sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Antonio Vivaldi - Primavera





Iconografia:

Francesco Albani (1578-1660) Primavera, Vênus em seu toilette (c.1616-1617), óleo sobre tela, Galleria Borghese, Roma, Itália

Lucas van Valckenborch (1530-1597) - Paisagem na Primavera (1587), óleo sobre tela, Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria




Condorcet e o direito das mulheres à educação.




Este trecho das Cinco memórias sobre a instrução pública (escritas em 1791 e apresentadas à Assembléia Nacional Constituinte em 1792), do marquês de Condorcet (Jean-Antoine-Nicolas de Caritat; 1743-1794) referente à educação das mulheres pode ser lida como uma problematização do post anterior  sobre a "pedagogia diferenciada", mostrando o substrato conservador de alguns de seus postulados, que um pensador que viveu há 200 anos percebeu de forma cristalina. Condorcet defendeu um sistema de ensino para a França revolucionária que deveria ser gratuito, universal e independente, tanto dos poderes religiosos como do próprio poder político que estava em construção (nesse ponto discorda do "catecismo republicano"). Para o iluminista, a ignorância e a desigualdade no acesso à instrução são os principais alicerces que sustentam o edifício da tirania. Desse modo, o conhecimento é o veículo fundamental para a igualdade e a soberania popular. Cada memória compõe um projeto amplo que engloba temas como  a organização da escola, formação dos professores, estruturação do currículo, educação das crianças e dos adultos, e até mesmo questões sobre aposentadoria dos docentes. Notável sua recusa em não confundir educação com propaganda política e doutrinação. 
Dentre os revolucionários, Condorcet foi o mais radical defensor da igualdade de direitos entre os sexos (e não apenas algumas mudanças no estatuto jurídico da mulher), inclusive o direito de voto. Contra um forte imaginário social; afirmava que a mulher possuía aptidão para as ciências. Para isso, recorre a fatos pouco conhecidos dos leitores brasileiros, a presença de mulheres lecionando Medicina, Filosofia e outros saberes em Universidades da Itália setecentista (apesar de enorme resistência e discriminação que elas enfrentavam naquele contexto).

Todavia, apesar do prestígio intelectual  que  desfrutava, suas ideias não tiveram repercussão, sendo mal conhecidas, criticadas superficialmente ou mesmo vítimas de escárnio. Também é inquietante o silêncio de Mirabeau, Danton e Robespierre sobre a questão. Predominou a visão de Rousseau, de que a mulher devia governar o lar, enquanto a vida pública e a política estavam destinadas aos homens.

Com tradução e apresentação de Maria das Graças de Souza, professora de Filosofia da FFLCH-USP, as Cinco memórias sobre a instrução pública foi lançada pela Editora Unesp em 2008. Falta um aparato crítico para o leitor não familiarizado com o contexto político, social e cultural do tema em discussão. Talvez possa ser acrescido em  edições futuras. 

Para um maior aprofundamento do tema, recomendo a seguinte bibliografia básica:  Maria Lúcia Speedo Hilsdorf  Pensando a educação nos tempos modernos. São Paulo: Edusp, 1998; Carlota Boto A escola do homem novo:entre o Iluminismo e a Revolução francesa. São Paulo: Editora Unesp, 1996; Elisabeth Badinter(apresentação)  Palavras de homens (1790-1793). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991 e  Tzevetan Todorov O espírito das luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008

É necessário que as mulheres compartilhem a instrução comum dada aos homens.

1 - Para que possam controlar a instrução que é dada aos seus filhos

A instrução pública, para ser digna desse nome, deve se estender à generalidade dos cidadãos, mas é impossível que as crianças a aproveitem, se, limitadas às lições que recebem de um mestre comum, não tiverem um professor que possa cuidar de seus estudos, no intervalo das lições, prepará-las para recebê-las, facilitar a sua compreensão, completar enfim aquilo que um momento de ausência ou de  distração as fez perder.
Ora, de quem as crianças dos cidadãos pobres poderão receber esse auxílio se não for de suas mães, que, dedicadas aos cuidados da família ou entregues a trabalhos sedentários, parecem chamadas a cumprir esse dever? Os trabalhos dos homens, que, quase sempre, os ocupam fora de casa, não lhes permitiriam consagrar-se a essatarefa. Seria, pois, impossível estabelecer na instrução a igualdade necessária à manutenção dos direitos dos homens, sem a qual não se poderia nem mesmo empregar nela legitimamente os recursos das propriedades nacionais, se, não fazendo as mulheres percorrerem pelo menos os primeiros graus da instrução comum, não as colocássemos em condições de cuidar da instrução de seus filhos.

2 - Porque a falta de instrução das mulheres introduziria nas famílias uma desigualdade contrária à sua felicidade

Aliás, não se poderia estabelecer a instrução só para os homens, sem introduzir uma desigualdade notável não somente entre marido e mulher, mas também entre irmão e irmã, entre filho e mãe. Ora, nada seria mais contrário à pureza e à felicidade dos costumes domésticos. A igualdade é, em todo lugar, mas sobretudo nas famílias, o primeiro elemento da felicidade, da paz e das virtudes. Que autoridade poderia ter a ternura maternal , se a ignorância destinasse as mães a serem para suas crianças um objeto de ridículo e de desprezo? Dir-se-á, talvez, que exagero esse perigo; que, atualmente, se oferecem aos jovens conhecimentos que não somente suas mães, mas mesmo seus pais não possuem, sem que, contudo, isso resulte em tantos incovenientes. Todavia, deve-se observar, em primeiro lugar, que a maioria dos conhecimentos, considerados inúteis pelos pais e freqüentemente pelas próprias crianças, não dá a estas, na sua opinião, nenhuma superioridade. E hoje são conhecimentos realmente úteis que se lhes quer ensinar. Com efeito, trata-se de uma educação geral, e os incovenientes dessa superioridade seriam bem mais notáveis do que numa educação reservada às classes em que a polidez, os costumes e a vantagem dada aos pais pelo gozo de sua fortuna impedem que os filhos se tornem vaidosos demais de sua ciência nascente. A propósito, os que puderam observar jovens de famílias pobres, às quais o acaso fornece uma educação cultivada, sentirão facilmente o quanto este temor tem fundamento.

3 - Porque é um meio de fazer os homens conservarem os conhecimentos que adquiriram em sua juventude

Acrescentarei ainda que os homens que tiverem aproveitado uma instrução pública conservarão bem mais facilmente seus benefícios, se encontrarem em suas mulheres uma instrução maiso u menos igual à sua; se puderem fazer com elas leituras que devem manter os seus conhecimentos; se, no intervalo que separa sua infância de seu estabelecimento, a instrução que lhes é preparada para essa época não for estranha às pessoas pelas quais se sentem atraídos por uma inclinação natural.

4 - Porque as mulheres têm o mesmo direito que os homens à instrução pública

Enfim, as mulheres tem os mesmos direitos que os homens; logo, elas têm o direito de obter as mesmas facilidades para adquirir as luzes, que podem lhes dar os meios de exercer realmente tais direitos, com uma mesma independência e numa extensão igual.

A instrução deve ser dada em comum, e as mulheres não podem ser excluídas do ensino.

Já que a instrução deve ser de modo geral a mesma, o ensino deve ser comum e confiado a um mesmo mestre, que possa ser escolhido indiferentemente num ou outro sexo.

As mulheres foram, algumas vezes, encarregadas do ensino na Itália, e com sucesso.

Várias mulheres ocuparam cátedras de ensino, nas mais célebres universidades da Itália, cumprindo com glória suas funções de professoras nas ciências mais elevadas, sem que tenha resultado disso nenhum prejuízo nem o menor incoveniente, nem a melhor reclamação, nem mesmo alguma zombaria, num país que não pode ser considerado, contudo, isento de preconceitos, onde não reina a simplicidade nem a pureza dos costumes.

Necessidade dessa reunião para a facilidade e a economia da instrução.

A reunião das crianças de ambos os sexos, numa mesma escola, é praticamente necessária para a primeira educação; seria difícil estabelecer duas escolas em cada vilarejo e encontrar, sobretudo nos primeiros tempos,  quantidade suficiente de mestres, se nos limitássems a escolhê-los apenas num dos sexos.

Longe de ser perigosa, a instrução comum é útil aos costumes.

Aliás, essa reunião, sempre em público e sob os olhos dos mestres, longe de ser um perigo para os costumes, protege ao contrário contra as diversas espécies de corrupção, cuja principal causa é a separação dos sexos no final da infância ou nos primeiros anos da juventude. Nessa idade, os sentidos fazem a imaginação divagar, e muito freqüentemente sem retorno, se uma doce esperança não  a  fixar sobre objetos mais legítimos. Tais hábitos, aviltantes ou perigosos, são quase sempre, são quase sempre os erros de uma juventude enganada em seus desejos, condenada à corrupção pelo tédio e extinguindo, nos falsos prazeres, uma sensibilidade atormentada por sua triste e solitária servidão.

Não se deve estabelecer uma separação que só seria real para os ricos.

Não é sob uma constituição igual e livre que seria permitido estabelecer uma separação ilusória  para a grande pluralidade das famílias. Ora, jamais essa separação nas escolas poderia ser real para o habitante do campo, nem para a parte pouco rica das cidades. Assim, a reunião nas escolas só diminuiria os inconveniente daquela outra que, para essas classes, não se pode evitar nas ações ordinárias da vida, onde ela não é, contudo, exposta aos olhares de testemunhas da mesma idade, nem submetida à vigilância do mestre. Rousseau, que atribuía à pureza dos costumas uma importância talvez exagerada, queria, pelo interesse mesmo dessa pureza, que os dois sexos se misturassem em suas diversões. Haveria perigo maior se os reuníssemos para ocupações mais sérias?

A principal causa da separação dos sexos são a avareza e o orgulho.

Não nos enganemos. Estas ideias de separação rigorosa não devem ser atribuídas à severidade da moral religiosa, essa astúcia inventada pela política sacerdotal para dominar os espíritos. O orgulho e a avareza têm pelo menos parte igual nisso; a hipocrisia dos moralistas quis prestar homenagem interessada a tais vícios. A generalização dessas opiniões austeras deve-se, de um lado, ao temor das alianças desiguais e, de outro, ao medo da recusa de consagrar as ligações fundadas em relações pessoais. Deve-se, pois, longe de favorecê-las, procurar combatê-las, num país onde se quer que a legislação obedeça somente à natureza e à razão e seja conforme a justiça. Nas instituições de uma nação livre, tudo deve tender para a igualdade, não somente porque ela é também um direito dos homens, mas porque a manutenção da ordem e da paz o determina imperiosamente. Uma constituição que estabelece a igualdade política nunca será durável nem pacífica se a misturamos com instituições que mantêm os preconceitos favoráveis à desigualdade.

Seria perigoso conservar o espírito de desigualdade nas mulheres, porque isso impediria de destruir esse espírito nos homens.

O perigo seria muito maior se, enquanto uma educação comum acostumasse as crianças  de um sexo a se considerarem iguais, a impossibilidade de estabelecer uma igualdade semelhante para as crianças do outro sexo as abandonasse a uma educação solitária e doméstica. O espírito de desigualdade que se conservaria num sexo logo se estenderia sobre ambos, resultando no que até aqui vimos acontecer com a igualdade encontrada em nossos colégios, a qual desaparece para sempre, no mesmo momento em que o estudante crêtornar-se um homem.

A reunião dos sexos numa mesma escola favorece a emulação, e a faz surgir sob o princípio do sentimento de benevolência, e não de sentimentos pessoais, como ocorre com a disputa nos colégios.

Algumas pessoas poderiam temer que a instrução necessariamente prolongada além da infância seja recebida com muita distração por seres ocupados com interesses mais vivos e mais impressionantes. Contudo, esse temor é mal fundado. Se as distrações são um mal, este será mais que compensado pela emulação inspirada pelo desejo de merecer a estima da pessoa amada ou de obter a estima da família. Tal emulação seria mais geralmente útil do que a disputa que tem por princípio o amor da glória ou o orgulho, pois o verdadeiro amor da glória não é uma paixão de criança nem um sentimento a se tornar geral, na espécie humana. Querer inspirar esse amor em homens medíocres (e homens medíocres podem, em contraposição, obter os primeiros prêmios em sua classe) seria condená-los à inveja. Este último gênero de disputa, ao despertar paixões de ódio, ao inspirar nas crianças o sentimento ridículo de uma importância pessoal, produz mais mal do que bem, ao aumentar a atividade do espírito.
A vida humana não é uma luta na qual os rivais disputam prêmios; é uma viagem que irmãos fazem em comum e na qual cada um, empregando suas forças para o bem de todos, é recompensado pelas doçuras de uma benevolência recíproca, pelo prazer ligado ao sentimento de ter merecido o reconhecimento ou a estima. A emulação que tivesse por princípio o desejo de ser amado ou de ser considerado por suas qualidades absolutas, e não por sua superioridade sobre outrem, poderia tornar-se também muito poderosa; ela teria a vantagem de desenvolver e fortalecer os sentimentos cujo hábito é útil adquirir, enquanto essas coroas de nossos colégios, sob as quais um aluno acredita que já é um grande homem, só dão origem a uma vaidade pueril de que uma sábia instrução deve nos preservar, se por infelicidade tal germe estivesse na natureza e não em nossas instituições desastradas. O hábito de querer ser o primeiro é ridículo e uma infelicidade para aquele que o adquiriu, constituindo uma verdadeira calamidade para aqueles que a sorte condena a viver junto dele. O hábito de necessitar merecer a estima conduz, ao contrário, a esta paz interior que torna a felicidade possível e a virtude fácil.

Fonte: CONDORCET Cinco memórias sobre a instrução públicapp.58-65


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Observações sobre a "Educação Diferenciada".



A revista Carta Capital n° 663, de 14/09/2011 apresentou uma reportagem sobre dois colégios de Curitiba (PR), a Es­­cola do Bosque, para meninos, e a Es­­cola Mananciais, para meninas. Mantidos pela Associação de Educação Personalizada (APE), as escolas funcionam no mesmo terreno, mas em prédios separados por uma área verde. O corpo discente, com idades entre 6 e 11 anos, é pequeno: 35 alunos, 14 meninas e 21 meninas que nunca se vêem, embora recebam o mesmo conteúdo. A matéria,assinada por Tory Oliveira (com fotos de Joel Rocha), sob o título de Meninos para cá e meninas para lá apresenta as ideias dos responsáveis pela escola, críticas de duas professoras da FE-USP e um detalhe que tratarei mais abaixo.

Esta reportagem foi antecidida de outra, em outro veículo de comunicação, A Gazeta do Povo, de 02/03/2010, com título parecido: Meninos de um lado, meninas do outro. São textos que se complementam e fornecem informações básicas para iniciar a discussão.

A proposta é conhecida como educação diferenciada por gênero (ou "educação personalizada") ,  e questiona a pertinência da educação mista (ou co-educação), hegemônica no Brasil, tanto na rede pública como na particular.  Compreende visões de mundo e procedimentos que podem ser sintetizados da seguinte maneira:

Trata-se de uma concepção de educação que advoga a separação de alunos e alunas em turmas distintas, pois, se homens e mulheres são diferentes biologicamente e se desenvolvem em ritmos distintos, devem receber estímulos diferenciados para uma melhor aprendizagem ser obtida. Segundo seus entusiasmados defensores a menina estaria,cognitivamente, dois anos a frente do menino. Se os professores tentam alfabetizá-los da mesma forma, acabam prejudicando a menina, pois ela amadurece e apreende dados mais rápido, pois os garotos requerem mais atenção dos docentes (seriam mais "lentos" e "agitados"). Desse modo, uma escola mista tende a "nivelar por baixo", instruindo mal um e outro gênero, enquanto num colégio single-sex poder-se-ia desenvolver ao máximo (e com sucesso) as potencialidades e aptidões inerentes a cada sexo. Existiria uma maior "inclinação" dos meninos para a matemática, enquanto as garotas tem mais desenvoltura em literatura e língua portuguesa. Numa turma mista, meninas que gostam de matemática seriam prejudicadas pela competividade e "agressividade inata" dos meninos, do mesmo modo que garotos que gostam de português,literatura e artes em geral seriam alvo de gozações de colegas por admirar algo tão "pouco masculino". Portanto as classes separadas permitiriam às meninas desenvolver seus dotes aritméticos sem concorrência desleal, enquanto os meninos poderiam ser alfabetizados segundo seu ritmo próprio. Geralmente professoras ensinam as alunas enquanto professores lecionam apenas para meninos. Segundo a "Pedagogia Diferenciada", docentes dos sexos masculino e feminino possuem posturas e formas de ensinar que seriam adequados apenas para turmas dos gêneros correspondentes. Caso contrário, não daria muito certo.
Há dados mais sombrios sobre as escolas mistas, que os admiradores da pedagogia diferenciada apontam, sempre citando estatísticas, como um maior reforço dos esteriótipos sexuais, até mesmo da violência sexual, bem como um maior evasão escolar dos adolescentes do sexo masculino. E taxas de reprovação mais altas para os meninos ( nos EUA, para cada 100 garotas reprovadas no ensino fundamental, 250 repetem de ano),   incremento maior de distúrbios cognitivos, emocionais... Em outras palavras, o sucesso das meninas nas escolas mistas parece ser construído sobre as ruínas do fracasso de boa parte dos meninos. Daí a importância das escolas mistas para corrigir estas falhas.
Todavia, os admiradores dessa nova metodologia (que estaria na "vanguarda" pedagógica) não pretendem iniciar uma temporada de caça ao ensino misto1, mas apenas divulgar o estilo, proclamando o "direito à diferença" e o direito da família de escolher livremente o tipo ou modelo de educação que deseja para seus filhos 2.


De fato, a escola single-sex foi predominante em dado período da constituição dos sistemas de ensino, na Modernidade, enquanto a co-educação era marginal e vista com desconfiança. Em meados do século XX foi tornando-se mais presente, e mesmo mais numerosa que as escolas separadas. A emergências de novas concepções sociológicas, políticas e educacionais, as lutas feministas, questões administrativas e econômicas tiveram seu peso, num processo complexo. De certo modo, eram sistemas que conviviam simultaneamente. O ensino separado por gênero não é um bloco monolítico. Há escolas que separavam alunas e alunos em classes distintas, porém com momentos para convivência entre eles, assim como aqueles construídos estritamente para cada sexo. Colégios confessionais e laicos, públicos e particulares seguem este modelo. Portanto, existem várias formas escolares dentro deste esquema.

No imaginário de muitos, no entanto, classes separadas para meninos e meninas remetem a ideia de segregação, tratamento desigual para os gêneros (colégios internos e elitizados, onde aos garotos estaria reservada uma formação mais sólida, que lhes possibilitaria galgar melhores universidades e postos de trabalho e comando, enquanto as moças receberiam algo mais "adequado à sua índole", num horizonte restrito à maternidade e profissões "naturalmente" femininas). Lembra ainda a rigidez tacanha de certos tipos de  fundamentalismo religioso, seja no cristianismo, judaísmo e  islamismo (ambos compartilham, sob olhares diversos, concepção rígida da "natureza do homem e da mulher", a noção de que a mulher é o veículo da tentação, do desvirtuamento do homem de caminhos "mais nobres", da pretensa incapacidade destas para tarefas e reflexões mais complexas). Contudo, frente a estas imagens sombrias, as associações de pais e educadores que propugam o ensino personalizado defendem, com paixão, que são precauções equivocadas, pois o objetivo é o rendimento acadêmico e a defesa da igualdade de direitos e oportunidades para ambos os sexos está assegurada, pois esta proposta de ensino a torna mais eficaz. Além de parte da esquerda e movimentos feministas simpatizarem com a ideia. E o ensino público teria muito a ganhar se observasse os méritos deste sistema.

Sintetizando: é uma ação educativa que intencionalmente se adequa às “caraterísticas própias” do homem e da mulher, mediante a criação de contextos e metodologias específicas para cada sexo e/ou a adaptação da tarefa docente aos alunos e alunas.

A principal vantagem do ensino personalizado estaria em sua fundamentação científica, ancorada nas descobertas recentes da neurologia, da psicologia do desenvolvimento e da endocrinologia genética; enquanto os críticos deste tipo de educação e ferrenhos defensores da escola mista estariam engessados em concepções ideológicas e pseudocientíficas.
Em linhas gerais, é este o cenário de uma discussão que não parece ter um fim muito próximo e no Brasil está apenas começando.


Feita esta introdução, faço as seguintes observações.
O que salta aos olhos quando lemos e/ou ouvimos os discursos favoráveis à educação diferenciada é o seu constante recurso, quase fanático, à cientificidade da proposta, garantida pelas biociências (neste caso a psicologia está mais próximas destas, do que sua pretensão a fazer parte das humanidades)e matrizada em "diversos estudos", realizados em "décadas de investigação", que "demonstram amplamente" algo que é de ordem natural e biológica (ou simplesmente a "Natureza"), mas pesa de forma direta no desenvolvimento pessoal, emocional e intelectual dos meninos e meninas. E pressupostos fundamentados na "Natureza" tendem a ser "indubitáveis","verdadeiros" e 'inquestionáveis".

Não defendo uma hostilidade frente as hard sciences, mas atentar para um paradoxo:
Parece existir uma confusão intencional de atribuições e particularidades do campo científico com eventuais aplicações técnicas que podem advir do uso de dados conceitos e teorias. Recorro a um grande epistemólogo e filósofo da ciência para elucidar alguns elementos meio embaralhados:

“A ciência visa objetos para descrever e explicar, não diretamente para agir. (…)”uma teoria científica em geral não trata de fatos atuais, e sim do que chamarei de fatos virtuais, ou seja, de fatos esquemáticos, completamente determinados na rede de conceitos da própria teoria, mas incompletamente determinados enquanto realizáveis aqui e agora numa experiência.(...)O poder preditivo de uma teoria é, portanto realmente um critério de validade, mas apenas dentro dos limites atribuídos a essa predição pelo caráter parcialmente indeterminado do fato virtual, grau de indeterminação que varia muito conforme as teorias.”
“Os enunciados das ciências da empiria são propostos como verdades, bem definidas no 'referencial' de uma dada teoria, mas parciais e provisórias relativamente à experiência, dada a renovação possível e a provável melhora dos métodos de observação e de medida.”3

No mais, é uma visão da ciência filtrada pelo senso comum, uma apropriação seletiva e superficial para legitimar determinadas posições.
Há menção, no texto da Carta Capital, a presença da organização católica Opus Dei. Sua presença ajuda a manter viva a identidade cristã destas escolas. O principal teórico da educação diferenciada, o pedagogo espanhol Víctor Garcia Hoz (cujas teses são difundidas pela organização Fomento de Centros de Enseñanza,com sede em Madrid) parece ligado a Opus Dei, assim como os demais propagandistas do método, em especial na Espanha e na América Latina, de certa maneira com um pé na direita religiosa. De fato,o rígido e insistente substrato naturalista/organicista que permeia esta pedagogia deve muito ao pensamento católico e sua concepção de natureza humana (em especial na diferenciação entre os sexos), que é ineludível, permanente e quase ahistórica, cujas raízes estão fincadas no tomismo, em Aristóteles e no platonismo. Quiçá o constante recurso às neurociências e as psicologias do desenvolvimento não sirvam para dar um status mais sólido e contemporâneo a questões metafísicas religiosas que não são de competência dos saberes científicos.

Segundo a professora Marília Carvalho, da FE-USP, "vivemos na era da diversidade e da defesa de que o respeito a diferença deve ser aprendido desde cedo. Se há alguma diferença de origwem biológica ou sociocultural, entre meninos e meninas ela deve ser enfrentada ensinando a cada um a conhecer e respeitar  o outro. (...) Não há comprovação em larga escala de que essa separação seja melhor mesmo para a aprendizagem. Em geral os exemplos utilizados para comprovar isso envolvem múltipls outros fatores que podem ter levado a um melhor resultado em testes, como a atenção individualizada que essa escola em Curitiba promete." Cláudia Vianna, docente da mesma instituição, complementa: " Se você tiver uma turma mista e incentivar que os meninos aprendam português e as meninas aprendam matemática, sem estimular a competitividade, eles também vão aprender. Eu acho que é um equívoco, principalmente em nome do desempenho escolar."4

As observações das professoras da FE-USP são muito pertinentes, porém numa leitura apressada dão a impressão de que a finalidade principal da escola é gerenciar a diversidade sociocultural dos alunos e “preparará-los para a vida” e não o mais importante, que é prepará-los com os conteúdos canônicos das disciplinas que tradicionalmente fazem parte do curriculo escolar.

A diferença é um dado da realidade que também é construído socialmente, em muitos casos. Se, por algum motivo, provocam constrangimentos nas relações entre os seres humanos, como no tema aqui analisado, a vida escolar, devem ser desconstruídas (ou deixadas de lado, enquanto se está concentrado no estudo. Por que a escola deveria ser a mesmidade do cotidiano? Recalcadas por alguns momentos e depois ressignificadas).

Os gurus da educação diferenciada citam partes selecionadas de pesquisas, de modo a fazer com que corroborem seus pressupostos, abusam de afirmações categóricas, totalizantes e demonstram abissal ignorância acerca da história da educação, do feminismo e das relações de trabalho.

Contrariamente ao que pregam,o discurso dos gurus da pedagogia diferenciada é profundamente ideológico, pois encobre o fato de que as ciências se desenvolvem através de críticas e reformulações de suas hipóteses, argumentos e teorias, além de conflitos por poder e representação, e não um fazer rígido e monolítico.
Outro elemento curioso é a ausênsia de manifestações dos professores como sujeitos destas escolas nas reportagens. Será que foram aconselhados pelos diretores e coordenadores destas escolas a não emitirem opinião? Seu papel se resumiria a aplicar projetos estabelecidos de cima para baixo? Meros executores?
Não questiono a legitimidade do desejo de pais e responsáveis escolherem a melhor educação para seus filhos. Todavia manifesto meu ceticismo quanto a hipervalorização do conhecimento científico sobre questões que remetem a um fundo político e ético.

A apologia da educação diferenciada traz consigo concepções ideológicas atreladas à defesa da Charter Schools (uma comunidade que administra uma escola pública com total autonomia, com certa influência de entidades privadas e ONGs), homeschooling (os pais se encarregam de escolher os professores para os seus filhos, ou eles mesmos assumem este cargo, ensinando em casa), Cheque Escola (ou school voucher,ideia popularizada pelo economista Milton Friedman, entre outros,que consiste numa espécie de vale ou cheque,subsidiados com verbas públicas, que são concedidos às famílias de baixos rendimentos para que possam escolher escolas particulares para seus filhos), entre outros.

Estes elementos acima elencados tendem a colocar em xeque os méritos do ensino público universal, laico e gratuito (e fundamentado na co-educação dos sexos). E de reboque, o Estado de Bem-Estar Social, que aqui no Brasil mal se constituiu, e da própria ideia do Estado como regulador da economia de mercado (quando esta é desmedida).
Seria lamentável e trágico um projeto que demorou décadas para ser constituído seja enfraquecido pela voragem do mercantilismo educacional e da apropriação espúria dos saberes científicos.

Notas:
1 Embora não se furtem à criticá-lo, sempre lembrando que este não cumpriu seus objetivos de forma satisfatória e até mesmo aprofundou um abismo de ignorância, sendo responsável pelo aumento do bullying, sexismo e assédio sexual! 
2. Liberdade para poucos, pois o preço do colégio curitibano é salgado, com mensalidades de cerca de R$1350. 
 3.Granger, Gilles-Gaston A ciência e as ciências. Tradução: Roberto Leal Ferreira São Paulo: Editora Unesp, 1994, pp.46,48,49,78 e 79.
4. Carta Capital, n°663, 14/09/11, p. 65

sábado, 17 de setembro de 2011

Hegel e a educação escolar.



Trecho do discurso de encerramento do ano letivo do Gymnasium (Liceu) de Nuremberg que Hegel, na qualidade de Reitor, proferiu a 2 de Setembro de 1811:

"A vida na família, isto é, aquela que antecede a vida na escola, é uma relação pessoal, uma relação do sentimento, do amor, da fé e da confiança naturais; não é o laço de uma coisa, mas o laço natural do sangue; a criança aqui vale porque é criança; experimenta, sem o merecer, o amor dos pais, assim como tem de suportar a sua cólera, sem ter qualquer direito contra esta. Em contrapartida, no mundo, o homem vale por aquilo que realiza; só tem valor na medida em que o merece. Pouco lhe advém do amor ou por causa do amor; aqui vale a coisa, não o sentimento e a pessoa particular. O mundo constitui um ser comum, independente do que é subjectivo; o homem vale aí segundo a sua habilidade e utilidade para uma das suas esferas, tanto mais quanto ela se desfez da particularidade e se formou no sentido de um ser e um agir universais.

A escola é portanto a esfera mediadora que faz passar o homem do círculo familiar para o mundo, das relações naturais do sentimento e da inclinação para o elemento da coisa. Isto é, na escola começa a actividade da criança a receber, no essencial e de forma radical, um significado sério, na medida em que deixa de estar ao critério do arbítrio e do acaso, do prazer e da inclinação do momento; aprende a determinar o seu agir segundo uma finalidade e segundo regras; cessa de valer pela sua pessoa imediata e começa a valer por aquilo que realiza, a conquistar para si um mérito. Na família, a criança tem de agir correctamente no sentido da obediência pessoal e do amor; na escola tem de se comportar segundo o sentido do dever e de uma lei, por causa de uma ordem meramente formal, fazer isto e abster-se daquilo que de outro modo poderia bem ser permitido ao singular. Ao ser ensinado em comunidade com muitos, aprende a atender aos outros, a ter confiança em outros homens que de início lhe são estranhos, a ganhar confiança em si mesmo ma sua relação com eles, e, deste modo, a iniciar-se na formação e na prática das virtudes sociais."

G W F Hegel  Discursos sobre Educação. Tradução e introdução de Maria Ermelinda Trindade Fernandes. Edições Cotovia, 1994

domingo, 4 de setembro de 2011

The Gathering - Nighttime Birds, 1997





Este é, em minha opinião, o melhor álbum da banda holandesa The Gathering. Nighttime Birds (de 1997)constitui o segundo trabalho com a voz espantosa de Anneke van Giersbergen,expressando belamente melancolia e tristeza infinita. Obra admirável, com riffs afiados de guitarra, habita um lugar difícil de classificar. Para quem gosta de definições precisas,aqui vão algumas: Prog Metal, Atmospheric, Doom Metal, com elementos do Gothic Metal do fim da década de 1990. As letras de Anneke constituem poemas simples e profundos, com palavras e frases cuidadosamente escolhidas e montadas, como lâminas implacáveis em suas verdades que nos são lançadas. Os Pássaros Noturnos são uma metáfora de contemplação, quando o sol mergulhou sob o horizonte e precisamos limpar a mente de imagens supérfluas e perniciosas. Progressivo e complexo, o instrumental de Nighttime Birds é de prender a respiração, como se estivéssemos contemplando forças da natureza sem os invólucros da civilização. A melancolia das letras são de partir o coração; livres de constrangimentos, nos entregamos ao voo silencioso das aves soturnas nos abismos da noite, para algum recôndito em que almejamos momentos de solitude, onde é possível elaborar a tristeza e a dor que este mundo de miséria nos oferece.

Formação:

Anneke Van Giersbergen / Vocals
Renï Rutten / Guitar
Jelmer Wiersma / Guitar
Hugo Prinsen Geerligs / Bass
Frank Boeijen / Keyboards
Hans Rutten / Drums

O álbum todo é altamente recomendável. No fio da navalha, selecionei quatro canções.


On Most Surfaces (Inuit)  




The frost hits me in the eye
And wakes me
These are blury winters
And I cannot see

I walk into the white light of the snow
When the sun comes
I break it with my shadow
Which tales me where I go

The frost hits me in the eye
And wakes me

I am the snow falling down on you
I tear up your face with my frost
And make you run to somewhere warm
When I come I see you get away
I burst out about your emptyness

The frost hits me in the eye
And wakes me
These are blury winters
And I cannot see

A geada me bate no olho
e me acorda
estes são os obscuros invernos
e eu não posso ver

Caminho na luz branca da neve
quando o sol chega
Eu o quebro com minha sombra

Eu sou a neve caindo em você
Firo tua face com minha geada
E faz você correr a algum lugar quente
Quando venho,vejo você
Eu quebro teu vazio


Confusion


False eyes are staring
Disrespectfully and untrue
The burden that we are carrying
Is way too much for me and you

Sometimes it is better to lay
Don't you think?

I'm evaporating
A veil of smoke is what I am
Your thoughts will take on their way
To grow old and to be certain

Sometimes it is better to lay
Don't you think?

Olhos falsos estão olhando fixamente
Desrespeitosamente e falsos
O fardo que estamos carregando
É muito pra você e eu

Algumas vezes é melhor colocar
Você não acha?

Estou evaporando
Um véu de fumaça é o que eu sou
Seus pensamentos vão pegar no seu caminho
Para envelhecer e ter certeza

Algumas vezes é melhor colocar
Você não acha?


The Earth Is My Witness



Mother earth look at her closely
She looks at her baby and she sighs
The slight breathing pause that she takes it builds her and
Makes her strong

She refuses to give her up
And we close our eyes

Her hands touch the round stomach
And feel the kick
The eyes that have seen so much cry
With the water she starts to rinse her face

And refuses to give her up
And we close our eyes
And you close your eyes

Mãe Terra olha a seu pé
ela olha pra seu bebê e ela visa
o desprezo respirando,ela constrói a sua e
a faz forte

Ela recusa pra ela desistir
e fechar nossos olhos

Suas mãos tocam o estômago
e sente o chute
Os olhos que têm visto tantos choros
com a água ela começa a enxagüar sua face

E se recusa a desistir dela
E nós fechamos nossos olhos
E você fechar os olhos


Nightime Birds



Their ways are open
They spread as their wings
They want to be certain
Of a warm surrounding

When they fly
Through the night as beautiful
Nighttime birds

The warm wind picks them up

When they fly
Through the night as beautiful
Nighttime birds

Seus caminhos estão abertos
Eles espalham-se como suas asas
Eles querem estar certos
De um rodeio quente

Quando eles voam
Através da noite como belos pássaros noturnos

Os ventos quentes os buscam
Quando eles voam

Quando eles voam
Através da noite como belos pássaros noturnos

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Dupla maternidade e função paterna.


Um caso de dupla maternidade reconhecida pela justiça paulista, conforme notícia da folha uol de 30/08/11, gerou uma enxurrada de comentários. Kaylla Brito Santarelli, de três anos, receberá uma nova certidão de nascimento, em que constarão os nomes de Janaína Santarelli, que a gerou, e de Iara Brito, companheira da mãe biológica, com quem vive há quatro anos. A menina foi gerada por meio de uma fertilização com doador desconhecido.

Este evento é mais um capítulo na história da reconfiguração dos modelos de família na contemporaneidade. As reações negativas eram previsíveis e compreendem prognósticos sombrios a respeito do desenvolvimento psíquico da menina. Algo como um ser condenado à “infelicidade”, “inadaptado” ao meio social, sujeito a crises de identidade, passível de sofrer abuso sexual por parte do par responsável, bullying por parte de colegas de escola, dificuldade em reconhecer a diferença sexual e por aí vai. Não faltaram recursos à “teorias conspiratórias”, insinuações de “ameaças à democracia” e a liberdade de expressão, maquinações milionárias de grupos internacionais, não faltando menções à atuação do demônio e tudo o que é possível à imaginação humana.

O teor religioso dos comentaristas contrários era forte, assim como referências a uma pretensa “ordem natural das coisas” a ser vilipendiada (representada pelo "Direito Natural" ou a observância da chamada "Lei Natural"). Transgressão cujas consequências seriam catastróficas para todos.Assim, a carga prescritiva e intervencionista é grande. Predomina um amálgama entre conservadorismo cristão e sociologia durkheimiana, no sentido em que os indivíduos tem que se resignar frente a norma social da maioria, caso contrário a sociedade humana entraria em colapso. Sempre com alguém afirmando algo do tipo "vários estudos demonstram ..." os riscos deste novo tipo de relação. Embora não tenha visto nenhum link ou referência bibliográfica relevante ao assunto em debate.

Não vejo a necessidade de transcrever alguns exemplos, alguns bastante grosseiros e preconceituosos. Com certeza, parte dos juízos negativos tem a ver com a insegurança que esta nova situação provoca e a força do senso comum e concepções naturalizadas a respeito da vida familiar e das relações humanas e foram feitos "com a melhor das intenções". O leitor interessado pode recorrer à página da Folha e consultar os mais de 2200 comentários e se desejar, fazer o seu.

O principal “temor” que acomete aqueles preocupados com a situação da menina seria o famigerada necessidade da “presença da figura paterna”, tal como é entendida pelos improvisados psicólogos e sociólogos amadores que se dispuseram a debater no fórum do jornal, ou seja, um indivíduo do sexo masculino.

Quando uma nova realidade emerge e toma corpo, as ciências sociais, a psicanálise, o direito e as psicologias devem interpretá-la, sem juízos apriorísticos, para depois construir e fornecer instrumentais teóricos necessários a compreensão dos novos fenómenos e, se preciso auxiliar as pessoas envolvidas nestes processos.

A família como laço social estruturado em torno da procriação, organizando-se dentro das duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outros interditos)continuará existindo. Todavia este laço familiar pode variar historicamente.

Segundo Elizabeth Roudinesco (2003)a família ocidental passou por três fases evolutivas: a primeira, denominada "tradicional", que assegurava a transmissão do patrimônio e era regida pelo poder do pai (numa transposição direta, para o coração do mundo privado, do direito divino dos reis reconhecido publicamente no regime da monarquia, estabelecida num mundo imutável); a segunda, "moderna", regida por uma lógica afetiva, romântica, onde o casal se escolhe sem a interferência dos pais (ou sem o peso que esta tinha na forma "tradicional"), procurando uma satisfação amorosa e sentimental.O poder e o direito sobre os filhos é dividido entre os pais e o Estado e/ ou entre pais e mães.E, por fim, a terceira, dita "contemporânea ou pós-moderna", quando a transmissão da autoridade vai ficando cada vez mais complexa em função das rupturas e recomposições que a família vai sofrendo.

Desse modo surgiram novas configurações como a homoparentalidade (ou seja, situação em que pelo menos um dos pais se assume como homossexual), a coparentalidade (quando uma mãe lésbica ou um pai gay elaboram o projeto de ter e criar uma criança com um parceiro, de modo que um é o pai biológico e o outro é o pai social que participa da criação do filho, além de casos de adoção por "casais" (ou pares) gays e o recurso à inseminação artificial. A partir da definição de família que expus acima negar a legitimidade dessas realidades parece algo arbitrário. É um processo que ainda está em curso e prosseguirá por bom tempo...

Mas afinal, o que seria esta função paterna?

O Complexo de Édipo faz parte da teoria montada por Sigmund Freud e fala de investimentos afetivos que fazemos em nossos primeiros anos de vida, ligados aos nossos “cuidadores”(que cumprem a função de cuidados com a criança, como o pai e a mãe, ou pessoas nestas funções) e que nos ajudam a estabelecer os vínculos afetivos e o investimento no outro(objeto externo).

Quando nos apropriarmos dos conceitos da teoria psicanalítica de Freud a Lacan, vamos encontrar a definição da função paterna enquanto aquela amarrada ao fato de poder fazer emergir a marca da Lei – a Lei do Pai – no psiquismo do filho. A marca da Lei no psiquismo, também denominada por Nome-do-Pai, protege o filho contra a doença mental (no sentido de “salvar” o filho de uma relação dual,circular, de alienação ao corpo materno,) lançando-o
para o "mundo", ou melhor, no estado da separação: lugar de constituição do sujeito do desejo.

corporificada), isto é, a lei da proibição do incesto, e nesse sentido o seu lugar é o de um terceiro na lógica da estrutura, o mediador do desejo da mãe e do filho. Isto possibilita à criança ingressar no mundo da linguagem, do simbólico, da cultura.

Após este arrazoado que elaborei fica mais compreensível, assim espero, a lúcida sentença da juíza Débora Ribeiro: "O importante para a criança é que tenha figuras significativas que exerçam as funções parentais, independente de suas opções sexuais".

Referências bibliográficas:

DOR,Joël O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1991 Exposição acessível sobre a função paterna em Freud e Lacan. O autor não sustenta e m momento algum ser possível ou impossível a possibilidade de mulheres homossexuais sustentarem a função paterna. Deixa a questão em aberto.

PERELSON,Simone A parentalidade homossexual: uma exposição do debate psicanalítico no cenário francês atual. In Revista Estudos Feministas . vol.14 no.3 Florianópolis Set./Dez. 2006 (pode ser acessado em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2006000300008&script=sci_arttext)
Aborda as polêmicas sobre a parentalidade homossexual no campo psicanalítico francês que, como sabemo, é bastante influente no contexto basileiro.

ROUDINESCO, Elizabeth A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. A historiadora e psicanalista francesa analisa a evolução histórica-cultural da família ocidental para, depois, discutir a questão da sua atual desordem e implicações na saúde emocional de seus membros.