sábado, 31 de dezembro de 2011

Daniel Piza (1970-2011)


Pegou-me de surpresa o falecimento do escritor e jornalista Daniel Piza, ontem à noite, vitimado por um AVC. Acompanhava seus artigos dominicais e blog no jornal Estado de São Paulo. O excesso de palavras só atrapalha. Assim como minhas divergências em certos aspectos são secundárias nesse momento. Serei breve. Fica um grande exemplo de independência e liberdade de espírito, num tempo onde o senso crítico desvanece em meio à proliferação de lugares-comuns, superficialidades e sectarismos que amesquinham o debate de ideias. Uma escrita elegante, precisa e espirituosa, sem nenhuma palavra desperdiçada. Um digno representante da tradição iluminista e do racionalismo crítico à maneira de Karl Popper. Soube, corajosamente dar justo valor à cultura erudita acumulada por séculos e séculos  e também as ciências, igualmente importantes na formação do sujeito culto e livre,sem manifestar, no entanto,  desprezo olímpico pela cultura pop (ou de massas, para quem preferir), reconhecendo o que pode existir de significativo em suas manifestações. Há certo parentesco intelectual do colunista do Estadão com José Guilherme Merquior (1941-1991), outro autor de trajetória precocemente interrompida,cuja vasta obra merece ser avaliada sem sectarismo ideológico.
Nossa cena cultural perdeu alguém que contribuiu para um mundo menos vulgar, ressentido e ignorante.

Meus sentimentos à seus familiares, amigos e leitores.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Antonio Vivaldi - Verão




Iconografia: Francesco Albani (1578-1660) Verão 1616-1617;
Herman Van Swanevelt (1603/1604?-1655) Paisagem com ninfas se banhando.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Nueva España: Close Encounters in the New World, 1590-1690.



Caros leitores, disponibilizo para download um precioso cd de minha coleção: Nueva España. Close Encounters in the New World, 1590-1690. Trabalho de engenho e arte realizado em 1994 por Joel Cohen (um dos maiores autoridades no campo da performance em musica medieval e renascentista), pelo ensemble Boston Camerata, entre outros grupos.

Constitui uma amostra da produção musical feita na América Espanhola entre os séculos XVI e XVII. Seus compositores, sejam nascidos no Novo Mundo ou naturais da Metrópole agregaram elementos indígenas e africanos. Trata-se de uma arte mestiça, resultado do encontro, violento, por vezes mais pacífico, mas que provocou reformulações permanentes nestas sociedades. Quem foi tocado por este processo complexo e imprevisível e complexo pertence a vários mundos numa só existência (para usar uma feliz expressão de Serge Gruzinki, no seu estudo O Pensamento Mestiço, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.).

Do mesmo modo que na América Portuguesa, predomina uma tonalidade sacra, nas composições que chegaram aos nossos dias.

Nas palavras do próprio Joel Cohen:

"A Era dos Descobrimentos! Em nosso tempo de escola, foi-nos dito que era uma época de heróis, e de grandes aventuras. Mais tarde, viemos a entender o terrível sofrimento e injustiça que os espanhóis tinham feito em sua unidade para a fama, glória e riquezas. Hoje em dia, a nossa consciência renovada do lado escuro da Conquista eliminou para sempre os demasiados simples, lugares-comuns dos livros da velha escola.

Esta gravação, no entanto,foi feita com uma intenção diversa: ele implora por atenção para os locais de encontro de luz e beleza que de fato existiram naqueles terríveis e rígidos séculos. Os índios (e, logo em seguida, os imigrantes africanos) foram imediatamente atraídos para a música que ouviram dos espanhóis. E os europeus ficaram fascinados e, muitas vezes influenciados, pela surpreendente, nova sonoridade de outras culturas.

Tão entusiasmado era a resposta dos índios a polifonia europeia para a reprodução de guitarras, harpas, flautas, charamelas, e sacabuxas, que as igrejas construídas de novo logo estavam a ponto de transbordar com qualificados, entusiasmado músicos nativos, cantando louvores ao Senhor Cristão com todos os meios à mão. O maestro / compositores geralmente vieram e foram treinados na Espanha (Sevilha era um centro especialmente importante de difusão musical para Nueva España.) Mas a maioria dos artistas (e alguns compositores), nasceram e foram criados no Novo Mundo. Eles eram, em geral, pessoas com pele marrom e negra. Uma e outra vez, os visitantes da Europa iriam notar, com espanto e admiração, a habilidade e dedicação de músicos do Novo Mundo.

Praticamente todo o repertório sobrevivente do período colonial (com exceção de umas poucas tablaturas de guitarra) é de música religiosa. Músicas de origem européia foram freqüentemente executadas no Novo Mundo - vários exemplos estão incluídas no nosso programa. Na maioria das vezes, porém, quando a música polifônica era procurado, o mestre do coro das catedrais compunham de novo a música. Havia, de um modo geral, dois tipos de modelos de estilo para as novas peças: o contraponto "neo-renascentista" em latim, idioma você vai ouvir no motetos, e um mais "barroco", estilo vernáculo empregado no villancicos. Ambos os tipos de escrita tinha suas raízes na música espanhola, ambos foram admitidos em serviços de igreja.

E ambos os estilos - um contido e conservador, o outro jovem e mesmo insolente - podem nos surpreender! Polifonia renascentista foi composta e cantada em Espanha (uma região europeia no túnel do tempo) ao longo do século XVIII, e também nas colônias espanholas (uma urdidura do tempo dentro do túnel do tempo). O som das bonitas Lamentações bonita chegam aos nossos ouvidos como se fossem escritos no 1550, a sua data real da composição foi provavelmente cerca de um século depois.

O villancicos incorporam danças, ritmos, refrões, e reminiscências do folclore ibérico. Mais fascinante de tudo, buscam assimilar as dimensões da vida popular e indígena, fazendo música no Novo Mundo. Os textos podem ser em castelhano, ou em uma das muitas línguas atuais em Nueva España: Quecha, Nahuatl, Galego, Português, afro-espanhola.

A presença de uma vigorosa cultura musical negra tão cedo na história do Novo Mundo pode vir como uma surpresa. Na verdade, tem havido um elemento africano em música espanhola desde a Idade Média. O que dá ao ouvinte uma sensação imediata de prazer - a enorme energia rítmica do villancicos do Novo Mundo - cria uma dor de cabeça considerável para o historiador de música. Será que esses ritmos característicos provém de um substrato medieval, árabo-andaluz, ou do contato do Novo Mundo com a África negra, ou (mais provável) de uma combinação de ambos?

Embora a música de Nueva España existisse na sua esfera própria, protegida, ela não é de forma "primitiva" e tecnicamente difíceis como os hinos de Nova Inglaterra da Billings ou Read. Esses compositores foram solidamente treinados, qualificados e de mente aberta. O melhor deles merecem ser classificado com seus contemporâneos de liderança na Europa, um mestre negligenciado como Araujo poderia compor círculos em torno de qualquer número no Velho Mundo.

A música de Nueva España, emergindo agora, depois de séculos de dormência e negligência, é uma fonte de orgulho e alegria para os americanos do Norte e do Sul, uma extensão preciosa do património musical Europeu e Africano musical, e uma testemunha para a possibilidade humana em nosso pequeno e turbulento planeta."

[esta apresentação de Joel Cohen  faz parte do encarte do cd, junto com as letras e comentários das músicas]


Download


THE BOSTON CAMERATA
Anne Azéma, soprano
Dana Hanchard, soprano
Derek Lee Ragin, countertenor
Richard Duguay, tenor
Daniel McCabe, baritone
Cheryl Ann Fulton, harp
Eloy Cruz, baroque guitar
Olav Chris Henriksen, baroque guitar
Frances Conover Fitch, organ, percussion
Patricia Neely, violone
Joel Cohen, percussion


Assisted by:
THE BOSTON SHAWM AND SAKBUT ENSEMBLE
THE SCHOLA CANTORUM OF BOSTON
Frederick Jodry, director


WOMEN'S CHOIR OF THE CHURCH "LES AMIS DE LA SAGESSE"
Dorchester, Massachusetts
Pierre-Louis Zephir, minister


1- Cum audisset Joannes / Alonso Lobo (Spain, 1555-1617) cornet, dulcian, and sackbuts
2- Hanacpachap cussicuinin/ Juan Pérez Bocanegra (Peru, 1631) /Camerata and Schola Cantorum
3. Deus in adjutorium /Domine ad adjuvandum / Gregorian/ Ragin and Les Amis de la Sagesse
4. Deus in adjutorium--Domine ad adjuvandum / Pedro Bermudez (Mexico ca.1650)/ Camerata and Schola Cantorum with shawms, sackbuts, and continuo
5. A este sol peregrino /Tomas de Torrejón y Velasco (b.Spain 1644-d.Peru 1728)/ Hanchard, Azéma, Ragin, and McCabe with continuo and tambourine
6. La Reina de los pangelinguas / Sebastián Aguilera de Heredia (Spain, 1561-1627) /organ
7. Lamentatio/ Don Juan de Lienas (Mexico ca. 1650) /male voices of Camerata and Schola Cantorum with cornet, sackbuts, and continuo
8. Pabanas/ Lucas Ruis de Ribayaz (Spain, 1667) /harp
9. Que se ausenta/ frei Fransisco de Santiago (b.Portugal 1578-d.Spain 1644) /Duguay, McCabe, and harp
10. Xicochi xicochi conetzintle/ Gaspar Fernandez (b. Portugal 1570-d. Mexico 1629) /Dietrich, Thompson, recorders, and organ
11. Ay Ay galeguiños / Fabián Ximeno (Mexico, ca. 1650) /Ragin with Camerata, Schola Cantorum, and continuo
12. Exultate, iusti, in domino/ Juan Guitterez de Padilla (b. Spain ca. 1595-d. Mexico 1664) /Camerata, Schola, shawms and sackbuts, guitars, harp, gamba, violone, organ
13. Tiento/ Pablo Bruna (Spain, ca. 1640) /organ
14. Dame albriçia, 'mano Anton / Gaspar Fernandez/ Hanchard, Ragin, Azéma, and McCabe
15. Gallego : Si al nacer o minimo / Juan Guitterrez de Padilla/ Duguay with Azéma, Ragin, treble viol, guitars, and harp
16. Tarara, tarara / Antonio de Salazar (b.Spain ca. 1650-d.Mexico 1715) /Azéma, Hanchard, continuo, and percussion
17. Hanacpachap cussicuinin (reprise)/ Juan Pérez Bocanegra /high voices of Camerata, Schola Cantorum, and Les Amis de la Sagesse with shawms, sackbuts, and violone
18. Los coflades de la estleya / Juan de Araujo (b. Spain 1646-d.Bolivia, 1712) /Hanchard, Ragin, Camerata, Schola Cantorum, continuo, and percussion
19. Cumba/ Sebastián de Murcia (Mexico, ca. 1700) /guitars and harp
Agnus Dei/ Gregorian /high voices of Camerata, Schola Cantorum, and Les Amis de la Sagesse
20. Agnus Dei/ Tomás Luis de Victoria (from the Missa Ave Regina) (Spain, 1548-1611) /Azéma, Hanchard, Camerata, Schola Cantorum with cornet, dulcian, sackbuts, organ, gamba, and violone
21. Guaracha: Convidando esta la noche/ Juan Garcia de Zéspiedes (Mexico,ca.1650) /Hanchard with Les Amis de la Sagesse, Azéma, Ragin, Duguay, McCabe, Schola Cantorum with organ, guitars, harp, gamba, violone, shawms and sackbuts, and percussion




Hanacpachap cussicuinin/ Juan Pérez Bocanegra (Peru, 1631)



Hanacpachap cussicuinin,
huaran cacta muchas caiqui.
Yupairuru pucocmallqui,
runa cunap suyacuinin,
callpannacpa quemi cuinin,
Huaciascaita.

Uyarihuai muchascaita
Diospa rampan Diospaman
Yuratocto hamancaiman
Yupascalla, collpascaita
Huahuarquiman suyuscaita
Ricuchillai.

A este sol peregrino /Tomas de Torrejón y Velasco (b.Spain 1644-d.Peru 1728)



A este sol peregrino
cantale glorias zagalejo
y com gusto y donayre
com goso y contento
(cantale, cantale zagalejo)
que del orbe dora las cumbres
goze sus luces.

Divino Pedro, tus glorias
oi acobardan mi voz
que no dexar registrarse
supone la luz mayor.

De oriente a oriente camina
tu soberano explendor
que aun el ocaso es principio
donde siempre naze el sol.

Tus pasos venera estampas
quien no sin asombro vio
que siendo exemplo no dexa
posible la imitacion.

Oi pues em tu Patrocinio
espera la adoracion
que te meresco esta casa
ser empleo de su amor.
A este sol peregrino...



Ay Ay galeguiños / Fabián Ximeno (Mexico, ca. 1650)



Ay ay galeguiños
ay ay ay que lo veyo mas
Ay que lo miro mas
Ay que lo veyo em un pesebriño
Ay ay o filo de Deus
ay ay que a la terra viño
Ay que lo miro
Ay que lo veyo
En un portalino.

Ay soen gantinas
e dai mil boltinas
ay tocai las flautinas
tambem los pandeiros
ay que face pucheros
por mis amoriños.

Ay ay galeguiños...

Gallego : Si al nacer o minimo / Juan Guitterrez de Padilla/



Si al nacer o mi nino se yela
por miña fe que lo prova la terra
Si o fogo tirita mas si a neve queima
si o solsiño chora e sua ama y le enjeita.
por miña fe que lo prova la terra

Si em a palla tirita o mi nino,
prestale pouco naçrer solesino
Ay!

Si la risa del alba sollousa,
prestale pouco que nasca la aurora
Ay!
Si su mesmo calor no le vale,
prestalle pouco que un boy me le abahe
Ay!

Si me chora el amor percoliñas,
valeme mais que venir de las indias
Ay!
Si em la neve o mi nino se abrasa
por miña fe que jas fogo na palla
Si o fogo tirita mas si a neve queima
si o solsiño chora e sua ama y le enjeita.
por miña fe que lo prova la terra

Si los angeles baizan tan cedo,
yo apostare que es bayjo lo celo
Ay!

Si de noite o sol cino rebumbra,
yo apostare que há naçido la luna
Ay!
Si o pastor corderiño suspira,
quero le ven pois volando nois silva

Ay!
Si o cordero há naçido na terra,
querole ven por la paz que nos deiza
Ay!



Cumba/ Sebastián de Murcia (Mexico, ca. 1700)(instrumental)



Guaracha: Convidando esta la noche/ Juan Garcia de Zéspiedes (Mexico,ca.1650)



(Juguete:)
Convivando esta la noche
Aqui de musicas varias
Al recein nacido infante
Canten tiernas alabanzas.

(Guaracha:)
Ay que me abraso ay
divino dueño ay
em la hermosura ay
de tus ojuelos ay!

Ay como llueven ay
ciendo luçeros ay
Rayos de gloria ay!
Rayos de fuego ay!

Ay que la gloria ay
del portaliño ay
ya viste rayos ay
si arrojayalos ay!

Ay que su madre ay
como em su espero ay
mira em (su)lucencia ay
sus crecimientos ay!

(Juguete:)
Alegres quando festivas
Unas hermosas zagales,
com novidad entonaron
Juguetes por la guaracha.

(Guaracha:)
En la guaracha ay
Le festinemos ay
mientras el niños ay
se rende al sueño ay!

Toquen y baylen ay
porque tenemos ay
fuego em la nieve ay
nieve em el fuego ay!

Pero el chicote ay
a un mismo tiempo ay
llora y se rrie ay
que dos estremos ay!

Paz a los hombres ay
dans de los delos ay
a dios las gracias ay
porque callenos ay!


quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sulpícia - Elegia III



Testemunhos escritos por mulheres na Antiguidade Clássica são extremamente raros. Não que inexistissem mulheres instruídas e cultas. Filósofos como Porfírio e Santo Agostinho mantinham correspondência com mulheres da elite. A filósofa Hipácia lecionava e escrevia tratados. Há a poesia de Safo e outras, em obra bastante fragmentária.

No campo literário, temos a presença de Sulpícia, poeta romana que viveu no século I a. C.

Notadamente rico, no âmbito político e cultural, foi o período compreendido entre o início do século I a. C. e a primeira metade do século I d. C. Crise da República, Principado e início do Império sob a égide de Augusto. Época de poetas como Catulo, Ovídio, Horácio, Virgílio, entre outros. Além da filosofia, jurisprudência e oratória de Cícero, os escritos de arquitetura de Vitrúvio, a história de Júlio César, Salústio e Tito Lívio,a filosofia de Lucrécio...

Naquele tempo a produção poética se desenvolvia em torno de círculos literários, patrocinados por figuras de grande prestígio e próximas do imperador. Destacavam-se Mecenas, protetor de Horácio, Virgílio ou Propércio. Outra figura de prestígio foi Marco Valério Messala Corvino, protetor de Tibulo, Lígdamo e Sulpícia. As produções poéticas destes últimos foram reunidas numa espécie de “cancioneiro”, conhecido como Corpus Tibullianum , por ser Tibulo o poeta de maior renome elencado na obra.

Sulpícia é originária deste meio. Entretanto, a respeito de sua vida existem enormes lacunas. Sabemo que era filha de Seruius Sulpicius Rufus e Valéria, irmã de Messala, tendo este, após a morte do cunhado, desempenhado um papel preponderante na educação e formação de Sulpícia.
Este contexto social e cultural, diferente do destino tradicional da mulher romana, pode ter sido fundamental para sua trajetória literária.

Na sociedade romana, as relações entre homem e mulher estavam estruturadas de maneira a proteger e cultivar a autoridade e as prerogativas e privilégios masculinos. Importante lembrar que no direito romano estava atribuído à mulher um sentido de incapacidade estatutária. A mulher era dotada de uma fraqueza de espírito (lmbelicillitas mentis). Além da infirmitas sexus, ou seja, uma leviandade mental ou enfermidade relativa ao seu sexo em relação aos varões (algo como um “homem incompleto”). Em outras palavras, a mulher que é portadora da cidadania romana possui um status jurídico inferior ao do homem (distante da vida publica e das decisões políticas, embora participasse da economia e vida social). Em grande parte era um destino submisso à fecundidade e maternidade. Gerar cidadãos e educá-los, nos primeiros anos, na transmissão dos valores cívicos.

Todavia, este contexto não fornece um panorama abrangente das vidas individuais. Há gradações neste quadro, ainda que a escassez documental não permita muita coisa. Nesse caso, a poesia de Sulpícia é uma voz dissonante neste ambiente masculino.

O amor, para os poetas elegíacos, é um sentimento a ser vivido intensamente. Contraditório, ele provoca dor, mágoa e tristeza, tanto quanto alegria e felicidade. O eu poético de Sulpícia pretente tornar público seu amor por Cerinto.

Sulpícia subverteu a tradição do poema elegíaco romano. Enquanto os poetas falam sobre seus sentimentos, reduzindo o papel da amada (puella) a uma imagem em quem o sujeito poético fantasia suas ideias e desejos; Sulpícia torna o amante (o poeta) uma voz feminina ativa e o ser amado passivo um homem.

A identidade de Cerinto é controversa, alguns estudiosos acreditavam que fosse alguém de status inferior (até mesmo um escravo). Para outros, talvez alguém do mesmo nível de Sulpícia, ou ainda um liberto (que poderia ser alguém de posses). Etimologicamente, Cerinthus é muito sugestivo, vocábulo relacionado às abelhas, ao mel e à cera. Em especial esta última tem importância simbólica importantíssima; pois os versos eram escritos em tabuinhas de cera, o veículo de comunicação entre o poeta e a amada.




III 13=IV 7


Finalmente o amor chegou e seja eu mais conhecida
por tê-lo encoberto por pudor do que por tê-lo revelado a alguém.
Comovida por meus versos Citeréia o trouxe
e o depositou em meu regaço.
Vênus cumpriu suas promessas. Se alguém, ao que se sabe,
não encontrou alegrias, que fale das minhas.
Não gostaria de confiar alguma coisa a tabuinhas seladas
para que ninguém a lesse antes de meu amado;
Alegro-me de meu erro; aborrece-me fingir por minha reputação.
Que se diga que eu fui digna com um homem digno.


III 14 = IV 8


Chega o indesejado aniversário, que deve ser passado tristemente
no campo maçante e sem Cerinto.
O que é mais agradável que a cidade? São as casas de campo convenientes
às moças? E o gélido rio da região de Arécio?
Podes descansar, Messala, excessivamente cuidadoso a meu respeito:
essas viagens, meu tio, muitas vezes não me são oportunas.
Levada para longe, deixo aqui meu coração e meus sentimentos.
Por minha vontade, embora não permitas que eu a tenha.


III 17 = IV 11


Tens, acaso, Cerinto, compaixão de tua amada?
Já que a febre castiga meus membros fatigados?
Eu não desejaria viver a doença tristemente
se não acreditasse que tu também o queres.
De que me adianta vencer a doença se podes suportar
com indiferença o mal que me atormenta?


III 18 = IV 12


Que eu não seja para ti, minha luz, a ardente paixão
que parecia ter sido há poucos dias
se, jovem tola, cometi alguma falta,
da qual eu reconheço, que me arrependo mais
do que te haver deixado só, ontem à noite,
por desejar dissimular meu próprio ardor.


Tradução de Zélia de Almeida Cardoso.

Fonte: Poesia Lírica latina. organização de Maria da Glória Novak e Maria Luíza Neri. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992

Há uma tradução em espanhol do  Corpus Tibullianum, intitulado Las elegías del Tíbul,o de Ligdamo y de Sulpicia feita por Joaquin D. Casasus, publicada no México em 1905. Está disponível na Open Library .

Bibliografia:

DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d
FILIPE, Raquel Teixeira "As elegias de Sulpícia: uma voz feminina num mundo de homens." In Ágora. Estudos Clássicos em Debate 4 (2002) 57-78
VEYNE, Paul (org.) História da vida privada, 1 : do império romano ao ano mil. Tradução: Hildegard Feist  São Paulo: Companhia das Letras, 1991



quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Hino a Ísis.



Ísis com sistrum, Museu Capitolino, Roma.
Um sacerdote sai do templo com um pote de purificação de água. Observe o sacerdote no centro conduzir os cantores. Em primeiro plano, um outro sacerdote oferece incenso à deusa de mil nomes.
Templo de Ísis, Pompéia.

Caro leitor, não confunda este texto com um homônimo "Hino a Ísis"1 disponível na blogosfera (por exemplo, aqui). O hino que transcrevo no Labirintos do Ser possivelmente é um texto do período helenístico ou romano. Assim com o Hino a Mithra, recorro à antologia Textos Sacros, da Abril Cultural. Novamente não é informada a fonte do escrito. A tradução ficou a cargo do Professor Antonio Flavio Pierucci, da FFLCH-USP. Talvez seja um dos quatro Hinos grego para Isis, escritos por Isidorus para em um templo de Fayum, no Egito, no início do século I a.C.

Os gregos identificavam Ísis à deusa Deméter. A história da deusa egípcia em busca do marido desaparecido era comparada àquela da divindade grega, que procurava sua filha Core. Seu culto foi muito estimulado no período helenístico, através da política dos Ptolomues, que proporcionaram um hibridismo entre a religião egípicia e a grega. A partir daí, teve enorme difusão na bacia do Mediterrâneo. Todavia encontrou certa hostilidade em Roma, devido a sua popularidade entre as camadas populares. O Senado Republicano ordenou várias vezes a derrubada de altares da deusa e outras divindades. Augusto proibiu a celebração dos rituais de Ísis no interior do pomoerium. Tibério ordenou a demolição do santuário da deusa e que sua estátua fosse lançada no Tibre. O Estado romano temia o caráter secreto das cerimônias e possíveis reivindicações das massas populares que a religião pudesse ocultar.

O culto encaminhou-se num sentido henoteísta 3, onde Ísis torna-se panthea, divindade única de muitos nomes. Assumia outras identidades, como Higéia, a saúde divinizada.

Junto a possibilidade de continuar a vida no além, o culto apresentava outros aspectos, que tornaram sua figura mais complexa e rica simbolicamente. Transfigurou-se em uma divindade cósmica, distribuidora de todos os bens, doce e maternal, que protege e salva.

Ísis representa o poder fertilizador na terra e na lua. Segundo o professor Walter Burkert“(...) creditam-se à Ísis poderes sobre o próprio destino, fatum: ela tem autoridade para deter a morte iminente e conceder uma nova vida, novae salutis curricula. Esse preciosíssimo dom de Ísis, o dom da vida é descrito tanto nas fontes egípcias gregas quanto nas versões gregas do culto. Mas significa claramente a vida neste nosso mundo. Deve ser uma “nova vida”, visto que a velha vida se desgastou e está a ponto de se romper; mas não é uma vida de uma outra ordem, sendo antes uma reposição para manter as coisas em andamento.” 2


Ísis, século II d.C , Coleção Farnese, Nápoles, Museo Archeologico Nazionalemármore, com restaurações do século XVIII,  na cabeça, braços e pés.

Hino a Ísis:

"Santa! Tu que, sem te cansares, velas pela salvação do gênero humano, sempre pródiga para com os mortais de cuidados que os reanimam, tu dispensas ao infeliz doce ternura de mãe. Não deixes passar um dia, uma noite, um instante sequer, sem prodigalizar teus benefícios, sem proteger os homens em terra e mar, sem afastar para bem longe as tormentas da vida, sem estender-lhes a mão protetora que desfaz as malhas mais complicadas da fatalidade, mão que acalma as tempestades da fortuna e domina o curso funesto dos astros. Os deuses do Céu te rendem homenagem, respeitam-te os deuses do inferno! Tu moves o mundo sobre seu eixo, acendes o fogo do Sol, governas o universo e calcas com teu pé o Tártaro. Os astros são dóceis à tua voz, as estações retornam à tua vontade, os deuses se alegram à tua vista, os elementos encontram-se às tuas ordens. Fazes um gesto, e as brisas se animam, incham-se as nuvens, germinam as sementes, multiplicam-se os feixes de trigo. Tua  majestade enche de santo pavor os pássaros que cortam o céu, os animais que erram pelas montanhas, as serpentes que se ocultam sob a terra, os monstros que nadam no mar. Porém, para pronunciar teus louvores, pobre demais é meu espírito. Para te oferecer sacrifícios, escassas demais as minhas posses. A voz me faltaria ao querer expressar os sentimentos que tua grandeza me inspira. Mil bocas não bastariam, nem mil línguas, nem mesmo se falassem sem esmorecimento, por toda a eternidade! Mas pelo menos terei o cuidado de fazer tudo aquilo de que é capaz, em sua pobreza, um fiel piedoso: teus traços divinos, tua pessoa sagrada, eu os guardarei para sempre fechados em meu coração, e em espírito os contemplarei."

Notas:


1. O hino ficou muito popularizado quando o escritor Paulo Coelho citou-o em seu livro "Onze minutos". Trata-se de um texto da Biblioteca de Nag Hammadi,provavelmente escrito entre os séculos II IV d.C; mais precisamente do Códice VI,2 denominado Bronté (Trovão ou Espírito Perfeito). Constitui um monólogo onde Bronté, uma personagem feminina, expõe em primeira pessoa maravilhas nela reveladas. Remete à Sabedoria hipostasiada do Antigo Testamento e as aretalogias de Ísis. Daí o nome "Hino a Ísis", embora seja uma correlação incerta, no estado atual dos conhecimentos.
2. BURKERT,Walter Antigos cultos de misterio. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Edusp, 1992, p. 30.
3. Isto é, a crença em um deus único, mesmo aceitando a existência possível de outros deuses. Pode designar também a uma personificação (entre outras) do Deus supremo,ou ainda atribuir a esse Deus o poder de assumir múltiplas personalidades.


Bibliografia:


BURKERT,Walter Antigos cultos de misterio. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Edusp, 1992
SCARPI, Paolo Politeísmos: as religiões do mundo antigo. Tradução: Camila Kintzel São Paulo: Hedra, 2004
VVAA. Textos Sacros. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 187-188

Isis recebe Io para o Egito.  afresco do Iseum em Pompéia, agora preservado, em Nápoles.
rito isíaco, afresco de Herculanum.
Sistros, instrumentos de percussão.


moedas com representações de Ísis.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Tzvetan Todorov - Sobre arte, moral e justiça; fragmentos de Em face do extremo.



Crítico, filósofo, historiador, linguista e semiólogo, Tzvetan Todorov é um dos mais importantes intelectuais contemporâneos. Nascido em Sofia (Bulgária), em 1939, Todorov mudou-se para Paris no ano de 1963, frequentando os cursos de Roland Barthes. Professor e pesquisador do Centro de Pesquisa das Artes e da Linguagem e do Centro de Linguagem da Escola de Altos Estudos Sociais, ambos em Paris, também lecionou em várias universidades dos Estados Unidos, como Yale, Harvard, Columbia e Califórnia-Berkeley. Representante de um rigoroso método estruturalista, aplicado à literatura e à crítica literária, o pensamento de Todorov foi evoluindo para a análise cultural e da história das ideias. Suas reflexões abrangem temas relacionados à questão da alteridade,do racismo, da memória e da ética. Possui vasta obra, traduzida em diversas línguas. Destaco, entre outros, As Estruturas Narrativas.São Paulo: Perspectiva, 1970;Introdução à literatura fantástica. São Paulo:Perspectiva, 1975; A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1983; O homem desenraizado. Tradução de Christina Cabo Rio de Janeiro: Record, 1996; O Espírito das Luzes. Editora Barcarolla,2008 tradução de Mônica Cristina Corrêa; A beleza salvará o mundo Tradução: Caio Meira, Rio de Janeiro: Difel, 2011.

"(...), porque a arte representativa aspira igualmente a nos revelar a verdade do mundo. Quando a história serve de ponto de partida para suas ficções, o poeta pode tomar liberdades com relação ao desenvolvimento exato dos fatos, mas para revelar sua essência oculta: aí está a superioridade da poesia sobre a história, diziam já os antigos."1
"Ao mesmo tempo, a obra de arte é também uma afirmação de valores, ela confirma, portanto, um envolvimento moral e político e a opção por estes valores só pode ser imputada ao artista: os fatos em si não detêm nenhum ensinamento, não são transparentes em relação a seu significado; é a interpretação que o artista dá que é responsável por esses julgamentos contidos na obra."2
"Há efetivamente uma dimensão moral, como vimos, na própria atividade do espírito e, portanto, na produção de uma obra de arte: há,por outro lado, uma amoralidade inerente ao gesto criador; uma vez que o artista não pode ser bem-sucedido a menos que se liberte de toda tutela dogmática e exterior."3

"(...)mal-entendidos distintos, que dizem respeito ao sentido e à própria extensão do termo 'moral'. No primeiro caso (a constatação de ausência), tomamos, parece-me, a espécie pelo gênero: do desaparecimento de uma forma de moral(de maneira geral, a que se cristalizava nas tradições) concluímos o desaparecimento da moral em geral. Ora, do modo como a compreendo, a moral não poderia desaparecer sem que produzisse uma mutação na espécie humana." 4

Para Todorov existem dois tipos de atividades humanas: as teleológicas e as intersubjetivas.
As teleológicas: "que se definem por sua finalidade,nas quais se parte de um projeto e se vai em direção da realização, pondo em prática diversas estratégias: ações que avaliamos segundo o resultado a que levam; sucesso ou fracasso; (...)
intersubjetivas: "ações que se definem pela relação que se instauram entre dois ou mais indivíduos e que poderìamos dizer,em sentido muito amplo, que sâo de comunicação, mas que correspondem tanto à compreensão quanto à imitação, ao amor tanto quanto ao poder, tanto à constituição de si quanto à do outro. (...)não se pode conceber a vida humana sem a presença simultânea das duas séries de atividades." 5

"A moral, tal como a entendo, é uma das dimensões constitutivas do mundo intersubjetivo; ela o impregna de parte a parte e constitui, ao mesmo tempo, seu ápice. Como é impossível imaginar a humanidade sem relações intersubjetivas, não podemos imaginá-las sem dimensão moral. Entendo por moral aquilo que nos permite dizer que uma ação é boa ou má. E falo de 'ápice' porque esses termos 'bem' ou 'mal' designam, de maneira quase tautológica e qualquer que seja a escola filosófica que defendamos, o que há de mais (ou menos) desejável nesse mundo de relações humanas. A ação mais louvável aí é, por definição, a ação moral. Um mundo privado de moral seria um mundo onde tudo, nas relações humanas, tornar-se-ia indiferente." 6

[as ações morais] "implicam que sejam acompanhadas do próprio sujeito da ação, um indivíduo(subjetividade), e que se dirijam a outros indivíduos (personalização). A amputação de um desses dois elementos produz uma dessas ações semelhantes à mral e, no entanto, muito distintas dela.
(...)se a ação é realizada pelo sujeito, e dirige-se não a outros indivíduos, mas a uma abstração qualquer, tal como a pátria, ou a liberdade, ou o comunismo, ou mesmo à humanidade, falamos de heroísmo ou de um de seus derivados." 7
"(...)para saber se uma ação heroica é moralmente louvável devemos saber se o destinatário humano está ausente, o heroísmo transforma-se em atos de bravata, se não de fanfarrice. (...) Se a ação está efetivamente dirigida a um ou vários indivíduos, mas não está acompanhada do próprio sujeito, que se contenta em enunciá-la (aconselhá-la, trata-se do moralismo.(...)ora, moralmente, não se pode exigir senão de si mesmo; a outrem só podemos dar (na dignidade, em que eu é, ao mesmo tempo, origem e destinatário da ação, há também estas duas instâncias: uma parte de mim dá, uma outra recebe).
"(...) A justiça não é nem subjetiva (submeter-se a ela é uma obrigação, não um mérito)nem pessoal (ela se dirige indiferentemente a todos os cidadãos, ou seja, a todos os seres humanos); mas pode reivindicar os mesmos princípios que a moral. 8

[Desse modo, segundo Todorov, a moral não se identifica com a justiça e nem com a política (que seria uma ação que visa instaurar a justiça, ou mais justiça, em um país. Assim a moral relaciona-se ao bem (e a reflexão sobre a moral algo relacionado à ordem da procura da verdade.]

Notas: 1.p. 299, 2. p.300, 3 p.301, 4 p. 324, 5 p.325, 6 p.325, 7 p. 327, 8 p. 328, todas do livro de Tzvetan Todorov, Em face do extremo.

Fonte:

TODOROV, Tzvetan Em face do extremo. Tradução de Egon de Oliveira
Rangel e Enid Abreu Dobránszky.Campinas, Papirus, 1995 (Coleção Travessia do
Século)




quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Judas Priest - Blood Red Skies






Canção épica de um álbum muito subestimado do Judas Priest;  Ram It Down, de 1988. O disco prenuncia o fabuloso Painkiller (1990),em especial nas guitarras, mas tem valor em si mesmo.



Blood Red Skies

As the sun goes down, I move around
Keeping to the shadows
Life, hangs by a thread
And I've heard it said, that I'll not see tomorrow
If that's my destiny, it'll have to be
So I'll face the future
Running out of time
I'm on the line
But I'll go down fighting

Felt the hand of justice
Telling wrong from right
Threw me out upon the street in the middle of the night

Cybernetic heartbeat
Digital precise
Pneumatic fingers nearly had me in their vice

Not begging you
I'm telling you

You won't break me
You won't make me
You won't take me,
Under blood red skies

You won't break me
You won't take me
I'll fight you under
blood red skies

Through a shattered city, watched by laser eyes
Overhead the night squad glides
The decaying paradise

Automatic sniper
With computer sights
Scans the bleak horizon for its victim of the night

Not begging you
I'm telling you

You won't break me
You won't make me
You won't take me,
Under blood red skies

You won't break me
You won't take me
I'll fight you under
blood red skies
As the end is drawing near
Standing proud, I won't give in to fear
As I die a legend will be born
I will stand, I will fight
You'll never take me alive
I'll stand my ground
I won't go down

You won't break me
You won't make me
You won't take me,
Under blood red skies

You won't break me
You won't take me
I'll fight you under
blood red skies

You'll never take me alive
I'm telling you
Hands of justice
I will stand, I will fight
As the sun goes down
I won't give in to fear

Céus Vermelhos de Sangue

Enquanto o sol se põe, eu olho pro lado
Me guardando nas sombras
A vida, pendurada por um fio
E eu escutei dizerem, que eu não irei ver o amanhã

Se esse é o meu destino, terá que ser
Assim eu irei encarar o futuro
Ficando sem tempo
Minha hora está chegando
Mas eu vou cair lutando

Senti a mão da justiça
Dizendo o que é certo e o que é errado
Me jogando no meio da rua no meio da noite

Batida do coração cibernética
Precisão digital
Dedos pneumáticos quase me tiveram na palma da mão

Não estou te pedindo
Estou te avisando

Você não irá me quebrar
Você não irá me influenciar
Você não irá me levar
Para os céus vermelho de sangue

Você não irá me quebrar
Você não irá me levar
Eu irei lutar com você
Debaixo dos céus vermelho de sangue

Através de uma cidade estraçalhada, observada por olhos de laser
Lá na frente o esquadrão da noite desliza
O paraíso decadente

Mira automática
Controlada por computador
Procura no horizonte sombrio a sua vítima da noite

Não estou te pedindo
Estou te avisando

Você não irá me quebrar
Você não irá me influenciar
Você não irá me levar
Para os céus vermelho sangue

Você não irá me quebrar
Você não irá me levar
Eu irei lutar com você
Debaixo dos céus vermelho de sangue

E enquanto o fim se aproxima
Permaneço firme, não vou me render ao medo
Quando eu morrer, uma lenda irá nascer
Eu irei levantar, irei lutar
Você nunca irá me levar vivo
Eu vou resistir
Não irei cair

Você não irá me quebrar
Você não irá me influenciar
Você não irá me levar
Para os céus vermelho de sangue

Você não irá me quebrar
Você não irá me levar
Eu irei lutar com você
Debaixo dos céus vermelho de sangue

Você nunca irá me levar vivo
Estou te avisando
Mãos da justiça
Eu irei levantar, irei lutar
E o sol se põe
Não terei medo


sábado, 22 de outubro de 2011

Franz Liszt, 200 anos.



Franz Liszt (1811-1886), por quatro grandes pianistas.

Rapsódia Húngara n º 6, Martha Argerich 1966




Liebesträume n.º 3, Evgeny Kissin



La Campanella, Yundi Li



Rapsódia Húngara, nº 10 Nelson Freire





segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Maria Rita Kehl - Três artigos:Escola? Pra que?, Leitura insubstituível e TV na educação?



Aqui estão três artigos escritos pela psicanalista Maria Rita Kehl 1 sobre a temática da educação. Foram publicados na revista Ao Mestre com Carinho, dedicada aos professores da rede pública. Escritos há mais de uma década 2,entre 1998 e 1999, estes textos não perderam a sua pertinência. Versam a respeito da leitura como aventura da descoberta do mundo e de si mesmo e como exercício da imaginação, sobre a necessidade da escola criar uma diferença/distância frente a realidade que se apresenta ao aluno, em especial à televisão, da função da escola em alargar os horizontes culturais dos alunos e não simplesmente agregar o discurso da TV no currículo, empobrecendo a formação do educando. Portanto, a educação deveria possuir uma temporalidade própria, menos imediatista. Não são muito comuns, na imprensa educacional, reflexões mais densas sobre o ato de educar que se posicionam na contracorrente do discurso mais presente hoje, que é psicologizante, prescritivo, com tendência a esvaziar o sentido da escola e do saber mais elaborado, reduzindo quase tudo a uma mera socialização e empobrecimento cultural e simbólico (tudo deveria funcionar a partir do "interesse/realidade" dos alunos, ou em outras palavras: a partir dos interesses e realidades que certas instituições acreditam pertencer ao desejo alunos e professores,mascarando outras visões e vozes. Na verdade sua intenção é o lucro e dividendos políticos).
Estes textos breves e límpidos foram elaborados com base em uma argumentação sólida, sem ironias, clichês e outros subterfúgios.. A escrita refinada e atenta dessa autora já é conhecida pelos leitores que acompanham seus textos sobre psicanálise e questões da sociedade brasileira e global. Os artigos feitos para Ao Mestre com Carinho merecem uma edição em livro.

Escola? Pra que? [Abril de 1998]

Um professor é um cara que passa a vida inteira tentando envolver outros caras em assuntos que não lhes interessam a mínima. Deve ser um sofrimento: como fazer com que crianças de dez anos deixem o vídeogame para examinar o mapa do Brasil? Como envolver adolescentes que só pensam em sexo nas questões da análise sintática? O problema se agrava quando o próprio professor não parece convencido da importância das matérias que ensina. Muitas vezes por ano, imagino, ele se vê confrontado com a indefectível questão – mas para que servem estas coisas que você nos obriga a estudar? Por que eu tenho que aprender coisas que nunca mais vou usar na vida?
Acuado, o professor apela para a ironia: "Estas coisas" servem pra você passar de ano – e basta. É um argumento forte, concordo; mas não vai fazer ninguém se apaixonar pela matemática ou pela geografia.
É como se os professores, pressionados pela lógica de uma educação de resultados – a mesma que rege, hoje, todos os vínculos sociais – tivessem se esquecido do sentido simbólico da profissão que escolheram. Se algum dia o ato de ensinar correspondeu a um belo ideal de vida, é como se as dificuldades da profissão, a desvalorização do saber e as sucessivas desvalorizações salariais, tudo tivesse contribuído para o rebaixamento daquele ideal.
Os alunos não sabem para quê aprendem muitas coisas. Mas é preciso que o professor saiba. Estas coisas distantes do nosso cotidiano, estes saberes abstratos, sem utilidade prática – literatura, história antiga, a vida das plantas, o comportamento dos átomos! – são o acervo de cinco, dez mil anos de civilização. São a medida de nossa humanidade, o melhor que o homem já produziu enquanto não estava ocupado em matar, subjugar, escravizar seu semelhante. Enquanto estava investigando, contemplando, testando humildemente algumas hipóteses, brincando de criar um mundo melhor (poesia!) entre as quatro paredes de um quarto.
Se este parece um privilégio ao alcance de uma minoria de crianças e adolescentes, é porque nosso ensino (ainda!) não foi democratizado como deveria. Pois esta devia ser a condição de ingresso de qualquer cidadão na cultura. O rito de passagem do estado de natureza para a civilização. O que a escola faz por nós é nos apresentar uma pequena amostra dos saberes humanos, com seus acertos e erros, suas pretensões e sua grandeza, e com isto dizer ao adolescente – bem-vindo ao clube! Junte-se a nós na tremenda tarefa de entender o mundo!
O professor faz o convite e apresenta o cardápio do banquete. Cabe ao aluno decidir se quer entrar na festa ou não.

Leitura insubstituível  [Abril de 1999]

Aos seis anos ganhei de meu avô paterno O Saci, de Monteiro Lobato. Estava começando a me alfabetizar, e o livro me pareceu enorme; seria capaz de atravessar todas aquelas páginas cobertas de palavras de alto a baixo, com raras ilustrações, tão diferentes da minha cartilha Caminho Suave? Encorajada por minha mãe, resolvi começar a leitura. Foi uma surpresa. Como é que eu poderia imaginar que aquelas letras miúdas, agrupadas e alinhadas de um jeito que ainda me parecia misterioso, estariam falando comigo?
E estavam. Estavam me contando uma estória, como só as avós muito pacientes são capazes de contar. Fui percebendo (como? até hoje não consigo explicar; desconfio que ninguém consegue) que as letras formavam palavras, quase todas minhas conhecidas; as palavras se agrupavam em frases, não tão corriqueiras como as que dizíamos em casa, mas bastante compreensíveis. Mas o melhor de tudo é que as frases se encadeavam numa sucessão de acontecimentos, diálogos, situações através das quais eu ia sendo conduzida, suspensa, até o final.
Fiquei com saudades da estória assim que ela acabou. Do ambiente do Sítio do Picapau Amarelo, da mata, de Pedrinho, da Cuca e do próprio moleque Saci. Então, descobri que era fácil matar a saudade. Recomecei o livro, sem a mesma surpresa da primeira vez mas percebendo detalhes que me haviam escapado, entendendo cenas que haviam ficado confusas, etc. Nunca mais parei de ler, principalmente estórias, aventuras, romances. Até hoje prefiro a literatura de ficção a qualquer outro tipo de leitura, mesmo a poesia.
Tenho uma certa pena do que os autores de livros infantis oferecem, hoje, às crianças da geração-televisão. Há um certo pressuposto de que elas não sejam capazes de acompanhar uma estória longa, relativamente complexa. Crianças de sete a dez anos têm se acostumado a uma literatura breve, em linguagem coloquial, com enredos simplificados que elas possam acompanhar sem muito esforço. Freqüentemente são estórias lindas, quase como crônicas, onde o senso de humor se alia ao sentido poético. Outras são comentários irônicos sobre a vida em família, a chatice dos adultos, ciúmes entre irmãos, separações. Ajudam a criança a elaborar sua própria experiência.
Mas o que me preocupa é a brevidade de tudo, como se a literatura infantil estivesse o tempo todo atrás da velocidade da televisão, respondendo a ela, competindo com ela pela atenção da criança. Há autores que apostam cada vez mais pesado em recursos de suspense, crime e violência; outros recorrem ao sobrenatural, buscando pela via do terror a adrenalina (esta droga dos anos noventa) que aparentemente só a tevê e os videogames são capazes de liberar.
Outros ainda, temendo que a criança não suporte acompanhar uma narrativa cheia de peripécias até o fim, introduzem o elemento participativo — "se você acha que o Zezinho vai abrir a porta secreta, pule até a página 20"/ "se você decidiu que a Joana deve beijar o João, vá direto à página 17", etc. Uma espécie de Você decide, bastante divertido, onde se elimina entretanto um elemento fundamental em nossa relação com qualquer obra da cultura: a alteridade. Quando a criança interfere no enredo e decide o desfecho de uma estória ela está reproduzindo a si mesma. Verdade que os termos da escolha já estão dados pelo autor; mas se ela conduz as alternativas, está perdendo a oportunidade de ser conduzida. De se alegrar, surpreender ou frustrar com o que outra pessoa inventou. Mais ainda: quando a literatura se transforma em jogo, revela a própria farsa. A criança-leitor perde assim a oportunidade de acreditar na ficção, deixar-se envolver pela imaginação e enriquecer a sua própria capacidade de inventar.
O mundo, a vida, são vastos demais. O pouquinho que nos é dado viver fica ampliado, multiplicado, no contacto com a literatura. Descobrimos assim, em espelho, que à vastidão da vida corresponde a vastidão ilimitada de nosso mundo interno. Passar horas, dias, semanas pendurada num livro, é uma experiência de natureza radicalmente diferente da que a televisão oferece. É insubstituível. Penso que os autores de literatura infantil deveriam confiar mais na sua praia e desistir de vez de competir com a velocidade, por sinal imbatível, da telinha.

TV na educação?   [Agosto de 1999]

O que diferencia a relação com a televisão de outras que a criança possa ter com objetos de prazer é seu caráter de continuidade. Doméstica, acessível e onipresente, a televisão representa para a criança uma fonte constante de emissão de estímulos, fantasias e solicitações. Independente do conteúdo da programação, para a criança que passa a maior parte de seu tempo livre diante da televisão a experiência do vazio, da solidão e da frustração são fantasmas distantes a ser evitados com um simples toque de botão; da telinha, vozes e imagens sedutoras surgem para lhe dizer que ela nunca estará só – muito menos em falta.
Ao mesmo tempo, o ritmo veloz da sucessão de imagens televisivas predispõe à dispersão: se uma unidade narrativa – uma frase, um diálogo, um pensamento, uma imagem complexa – demorar mais do que trinta segundos para concluir e dar lugar a outra, o espectador (e não apenas a criança) deixa de prestar atenção. Se a televisão treina para a velocidade, por outro lado dispensa a necessidade de atenção continuada, de adiamento da satisfação, de se constituir estruturas psicológicas capazes de suportar a demora – fundamentais para o desenvolvimento da capacidade de raciocínio.
A televisão não reprime o pensamento, mas absolutamente não o solicita. Sua estratégia não é repressiva; é sedutora. Pode ser comparada à grande mãe onipotente que não abandona sua criança, nunca; e solicita: volte, eu quero você. Eu tenho um mundo de surpresas para você. "Quem tem Globo tem tudo", certo?
O efeito desta sedução sobre o sujeito, embora excitante, a médio prazo pode se fazer depressivo. Quanto mais a televisão preenche (o tempo, a mente, a fantasia, a vida enfim), maior o vazio deixado pela falta de outras modalidades de experiência. Mais cedo ou mais tarde, para sobreviver, a criança terá necessidade de provar deste caroço duro do real que resiste à realização de desejos. Mas este conhecimento, a televisão não pode lhe oferecer.
Neste sentido, apesar de seu potencial como veículo de informações, sou absolutamente contrária à entrada da televisão nas escolas. A tarefa dos educadores contemporâneos, cada vez mais urgente, é criar espaços de experiência livres do domínio da televisão.

Notas:
1- Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. Entre outras obras, publicou Deslocamentos do Feminino - A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade. Rio de Janeiro:Imago Editora; 1998, Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo:Companhia das Letras, 2002; Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004; A Fratria Órfã. São Paulo: Editora Olho d'Água, 2008; O Tempo e o Cão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
2- Ao mestre com carinho foi editada pelo Grupo Estudo Estratégia e Informação entre abril de 1998 e novembro de 2000. Os artigos que transcrevo nesta postagem são referentes às seguintes edições, respectivamente: ano 1,n°0, abril de 1998, ano 2, n°9, abril de 1999, ano2, n°13, agosto de 1999. Posteriormente ela ganhou uma versão digital e depois tornou-se um site. As edições impressas então disponíveis neste link: http://www.aomestre.com.br/