sábado, 31 de dezembro de 2011

Daniel Piza (1970-2011)


Pegou-me de surpresa o falecimento do escritor e jornalista Daniel Piza, ontem à noite, vitimado por um AVC. Acompanhava seus artigos dominicais e blog no jornal Estado de São Paulo. O excesso de palavras só atrapalha. Assim como minhas divergências em certos aspectos são secundárias nesse momento. Serei breve. Fica um grande exemplo de independência e liberdade de espírito, num tempo onde o senso crítico desvanece em meio à proliferação de lugares-comuns, superficialidades e sectarismos que amesquinham o debate de ideias. Uma escrita elegante, precisa e espirituosa, sem nenhuma palavra desperdiçada. Um digno representante da tradição iluminista e do racionalismo crítico à maneira de Karl Popper. Soube, corajosamente dar justo valor à cultura erudita acumulada por séculos e séculos  e também as ciências, igualmente importantes na formação do sujeito culto e livre,sem manifestar, no entanto,  desprezo olímpico pela cultura pop (ou de massas, para quem preferir), reconhecendo o que pode existir de significativo em suas manifestações. Há certo parentesco intelectual do colunista do Estadão com José Guilherme Merquior (1941-1991), outro autor de trajetória precocemente interrompida,cuja vasta obra merece ser avaliada sem sectarismo ideológico.
Nossa cena cultural perdeu alguém que contribuiu para um mundo menos vulgar, ressentido e ignorante.

Meus sentimentos à seus familiares, amigos e leitores.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Antonio Vivaldi - Verão




Iconografia: Francesco Albani (1578-1660) Verão 1616-1617;
Herman Van Swanevelt (1603/1604?-1655) Paisagem com ninfas se banhando.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Nueva España: Close Encounters in the New World, 1590-1690.



Caros leitores, disponibilizo para download um precioso cd de minha coleção: Nueva España. Close Encounters in the New World, 1590-1690. Trabalho de engenho e arte realizado em 1994 por Joel Cohen (um dos maiores autoridades no campo da performance em musica medieval e renascentista), pelo ensemble Boston Camerata, entre outros grupos.

Constitui uma amostra da produção musical feita na América Espanhola entre os séculos XVI e XVII. Seus compositores, sejam nascidos no Novo Mundo ou naturais da Metrópole agregaram elementos indígenas e africanos. Trata-se de uma arte mestiça, resultado do encontro, violento, por vezes mais pacífico, mas que provocou reformulações permanentes nestas sociedades. Quem foi tocado por este processo complexo e imprevisível e complexo pertence a vários mundos numa só existência (para usar uma feliz expressão de Serge Gruzinki, no seu estudo O Pensamento Mestiço, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.).

Do mesmo modo que na América Portuguesa, predomina uma tonalidade sacra, nas composições que chegaram aos nossos dias.

Nas palavras do próprio Joel Cohen:

"A Era dos Descobrimentos! Em nosso tempo de escola, foi-nos dito que era uma época de heróis, e de grandes aventuras. Mais tarde, viemos a entender o terrível sofrimento e injustiça que os espanhóis tinham feito em sua unidade para a fama, glória e riquezas. Hoje em dia, a nossa consciência renovada do lado escuro da Conquista eliminou para sempre os demasiados simples, lugares-comuns dos livros da velha escola.

Esta gravação, no entanto,foi feita com uma intenção diversa: ele implora por atenção para os locais de encontro de luz e beleza que de fato existiram naqueles terríveis e rígidos séculos. Os índios (e, logo em seguida, os imigrantes africanos) foram imediatamente atraídos para a música que ouviram dos espanhóis. E os europeus ficaram fascinados e, muitas vezes influenciados, pela surpreendente, nova sonoridade de outras culturas.

Tão entusiasmado era a resposta dos índios a polifonia europeia para a reprodução de guitarras, harpas, flautas, charamelas, e sacabuxas, que as igrejas construídas de novo logo estavam a ponto de transbordar com qualificados, entusiasmado músicos nativos, cantando louvores ao Senhor Cristão com todos os meios à mão. O maestro / compositores geralmente vieram e foram treinados na Espanha (Sevilha era um centro especialmente importante de difusão musical para Nueva España.) Mas a maioria dos artistas (e alguns compositores), nasceram e foram criados no Novo Mundo. Eles eram, em geral, pessoas com pele marrom e negra. Uma e outra vez, os visitantes da Europa iriam notar, com espanto e admiração, a habilidade e dedicação de músicos do Novo Mundo.

Praticamente todo o repertório sobrevivente do período colonial (com exceção de umas poucas tablaturas de guitarra) é de música religiosa. Músicas de origem européia foram freqüentemente executadas no Novo Mundo - vários exemplos estão incluídas no nosso programa. Na maioria das vezes, porém, quando a música polifônica era procurado, o mestre do coro das catedrais compunham de novo a música. Havia, de um modo geral, dois tipos de modelos de estilo para as novas peças: o contraponto "neo-renascentista" em latim, idioma você vai ouvir no motetos, e um mais "barroco", estilo vernáculo empregado no villancicos. Ambos os tipos de escrita tinha suas raízes na música espanhola, ambos foram admitidos em serviços de igreja.

E ambos os estilos - um contido e conservador, o outro jovem e mesmo insolente - podem nos surpreender! Polifonia renascentista foi composta e cantada em Espanha (uma região europeia no túnel do tempo) ao longo do século XVIII, e também nas colônias espanholas (uma urdidura do tempo dentro do túnel do tempo). O som das bonitas Lamentações bonita chegam aos nossos ouvidos como se fossem escritos no 1550, a sua data real da composição foi provavelmente cerca de um século depois.

O villancicos incorporam danças, ritmos, refrões, e reminiscências do folclore ibérico. Mais fascinante de tudo, buscam assimilar as dimensões da vida popular e indígena, fazendo música no Novo Mundo. Os textos podem ser em castelhano, ou em uma das muitas línguas atuais em Nueva España: Quecha, Nahuatl, Galego, Português, afro-espanhola.

A presença de uma vigorosa cultura musical negra tão cedo na história do Novo Mundo pode vir como uma surpresa. Na verdade, tem havido um elemento africano em música espanhola desde a Idade Média. O que dá ao ouvinte uma sensação imediata de prazer - a enorme energia rítmica do villancicos do Novo Mundo - cria uma dor de cabeça considerável para o historiador de música. Será que esses ritmos característicos provém de um substrato medieval, árabo-andaluz, ou do contato do Novo Mundo com a África negra, ou (mais provável) de uma combinação de ambos?

Embora a música de Nueva España existisse na sua esfera própria, protegida, ela não é de forma "primitiva" e tecnicamente difíceis como os hinos de Nova Inglaterra da Billings ou Read. Esses compositores foram solidamente treinados, qualificados e de mente aberta. O melhor deles merecem ser classificado com seus contemporâneos de liderança na Europa, um mestre negligenciado como Araujo poderia compor círculos em torno de qualquer número no Velho Mundo.

A música de Nueva España, emergindo agora, depois de séculos de dormência e negligência, é uma fonte de orgulho e alegria para os americanos do Norte e do Sul, uma extensão preciosa do património musical Europeu e Africano musical, e uma testemunha para a possibilidade humana em nosso pequeno e turbulento planeta."

[esta apresentação de Joel Cohen  faz parte do encarte do cd, junto com as letras e comentários das músicas]


Download


THE BOSTON CAMERATA
Anne Azéma, soprano
Dana Hanchard, soprano
Derek Lee Ragin, countertenor
Richard Duguay, tenor
Daniel McCabe, baritone
Cheryl Ann Fulton, harp
Eloy Cruz, baroque guitar
Olav Chris Henriksen, baroque guitar
Frances Conover Fitch, organ, percussion
Patricia Neely, violone
Joel Cohen, percussion


Assisted by:
THE BOSTON SHAWM AND SAKBUT ENSEMBLE
THE SCHOLA CANTORUM OF BOSTON
Frederick Jodry, director


WOMEN'S CHOIR OF THE CHURCH "LES AMIS DE LA SAGESSE"
Dorchester, Massachusetts
Pierre-Louis Zephir, minister


1- Cum audisset Joannes / Alonso Lobo (Spain, 1555-1617) cornet, dulcian, and sackbuts
2- Hanacpachap cussicuinin/ Juan Pérez Bocanegra (Peru, 1631) /Camerata and Schola Cantorum
3. Deus in adjutorium /Domine ad adjuvandum / Gregorian/ Ragin and Les Amis de la Sagesse
4. Deus in adjutorium--Domine ad adjuvandum / Pedro Bermudez (Mexico ca.1650)/ Camerata and Schola Cantorum with shawms, sackbuts, and continuo
5. A este sol peregrino /Tomas de Torrejón y Velasco (b.Spain 1644-d.Peru 1728)/ Hanchard, Azéma, Ragin, and McCabe with continuo and tambourine
6. La Reina de los pangelinguas / Sebastián Aguilera de Heredia (Spain, 1561-1627) /organ
7. Lamentatio/ Don Juan de Lienas (Mexico ca. 1650) /male voices of Camerata and Schola Cantorum with cornet, sackbuts, and continuo
8. Pabanas/ Lucas Ruis de Ribayaz (Spain, 1667) /harp
9. Que se ausenta/ frei Fransisco de Santiago (b.Portugal 1578-d.Spain 1644) /Duguay, McCabe, and harp
10. Xicochi xicochi conetzintle/ Gaspar Fernandez (b. Portugal 1570-d. Mexico 1629) /Dietrich, Thompson, recorders, and organ
11. Ay Ay galeguiños / Fabián Ximeno (Mexico, ca. 1650) /Ragin with Camerata, Schola Cantorum, and continuo
12. Exultate, iusti, in domino/ Juan Guitterez de Padilla (b. Spain ca. 1595-d. Mexico 1664) /Camerata, Schola, shawms and sackbuts, guitars, harp, gamba, violone, organ
13. Tiento/ Pablo Bruna (Spain, ca. 1640) /organ
14. Dame albriçia, 'mano Anton / Gaspar Fernandez/ Hanchard, Ragin, Azéma, and McCabe
15. Gallego : Si al nacer o minimo / Juan Guitterrez de Padilla/ Duguay with Azéma, Ragin, treble viol, guitars, and harp
16. Tarara, tarara / Antonio de Salazar (b.Spain ca. 1650-d.Mexico 1715) /Azéma, Hanchard, continuo, and percussion
17. Hanacpachap cussicuinin (reprise)/ Juan Pérez Bocanegra /high voices of Camerata, Schola Cantorum, and Les Amis de la Sagesse with shawms, sackbuts, and violone
18. Los coflades de la estleya / Juan de Araujo (b. Spain 1646-d.Bolivia, 1712) /Hanchard, Ragin, Camerata, Schola Cantorum, continuo, and percussion
19. Cumba/ Sebastián de Murcia (Mexico, ca. 1700) /guitars and harp
Agnus Dei/ Gregorian /high voices of Camerata, Schola Cantorum, and Les Amis de la Sagesse
20. Agnus Dei/ Tomás Luis de Victoria (from the Missa Ave Regina) (Spain, 1548-1611) /Azéma, Hanchard, Camerata, Schola Cantorum with cornet, dulcian, sackbuts, organ, gamba, and violone
21. Guaracha: Convidando esta la noche/ Juan Garcia de Zéspiedes (Mexico,ca.1650) /Hanchard with Les Amis de la Sagesse, Azéma, Ragin, Duguay, McCabe, Schola Cantorum with organ, guitars, harp, gamba, violone, shawms and sackbuts, and percussion




Hanacpachap cussicuinin/ Juan Pérez Bocanegra (Peru, 1631)



Hanacpachap cussicuinin,
huaran cacta muchas caiqui.
Yupairuru pucocmallqui,
runa cunap suyacuinin,
callpannacpa quemi cuinin,
Huaciascaita.

Uyarihuai muchascaita
Diospa rampan Diospaman
Yuratocto hamancaiman
Yupascalla, collpascaita
Huahuarquiman suyuscaita
Ricuchillai.

A este sol peregrino /Tomas de Torrejón y Velasco (b.Spain 1644-d.Peru 1728)



A este sol peregrino
cantale glorias zagalejo
y com gusto y donayre
com goso y contento
(cantale, cantale zagalejo)
que del orbe dora las cumbres
goze sus luces.

Divino Pedro, tus glorias
oi acobardan mi voz
que no dexar registrarse
supone la luz mayor.

De oriente a oriente camina
tu soberano explendor
que aun el ocaso es principio
donde siempre naze el sol.

Tus pasos venera estampas
quien no sin asombro vio
que siendo exemplo no dexa
posible la imitacion.

Oi pues em tu Patrocinio
espera la adoracion
que te meresco esta casa
ser empleo de su amor.
A este sol peregrino...



Ay Ay galeguiños / Fabián Ximeno (Mexico, ca. 1650)



Ay ay galeguiños
ay ay ay que lo veyo mas
Ay que lo miro mas
Ay que lo veyo em un pesebriño
Ay ay o filo de Deus
ay ay que a la terra viño
Ay que lo miro
Ay que lo veyo
En un portalino.

Ay soen gantinas
e dai mil boltinas
ay tocai las flautinas
tambem los pandeiros
ay que face pucheros
por mis amoriños.

Ay ay galeguiños...

Gallego : Si al nacer o minimo / Juan Guitterrez de Padilla/



Si al nacer o mi nino se yela
por miña fe que lo prova la terra
Si o fogo tirita mas si a neve queima
si o solsiño chora e sua ama y le enjeita.
por miña fe que lo prova la terra

Si em a palla tirita o mi nino,
prestale pouco naçrer solesino
Ay!

Si la risa del alba sollousa,
prestale pouco que nasca la aurora
Ay!
Si su mesmo calor no le vale,
prestalle pouco que un boy me le abahe
Ay!

Si me chora el amor percoliñas,
valeme mais que venir de las indias
Ay!
Si em la neve o mi nino se abrasa
por miña fe que jas fogo na palla
Si o fogo tirita mas si a neve queima
si o solsiño chora e sua ama y le enjeita.
por miña fe que lo prova la terra

Si los angeles baizan tan cedo,
yo apostare que es bayjo lo celo
Ay!

Si de noite o sol cino rebumbra,
yo apostare que há naçido la luna
Ay!
Si o pastor corderiño suspira,
quero le ven pois volando nois silva

Ay!
Si o cordero há naçido na terra,
querole ven por la paz que nos deiza
Ay!



Cumba/ Sebastián de Murcia (Mexico, ca. 1700)(instrumental)



Guaracha: Convidando esta la noche/ Juan Garcia de Zéspiedes (Mexico,ca.1650)



(Juguete:)
Convivando esta la noche
Aqui de musicas varias
Al recein nacido infante
Canten tiernas alabanzas.

(Guaracha:)
Ay que me abraso ay
divino dueño ay
em la hermosura ay
de tus ojuelos ay!

Ay como llueven ay
ciendo luçeros ay
Rayos de gloria ay!
Rayos de fuego ay!

Ay que la gloria ay
del portaliño ay
ya viste rayos ay
si arrojayalos ay!

Ay que su madre ay
como em su espero ay
mira em (su)lucencia ay
sus crecimientos ay!

(Juguete:)
Alegres quando festivas
Unas hermosas zagales,
com novidad entonaron
Juguetes por la guaracha.

(Guaracha:)
En la guaracha ay
Le festinemos ay
mientras el niños ay
se rende al sueño ay!

Toquen y baylen ay
porque tenemos ay
fuego em la nieve ay
nieve em el fuego ay!

Pero el chicote ay
a un mismo tiempo ay
llora y se rrie ay
que dos estremos ay!

Paz a los hombres ay
dans de los delos ay
a dios las gracias ay
porque callenos ay!


quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sulpícia - Elegia III



Testemunhos escritos por mulheres na Antiguidade Clássica são extremamente raros. Não que inexistissem mulheres instruídas e cultas. Filósofos como Porfírio e Santo Agostinho mantinham correspondência com mulheres da elite. A filósofa Hipácia lecionava e escrevia tratados. Há a poesia de Safo e outras, em obra bastante fragmentária.

No campo literário, temos a presença de Sulpícia, poeta romana que viveu no século I a. C.

Notadamente rico, no âmbito político e cultural, foi o período compreendido entre o início do século I a. C. e a primeira metade do século I d. C. Crise da República, Principado e início do Império sob a égide de Augusto. Época de poetas como Catulo, Ovídio, Horácio, Virgílio, entre outros. Além da filosofia, jurisprudência e oratória de Cícero, os escritos de arquitetura de Vitrúvio, a história de Júlio César, Salústio e Tito Lívio,a filosofia de Lucrécio...

Naquele tempo a produção poética se desenvolvia em torno de círculos literários, patrocinados por figuras de grande prestígio e próximas do imperador. Destacavam-se Mecenas, protetor de Horácio, Virgílio ou Propércio. Outra figura de prestígio foi Marco Valério Messala Corvino, protetor de Tibulo, Lígdamo e Sulpícia. As produções poéticas destes últimos foram reunidas numa espécie de “cancioneiro”, conhecido como Corpus Tibullianum , por ser Tibulo o poeta de maior renome elencado na obra.

Sulpícia é originária deste meio. Entretanto, a respeito de sua vida existem enormes lacunas. Sabemo que era filha de Seruius Sulpicius Rufus e Valéria, irmã de Messala, tendo este, após a morte do cunhado, desempenhado um papel preponderante na educação e formação de Sulpícia.
Este contexto social e cultural, diferente do destino tradicional da mulher romana, pode ter sido fundamental para sua trajetória literária.

Na sociedade romana, as relações entre homem e mulher estavam estruturadas de maneira a proteger e cultivar a autoridade e as prerogativas e privilégios masculinos. Importante lembrar que no direito romano estava atribuído à mulher um sentido de incapacidade estatutária. A mulher era dotada de uma fraqueza de espírito (lmbelicillitas mentis). Além da infirmitas sexus, ou seja, uma leviandade mental ou enfermidade relativa ao seu sexo em relação aos varões (algo como um “homem incompleto”). Em outras palavras, a mulher que é portadora da cidadania romana possui um status jurídico inferior ao do homem (distante da vida publica e das decisões políticas, embora participasse da economia e vida social). Em grande parte era um destino submisso à fecundidade e maternidade. Gerar cidadãos e educá-los, nos primeiros anos, na transmissão dos valores cívicos.

Todavia, este contexto não fornece um panorama abrangente das vidas individuais. Há gradações neste quadro, ainda que a escassez documental não permita muita coisa. Nesse caso, a poesia de Sulpícia é uma voz dissonante neste ambiente masculino.

O amor, para os poetas elegíacos, é um sentimento a ser vivido intensamente. Contraditório, ele provoca dor, mágoa e tristeza, tanto quanto alegria e felicidade. O eu poético de Sulpícia pretente tornar público seu amor por Cerinto.

Sulpícia subverteu a tradição do poema elegíaco romano. Enquanto os poetas falam sobre seus sentimentos, reduzindo o papel da amada (puella) a uma imagem em quem o sujeito poético fantasia suas ideias e desejos; Sulpícia torna o amante (o poeta) uma voz feminina ativa e o ser amado passivo um homem.

A identidade de Cerinto é controversa, alguns estudiosos acreditavam que fosse alguém de status inferior (até mesmo um escravo). Para outros, talvez alguém do mesmo nível de Sulpícia, ou ainda um liberto (que poderia ser alguém de posses). Etimologicamente, Cerinthus é muito sugestivo, vocábulo relacionado às abelhas, ao mel e à cera. Em especial esta última tem importância simbólica importantíssima; pois os versos eram escritos em tabuinhas de cera, o veículo de comunicação entre o poeta e a amada.




III 13=IV 7


Finalmente o amor chegou e seja eu mais conhecida
por tê-lo encoberto por pudor do que por tê-lo revelado a alguém.
Comovida por meus versos Citeréia o trouxe
e o depositou em meu regaço.
Vênus cumpriu suas promessas. Se alguém, ao que se sabe,
não encontrou alegrias, que fale das minhas.
Não gostaria de confiar alguma coisa a tabuinhas seladas
para que ninguém a lesse antes de meu amado;
Alegro-me de meu erro; aborrece-me fingir por minha reputação.
Que se diga que eu fui digna com um homem digno.


III 14 = IV 8


Chega o indesejado aniversário, que deve ser passado tristemente
no campo maçante e sem Cerinto.
O que é mais agradável que a cidade? São as casas de campo convenientes
às moças? E o gélido rio da região de Arécio?
Podes descansar, Messala, excessivamente cuidadoso a meu respeito:
essas viagens, meu tio, muitas vezes não me são oportunas.
Levada para longe, deixo aqui meu coração e meus sentimentos.
Por minha vontade, embora não permitas que eu a tenha.


III 17 = IV 11


Tens, acaso, Cerinto, compaixão de tua amada?
Já que a febre castiga meus membros fatigados?
Eu não desejaria viver a doença tristemente
se não acreditasse que tu também o queres.
De que me adianta vencer a doença se podes suportar
com indiferença o mal que me atormenta?


III 18 = IV 12


Que eu não seja para ti, minha luz, a ardente paixão
que parecia ter sido há poucos dias
se, jovem tola, cometi alguma falta,
da qual eu reconheço, que me arrependo mais
do que te haver deixado só, ontem à noite,
por desejar dissimular meu próprio ardor.


Tradução de Zélia de Almeida Cardoso.

Fonte: Poesia Lírica latina. organização de Maria da Glória Novak e Maria Luíza Neri. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992

Há uma tradução em espanhol do  Corpus Tibullianum, intitulado Las elegías del Tíbul,o de Ligdamo y de Sulpicia feita por Joaquin D. Casasus, publicada no México em 1905. Está disponível na Open Library .

Bibliografia:

DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d
FILIPE, Raquel Teixeira "As elegias de Sulpícia: uma voz feminina num mundo de homens." In Ágora. Estudos Clássicos em Debate 4 (2002) 57-78
VEYNE, Paul (org.) História da vida privada, 1 : do império romano ao ano mil. Tradução: Hildegard Feist  São Paulo: Companhia das Letras, 1991



quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Hino a Ísis.



Ísis com sistrum, Museu Capitolino, Roma.
Um sacerdote sai do templo com um pote de purificação de água. Observe o sacerdote no centro conduzir os cantores. Em primeiro plano, um outro sacerdote oferece incenso à deusa de mil nomes.
Templo de Ísis, Pompéia.

Caro leitor, não confunda este texto com um homônimo "Hino a Ísis"1 disponível na blogosfera (por exemplo, aqui). O hino que transcrevo no Labirintos do Ser possivelmente é um texto do período helenístico ou romano. Assim com o Hino a Mithra, recorro à antologia Textos Sacros, da Abril Cultural. Novamente não é informada a fonte do escrito. A tradução ficou a cargo do Professor Antonio Flavio Pierucci, da FFLCH-USP. Talvez seja um dos quatro Hinos grego para Isis, escritos por Isidorus para em um templo de Fayum, no Egito, no início do século I a.C.

Os gregos identificavam Ísis à deusa Deméter. A história da deusa egípcia em busca do marido desaparecido era comparada àquela da divindade grega, que procurava sua filha Core. Seu culto foi muito estimulado no período helenístico, através da política dos Ptolomues, que proporcionaram um hibridismo entre a religião egípicia e a grega. A partir daí, teve enorme difusão na bacia do Mediterrâneo. Todavia encontrou certa hostilidade em Roma, devido a sua popularidade entre as camadas populares. O Senado Republicano ordenou várias vezes a derrubada de altares da deusa e outras divindades. Augusto proibiu a celebração dos rituais de Ísis no interior do pomoerium. Tibério ordenou a demolição do santuário da deusa e que sua estátua fosse lançada no Tibre. O Estado romano temia o caráter secreto das cerimônias e possíveis reivindicações das massas populares que a religião pudesse ocultar.

O culto encaminhou-se num sentido henoteísta 3, onde Ísis torna-se panthea, divindade única de muitos nomes. Assumia outras identidades, como Higéia, a saúde divinizada.

Junto a possibilidade de continuar a vida no além, o culto apresentava outros aspectos, que tornaram sua figura mais complexa e rica simbolicamente. Transfigurou-se em uma divindade cósmica, distribuidora de todos os bens, doce e maternal, que protege e salva.

Ísis representa o poder fertilizador na terra e na lua. Segundo o professor Walter Burkert“(...) creditam-se à Ísis poderes sobre o próprio destino, fatum: ela tem autoridade para deter a morte iminente e conceder uma nova vida, novae salutis curricula. Esse preciosíssimo dom de Ísis, o dom da vida é descrito tanto nas fontes egípcias gregas quanto nas versões gregas do culto. Mas significa claramente a vida neste nosso mundo. Deve ser uma “nova vida”, visto que a velha vida se desgastou e está a ponto de se romper; mas não é uma vida de uma outra ordem, sendo antes uma reposição para manter as coisas em andamento.” 2


Ísis, século II d.C , Coleção Farnese, Nápoles, Museo Archeologico Nazionalemármore, com restaurações do século XVIII,  na cabeça, braços e pés.

Hino a Ísis:

"Santa! Tu que, sem te cansares, velas pela salvação do gênero humano, sempre pródiga para com os mortais de cuidados que os reanimam, tu dispensas ao infeliz doce ternura de mãe. Não deixes passar um dia, uma noite, um instante sequer, sem prodigalizar teus benefícios, sem proteger os homens em terra e mar, sem afastar para bem longe as tormentas da vida, sem estender-lhes a mão protetora que desfaz as malhas mais complicadas da fatalidade, mão que acalma as tempestades da fortuna e domina o curso funesto dos astros. Os deuses do Céu te rendem homenagem, respeitam-te os deuses do inferno! Tu moves o mundo sobre seu eixo, acendes o fogo do Sol, governas o universo e calcas com teu pé o Tártaro. Os astros são dóceis à tua voz, as estações retornam à tua vontade, os deuses se alegram à tua vista, os elementos encontram-se às tuas ordens. Fazes um gesto, e as brisas se animam, incham-se as nuvens, germinam as sementes, multiplicam-se os feixes de trigo. Tua  majestade enche de santo pavor os pássaros que cortam o céu, os animais que erram pelas montanhas, as serpentes que se ocultam sob a terra, os monstros que nadam no mar. Porém, para pronunciar teus louvores, pobre demais é meu espírito. Para te oferecer sacrifícios, escassas demais as minhas posses. A voz me faltaria ao querer expressar os sentimentos que tua grandeza me inspira. Mil bocas não bastariam, nem mil línguas, nem mesmo se falassem sem esmorecimento, por toda a eternidade! Mas pelo menos terei o cuidado de fazer tudo aquilo de que é capaz, em sua pobreza, um fiel piedoso: teus traços divinos, tua pessoa sagrada, eu os guardarei para sempre fechados em meu coração, e em espírito os contemplarei."

Notas:


1. O hino ficou muito popularizado quando o escritor Paulo Coelho citou-o em seu livro "Onze minutos". Trata-se de um texto da Biblioteca de Nag Hammadi,provavelmente escrito entre os séculos II IV d.C; mais precisamente do Códice VI,2 denominado Bronté (Trovão ou Espírito Perfeito). Constitui um monólogo onde Bronté, uma personagem feminina, expõe em primeira pessoa maravilhas nela reveladas. Remete à Sabedoria hipostasiada do Antigo Testamento e as aretalogias de Ísis. Daí o nome "Hino a Ísis", embora seja uma correlação incerta, no estado atual dos conhecimentos.
2. BURKERT,Walter Antigos cultos de misterio. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Edusp, 1992, p. 30.
3. Isto é, a crença em um deus único, mesmo aceitando a existência possível de outros deuses. Pode designar também a uma personificação (entre outras) do Deus supremo,ou ainda atribuir a esse Deus o poder de assumir múltiplas personalidades.


Bibliografia:


BURKERT,Walter Antigos cultos de misterio. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Edusp, 1992
SCARPI, Paolo Politeísmos: as religiões do mundo antigo. Tradução: Camila Kintzel São Paulo: Hedra, 2004
VVAA. Textos Sacros. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 187-188

Isis recebe Io para o Egito.  afresco do Iseum em Pompéia, agora preservado, em Nápoles.
rito isíaco, afresco de Herculanum.
Sistros, instrumentos de percussão.


moedas com representações de Ísis.