, também dentro do contexto.
Austeridade escandinava emoldurada por uma fotografia gélida, embaçada, que destaca o inverno agreste, a solidão do bosque, dos apartamentos anônimos, o hospital asséptico, a piscina do desfecho final...

O roteiro, sem nenhum lugar-comum, é de John Ajvide Lindqvist, que adaptou seu próprio livro que, segundo alguns, seria mais sombrio que a versão filmada, que o talentoso diretor Tomas Alfredson transformou numa experiência sensível e assustadora ao mesmo tempo. Os protagonistas mirins, Lina Leandersson e Kåre Hedebrant estão soberbos, em especial a menina, centro do filme.
Hollywood já comprou os direitos autorais. Duvido que irá atingir a excelência cinematográfica do original. Resta torcer para que o estrago não seja grande. Talvez isto anime alguma editora brasileira a traduzir a obra.