A revista Carta Capital n° 663, de 14/09/2011 apresentou uma reportagem sobre dois colégios de Curitiba (PR), a Escola do Bosque, para meninos, e a Escola Mananciais, para meninas. Mantidos pela Associação de Educação Personalizada (APE), as escolas funcionam no mesmo terreno, mas em prédios separados por uma área verde. O corpo discente, com idades entre 6 e 11 anos, é pequeno: 35 alunos, 14 meninas e 21 meninas que nunca se vêem, embora recebam o mesmo conteúdo. A matéria,assinada por Tory Oliveira (com fotos de Joel Rocha), sob o título de Meninos para cá e meninas para lá apresenta as ideias dos responsáveis pela escola, críticas de duas professoras da FE-USP e um detalhe que tratarei mais abaixo.
Esta reportagem foi antecidida de outra, em outro veículo de comunicação, A Gazeta do Povo, de 02/03/2010, com título parecido: Meninos de um lado, meninas do outro. São textos que se complementam e fornecem informações básicas para iniciar a discussão.
A proposta é conhecida como educação diferenciada por gênero (ou "educação personalizada") , e questiona a pertinência da educação mista (ou co-educação), hegemônica no Brasil, tanto na rede pública como na particular. Compreende visões de mundo e procedimentos que podem ser sintetizados da seguinte maneira:
Trata-se de uma concepção de educação que advoga a separação de alunos e alunas em turmas distintas, pois, se homens e mulheres são diferentes biologicamente e se desenvolvem em ritmos distintos, devem receber estímulos diferenciados para uma melhor aprendizagem ser obtida. Segundo seus entusiasmados defensores a menina estaria,cognitivamente, dois anos a frente do menino. Se os professores tentam alfabetizá-los da mesma forma, acabam prejudicando a menina, pois ela amadurece e apreende dados mais rápido, pois os garotos requerem mais atenção dos docentes (seriam mais "lentos" e "agitados"). Desse modo, uma escola mista tende a "nivelar por baixo", instruindo mal um e outro gênero, enquanto num colégio single-sex poder-se-ia desenvolver ao máximo (e com sucesso) as potencialidades e aptidões inerentes a cada sexo. Existiria uma maior "inclinação" dos meninos para a matemática, enquanto as garotas tem mais desenvoltura em literatura e língua portuguesa. Numa turma mista, meninas que gostam de matemática seriam prejudicadas pela competividade e "agressividade inata" dos meninos, do mesmo modo que garotos que gostam de português,literatura e artes em geral seriam alvo de gozações de colegas por admirar algo tão "pouco masculino". Portanto as classes separadas permitiriam às meninas desenvolver seus dotes aritméticos sem concorrência desleal, enquanto os meninos poderiam ser alfabetizados segundo seu ritmo próprio. Geralmente professoras ensinam as alunas enquanto professores lecionam apenas para meninos. Segundo a "Pedagogia Diferenciada", docentes dos sexos masculino e feminino possuem posturas e formas de ensinar que seriam adequados apenas para turmas dos gêneros correspondentes. Caso contrário, não daria muito certo.
Há dados mais sombrios sobre as escolas mistas, que os admiradores da pedagogia diferenciada apontam, sempre citando estatísticas, como um maior reforço dos esteriótipos sexuais, até mesmo da violência sexual, bem como um maior evasão escolar dos adolescentes do sexo masculino. E taxas de reprovação mais altas para os meninos ( nos EUA, para cada 100 garotas reprovadas no ensino fundamental, 250 repetem de ano), incremento maior de distúrbios cognitivos, emocionais... Em outras palavras, o sucesso das meninas nas escolas mistas parece ser construído sobre as ruínas do fracasso de boa parte dos meninos. Daí a importância das escolas mistas para corrigir estas falhas.
Todavia, os admiradores dessa nova metodologia (que estaria na "vanguarda" pedagógica) não pretendem iniciar uma temporada de caça ao ensino misto1, mas apenas divulgar o estilo, proclamando o "direito à diferença" e o direito da família de escolher livremente o tipo ou modelo de educação que deseja para seus filhos 2.
De fato, a escola single-sex foi predominante em dado período da constituição dos sistemas de ensino, na Modernidade, enquanto a co-educação era marginal e vista com desconfiança. Em meados do século XX foi tornando-se mais presente, e mesmo mais numerosa que as escolas separadas. A emergências de novas concepções sociológicas, políticas e educacionais, as lutas feministas, questões administrativas e econômicas tiveram seu peso, num processo complexo. De certo modo, eram sistemas que conviviam simultaneamente. O ensino separado por gênero não é um bloco monolítico. Há escolas que separavam alunas e alunos em classes distintas, porém com momentos para convivência entre eles, assim como aqueles construídos estritamente para cada sexo. Colégios confessionais e laicos, públicos e particulares seguem este modelo. Portanto, existem várias formas escolares dentro deste esquema.
No imaginário de muitos, no entanto, classes separadas para meninos e meninas remetem a ideia de segregação, tratamento desigual para os gêneros (colégios internos e elitizados, onde aos garotos estaria reservada uma formação mais sólida, que lhes possibilitaria galgar melhores universidades e postos de trabalho e comando, enquanto as moças receberiam algo mais "adequado à sua índole", num horizonte restrito à maternidade e profissões "naturalmente" femininas). Lembra ainda a rigidez tacanha de certos tipos de fundamentalismo religioso, seja no cristianismo, judaísmo e islamismo (ambos compartilham, sob olhares diversos, concepção rígida da "natureza do homem e da mulher", a noção de que a mulher é o veículo da tentação, do desvirtuamento do homem de caminhos "mais nobres", da pretensa incapacidade destas para tarefas e reflexões mais complexas). Contudo, frente a estas imagens sombrias, as associações de pais e educadores que propugam o ensino personalizado defendem, com paixão, que são precauções equivocadas, pois o objetivo é o rendimento acadêmico e a defesa da igualdade de direitos e oportunidades para ambos os sexos está assegurada, pois esta proposta de ensino a torna mais eficaz. Além de parte da esquerda e movimentos feministas simpatizarem com a ideia. E o ensino público teria muito a ganhar se observasse os méritos deste sistema.
Sintetizando: é uma ação educativa que intencionalmente se adequa às “caraterísticas própias” do homem e da mulher, mediante a criação de contextos e metodologias específicas para cada sexo e/ou a adaptação da tarefa docente aos alunos e alunas.
A principal vantagem do ensino personalizado estaria em sua fundamentação científica, ancorada nas descobertas recentes da neurologia, da psicologia do desenvolvimento e da endocrinologia genética; enquanto os críticos deste tipo de educação e ferrenhos defensores da escola mista estariam engessados em concepções ideológicas e pseudocientíficas.
Em linhas gerais, é este o cenário de uma discussão que não parece ter um fim muito próximo e no Brasil está apenas começando.
Feita esta introdução, faço as seguintes observações.
O que salta aos olhos quando lemos e/ou ouvimos os discursos favoráveis à educação diferenciada é o seu constante recurso, quase fanático, à cientificidade da proposta, garantida pelas biociências (neste caso a psicologia está mais próximas destas, do que sua pretensão a fazer parte das humanidades)e matrizada em "diversos estudos", realizados em "décadas de investigação", que "demonstram amplamente" algo que é de ordem natural e biológica (ou simplesmente a "Natureza"), mas pesa de forma direta no desenvolvimento pessoal, emocional e intelectual dos meninos e meninas. E pressupostos fundamentados na "Natureza" tendem a ser "indubitáveis","verdadeiros" e 'inquestionáveis".
Não defendo uma hostilidade frente as hard sciences, mas atentar para um paradoxo:
Parece existir uma confusão intencional de atribuições e particularidades do campo científico com eventuais aplicações técnicas que podem advir do uso de dados conceitos e teorias. Recorro a um grande epistemólogo e filósofo da ciência para elucidar alguns elementos meio embaralhados:
“A ciência visa objetos para descrever e explicar, não diretamente para agir. (…)”uma teoria científica em geral não trata de fatos atuais, e sim do que chamarei de fatos virtuais, ou seja, de fatos esquemáticos, completamente determinados na rede de conceitos da própria teoria, mas incompletamente determinados enquanto realizáveis aqui e agora numa experiência.(...)O poder preditivo de uma teoria é, portanto realmente um critério de validade, mas apenas dentro dos limites atribuídos a essa predição pelo caráter parcialmente indeterminado do fato virtual, grau de indeterminação que varia muito conforme as teorias.”
“Os enunciados das ciências da empiria são propostos como verdades, bem definidas no 'referencial' de uma dada teoria, mas parciais e provisórias relativamente à experiência, dada a renovação possível e a provável melhora dos métodos de observação e de medida.”3
No mais, é uma visão da ciência filtrada pelo senso comum, uma apropriação seletiva e superficial para legitimar determinadas posições.
Há menção, no texto da Carta Capital, a presença da organização católica Opus Dei. Sua presença ajuda a manter viva a identidade cristã destas escolas. O principal teórico da educação diferenciada, o pedagogo espanhol Víctor Garcia Hoz (cujas teses são difundidas pela organização Fomento de Centros de Enseñanza,com sede em Madrid) parece ligado a Opus Dei, assim como os demais propagandistas do método, em especial na Espanha e na América Latina, de certa maneira com um pé na direita religiosa. De fato,o rígido e insistente substrato naturalista/organicista que permeia esta pedagogia deve muito ao pensamento católico e sua concepção de natureza humana (em especial na diferenciação entre os sexos), que é ineludível, permanente e quase ahistórica, cujas raízes estão fincadas no tomismo, em Aristóteles e no platonismo. Quiçá o constante recurso às neurociências e as psicologias do desenvolvimento não sirvam para dar um status mais sólido e contemporâneo a questões metafísicas religiosas que não são de competência dos saberes científicos.
Segundo a professora Marília Carvalho, da FE-USP, "vivemos na era da diversidade e da defesa de que o respeito a diferença deve ser aprendido desde cedo. Se há alguma diferença de origwem biológica ou sociocultural, entre meninos e meninas ela deve ser enfrentada ensinando a cada um a conhecer e respeitar o outro. (...) Não há comprovação em larga escala de que essa separação seja melhor mesmo para a aprendizagem. Em geral os exemplos utilizados para comprovar isso envolvem múltipls outros fatores que podem ter levado a um melhor resultado em testes, como a atenção individualizada que essa escola em Curitiba promete." Cláudia Vianna, docente da mesma instituição, complementa: " Se você tiver uma turma mista e incentivar que os meninos aprendam português e as meninas aprendam matemática, sem estimular a competitividade, eles também vão aprender. Eu acho que é um equívoco, principalmente em nome do desempenho escolar."4
As observações das professoras da FE-USP são muito pertinentes, porém numa leitura apressada dão a impressão de que a finalidade principal da escola é gerenciar a diversidade sociocultural dos alunos e “preparará-los para a vida” e não o mais importante, que é prepará-los com os conteúdos canônicos das disciplinas que tradicionalmente fazem parte do curriculo escolar.
A diferença é um dado da realidade que também é construído socialmente, em muitos casos. Se, por algum motivo, provocam constrangimentos nas relações entre os seres humanos, como no tema aqui analisado, a vida escolar, devem ser desconstruídas (ou deixadas de lado, enquanto se está concentrado no estudo. Por que a escola deveria ser a mesmidade do cotidiano? Recalcadas por alguns momentos e depois ressignificadas).
Os gurus da educação diferenciada citam partes selecionadas de pesquisas, de modo a fazer com que corroborem seus pressupostos, abusam de afirmações categóricas, totalizantes e demonstram abissal ignorância acerca da história da educação, do feminismo e das relações de trabalho.
Contrariamente ao que pregam,o discurso dos gurus da pedagogia diferenciada é profundamente ideológico, pois encobre o fato de que as ciências se desenvolvem através de críticas e reformulações de suas hipóteses, argumentos e teorias, além de conflitos por poder e representação, e não um fazer rígido e monolítico.
Outro elemento curioso é a ausênsia de manifestações dos professores como sujeitos destas escolas nas reportagens. Será que foram aconselhados pelos diretores e coordenadores destas escolas a não emitirem opinião? Seu papel se resumiria a aplicar projetos estabelecidos de cima para baixo? Meros executores?
Não questiono a legitimidade do desejo de pais e responsáveis escolherem a melhor educação para seus filhos. Todavia manifesto meu ceticismo quanto a hipervalorização do conhecimento científico sobre questões que remetem a um fundo político e ético.
A apologia da educação diferenciada traz consigo concepções ideológicas atreladas à defesa da Charter Schools (uma comunidade que administra uma escola pública com total autonomia, com certa influência de entidades privadas e ONGs), homeschooling (os pais se encarregam de escolher os professores para os seus filhos, ou eles mesmos assumem este cargo, ensinando em casa), Cheque Escola (ou school voucher,ideia popularizada pelo economista Milton Friedman, entre outros,que consiste numa espécie de vale ou cheque,subsidiados com verbas públicas, que são concedidos às famílias de baixos rendimentos para que possam escolher escolas particulares para seus filhos), entre outros.
Estes elementos acima elencados tendem a colocar em xeque os méritos do ensino público universal, laico e gratuito (e fundamentado na co-educação dos sexos). E de reboque, o Estado de Bem-Estar Social, que aqui no Brasil mal se constituiu, e da própria ideia do Estado como regulador da economia de mercado (quando esta é desmedida).
Seria lamentável e trágico um projeto que demorou décadas para ser constituído seja enfraquecido pela voragem do mercantilismo educacional e da apropriação espúria dos saberes científicos.
Notas:
2. Liberdade para poucos, pois o preço do colégio curitibano é salgado, com mensalidades de cerca de R$1350.
3.Granger, Gilles-Gaston A ciência e as ciências. Tradução: Roberto Leal Ferreira São Paulo: Editora Unesp, 1994, pp.46,48,49,78 e 79.
4. Carta Capital, n°663, 14/09/11, p. 65
Nenhum comentário:
Postar um comentário