segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Maria Rita Kehl - Três artigos:Escola? Pra que?, Leitura insubstituível e TV na educação?



Aqui estão três artigos escritos pela psicanalista Maria Rita Kehl 1 sobre a temática da educação. Foram publicados na revista Ao Mestre com Carinho, dedicada aos professores da rede pública. Escritos há mais de uma década 2,entre 1998 e 1999, estes textos não perderam a sua pertinência. Versam a respeito da leitura como aventura da descoberta do mundo e de si mesmo e como exercício da imaginação, sobre a necessidade da escola criar uma diferença/distância frente a realidade que se apresenta ao aluno, em especial à televisão, da função da escola em alargar os horizontes culturais dos alunos e não simplesmente agregar o discurso da TV no currículo, empobrecendo a formação do educando. Portanto, a educação deveria possuir uma temporalidade própria, menos imediatista. Não são muito comuns, na imprensa educacional, reflexões mais densas sobre o ato de educar que se posicionam na contracorrente do discurso mais presente hoje, que é psicologizante, prescritivo, com tendência a esvaziar o sentido da escola e do saber mais elaborado, reduzindo quase tudo a uma mera socialização e empobrecimento cultural e simbólico (tudo deveria funcionar a partir do "interesse/realidade" dos alunos, ou em outras palavras: a partir dos interesses e realidades que certas instituições acreditam pertencer ao desejo alunos e professores,mascarando outras visões e vozes. Na verdade sua intenção é o lucro e dividendos políticos).
Estes textos breves e límpidos foram elaborados com base em uma argumentação sólida, sem ironias, clichês e outros subterfúgios.. A escrita refinada e atenta dessa autora já é conhecida pelos leitores que acompanham seus textos sobre psicanálise e questões da sociedade brasileira e global. Os artigos feitos para Ao Mestre com Carinho merecem uma edição em livro.

Escola? Pra que? [Abril de 1998]

Um professor é um cara que passa a vida inteira tentando envolver outros caras em assuntos que não lhes interessam a mínima. Deve ser um sofrimento: como fazer com que crianças de dez anos deixem o vídeogame para examinar o mapa do Brasil? Como envolver adolescentes que só pensam em sexo nas questões da análise sintática? O problema se agrava quando o próprio professor não parece convencido da importância das matérias que ensina. Muitas vezes por ano, imagino, ele se vê confrontado com a indefectível questão – mas para que servem estas coisas que você nos obriga a estudar? Por que eu tenho que aprender coisas que nunca mais vou usar na vida?
Acuado, o professor apela para a ironia: "Estas coisas" servem pra você passar de ano – e basta. É um argumento forte, concordo; mas não vai fazer ninguém se apaixonar pela matemática ou pela geografia.
É como se os professores, pressionados pela lógica de uma educação de resultados – a mesma que rege, hoje, todos os vínculos sociais – tivessem se esquecido do sentido simbólico da profissão que escolheram. Se algum dia o ato de ensinar correspondeu a um belo ideal de vida, é como se as dificuldades da profissão, a desvalorização do saber e as sucessivas desvalorizações salariais, tudo tivesse contribuído para o rebaixamento daquele ideal.
Os alunos não sabem para quê aprendem muitas coisas. Mas é preciso que o professor saiba. Estas coisas distantes do nosso cotidiano, estes saberes abstratos, sem utilidade prática – literatura, história antiga, a vida das plantas, o comportamento dos átomos! – são o acervo de cinco, dez mil anos de civilização. São a medida de nossa humanidade, o melhor que o homem já produziu enquanto não estava ocupado em matar, subjugar, escravizar seu semelhante. Enquanto estava investigando, contemplando, testando humildemente algumas hipóteses, brincando de criar um mundo melhor (poesia!) entre as quatro paredes de um quarto.
Se este parece um privilégio ao alcance de uma minoria de crianças e adolescentes, é porque nosso ensino (ainda!) não foi democratizado como deveria. Pois esta devia ser a condição de ingresso de qualquer cidadão na cultura. O rito de passagem do estado de natureza para a civilização. O que a escola faz por nós é nos apresentar uma pequena amostra dos saberes humanos, com seus acertos e erros, suas pretensões e sua grandeza, e com isto dizer ao adolescente – bem-vindo ao clube! Junte-se a nós na tremenda tarefa de entender o mundo!
O professor faz o convite e apresenta o cardápio do banquete. Cabe ao aluno decidir se quer entrar na festa ou não.

Leitura insubstituível  [Abril de 1999]

Aos seis anos ganhei de meu avô paterno O Saci, de Monteiro Lobato. Estava começando a me alfabetizar, e o livro me pareceu enorme; seria capaz de atravessar todas aquelas páginas cobertas de palavras de alto a baixo, com raras ilustrações, tão diferentes da minha cartilha Caminho Suave? Encorajada por minha mãe, resolvi começar a leitura. Foi uma surpresa. Como é que eu poderia imaginar que aquelas letras miúdas, agrupadas e alinhadas de um jeito que ainda me parecia misterioso, estariam falando comigo?
E estavam. Estavam me contando uma estória, como só as avós muito pacientes são capazes de contar. Fui percebendo (como? até hoje não consigo explicar; desconfio que ninguém consegue) que as letras formavam palavras, quase todas minhas conhecidas; as palavras se agrupavam em frases, não tão corriqueiras como as que dizíamos em casa, mas bastante compreensíveis. Mas o melhor de tudo é que as frases se encadeavam numa sucessão de acontecimentos, diálogos, situações através das quais eu ia sendo conduzida, suspensa, até o final.
Fiquei com saudades da estória assim que ela acabou. Do ambiente do Sítio do Picapau Amarelo, da mata, de Pedrinho, da Cuca e do próprio moleque Saci. Então, descobri que era fácil matar a saudade. Recomecei o livro, sem a mesma surpresa da primeira vez mas percebendo detalhes que me haviam escapado, entendendo cenas que haviam ficado confusas, etc. Nunca mais parei de ler, principalmente estórias, aventuras, romances. Até hoje prefiro a literatura de ficção a qualquer outro tipo de leitura, mesmo a poesia.
Tenho uma certa pena do que os autores de livros infantis oferecem, hoje, às crianças da geração-televisão. Há um certo pressuposto de que elas não sejam capazes de acompanhar uma estória longa, relativamente complexa. Crianças de sete a dez anos têm se acostumado a uma literatura breve, em linguagem coloquial, com enredos simplificados que elas possam acompanhar sem muito esforço. Freqüentemente são estórias lindas, quase como crônicas, onde o senso de humor se alia ao sentido poético. Outras são comentários irônicos sobre a vida em família, a chatice dos adultos, ciúmes entre irmãos, separações. Ajudam a criança a elaborar sua própria experiência.
Mas o que me preocupa é a brevidade de tudo, como se a literatura infantil estivesse o tempo todo atrás da velocidade da televisão, respondendo a ela, competindo com ela pela atenção da criança. Há autores que apostam cada vez mais pesado em recursos de suspense, crime e violência; outros recorrem ao sobrenatural, buscando pela via do terror a adrenalina (esta droga dos anos noventa) que aparentemente só a tevê e os videogames são capazes de liberar.
Outros ainda, temendo que a criança não suporte acompanhar uma narrativa cheia de peripécias até o fim, introduzem o elemento participativo — "se você acha que o Zezinho vai abrir a porta secreta, pule até a página 20"/ "se você decidiu que a Joana deve beijar o João, vá direto à página 17", etc. Uma espécie de Você decide, bastante divertido, onde se elimina entretanto um elemento fundamental em nossa relação com qualquer obra da cultura: a alteridade. Quando a criança interfere no enredo e decide o desfecho de uma estória ela está reproduzindo a si mesma. Verdade que os termos da escolha já estão dados pelo autor; mas se ela conduz as alternativas, está perdendo a oportunidade de ser conduzida. De se alegrar, surpreender ou frustrar com o que outra pessoa inventou. Mais ainda: quando a literatura se transforma em jogo, revela a própria farsa. A criança-leitor perde assim a oportunidade de acreditar na ficção, deixar-se envolver pela imaginação e enriquecer a sua própria capacidade de inventar.
O mundo, a vida, são vastos demais. O pouquinho que nos é dado viver fica ampliado, multiplicado, no contacto com a literatura. Descobrimos assim, em espelho, que à vastidão da vida corresponde a vastidão ilimitada de nosso mundo interno. Passar horas, dias, semanas pendurada num livro, é uma experiência de natureza radicalmente diferente da que a televisão oferece. É insubstituível. Penso que os autores de literatura infantil deveriam confiar mais na sua praia e desistir de vez de competir com a velocidade, por sinal imbatível, da telinha.

TV na educação?   [Agosto de 1999]

O que diferencia a relação com a televisão de outras que a criança possa ter com objetos de prazer é seu caráter de continuidade. Doméstica, acessível e onipresente, a televisão representa para a criança uma fonte constante de emissão de estímulos, fantasias e solicitações. Independente do conteúdo da programação, para a criança que passa a maior parte de seu tempo livre diante da televisão a experiência do vazio, da solidão e da frustração são fantasmas distantes a ser evitados com um simples toque de botão; da telinha, vozes e imagens sedutoras surgem para lhe dizer que ela nunca estará só – muito menos em falta.
Ao mesmo tempo, o ritmo veloz da sucessão de imagens televisivas predispõe à dispersão: se uma unidade narrativa – uma frase, um diálogo, um pensamento, uma imagem complexa – demorar mais do que trinta segundos para concluir e dar lugar a outra, o espectador (e não apenas a criança) deixa de prestar atenção. Se a televisão treina para a velocidade, por outro lado dispensa a necessidade de atenção continuada, de adiamento da satisfação, de se constituir estruturas psicológicas capazes de suportar a demora – fundamentais para o desenvolvimento da capacidade de raciocínio.
A televisão não reprime o pensamento, mas absolutamente não o solicita. Sua estratégia não é repressiva; é sedutora. Pode ser comparada à grande mãe onipotente que não abandona sua criança, nunca; e solicita: volte, eu quero você. Eu tenho um mundo de surpresas para você. "Quem tem Globo tem tudo", certo?
O efeito desta sedução sobre o sujeito, embora excitante, a médio prazo pode se fazer depressivo. Quanto mais a televisão preenche (o tempo, a mente, a fantasia, a vida enfim), maior o vazio deixado pela falta de outras modalidades de experiência. Mais cedo ou mais tarde, para sobreviver, a criança terá necessidade de provar deste caroço duro do real que resiste à realização de desejos. Mas este conhecimento, a televisão não pode lhe oferecer.
Neste sentido, apesar de seu potencial como veículo de informações, sou absolutamente contrária à entrada da televisão nas escolas. A tarefa dos educadores contemporâneos, cada vez mais urgente, é criar espaços de experiência livres do domínio da televisão.

Notas:
1- Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. Entre outras obras, publicou Deslocamentos do Feminino - A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade. Rio de Janeiro:Imago Editora; 1998, Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo:Companhia das Letras, 2002; Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004; A Fratria Órfã. São Paulo: Editora Olho d'Água, 2008; O Tempo e o Cão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
2- Ao mestre com carinho foi editada pelo Grupo Estudo Estratégia e Informação entre abril de 1998 e novembro de 2000. Os artigos que transcrevo nesta postagem são referentes às seguintes edições, respectivamente: ano 1,n°0, abril de 1998, ano 2, n°9, abril de 1999, ano2, n°13, agosto de 1999. Posteriormente ela ganhou uma versão digital e depois tornou-se um site. As edições impressas então disponíveis neste link: http://www.aomestre.com.br/

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