sábado, 15 de outubro de 2011

Sobre afirmar-se como professor.



Na ocasião de uma feira científico-cultural, realizada em 2007, na escola em que eu lecionava, o coordenador pedagógico sugeriu ao corpo docente o uso de uma camiseta branca com os seguintes dizeres: “Sou mais que professor, sou educador” (ou algo semelhante, e o nome da escola, se acima ou embaixo da frase, não me recordo). Esse slogan já fazia parte do seu discurso enquanto coordenador pedagógico, pontificando a respeito das dimensões “mais amplas, mais profundas” da profissão docente e do ato de ensinar.
Não vesti a tal camisa. Trajei uma preta, em parte porque gosto mais de roupas escuras; em parte porque passava por um momento difícil e estressante, e o slogan e seu ideário causavam-me ojeriza.

Talvez considerasse um discurso infame, mascarando com palavras bonitas e vazias uma realidade mais complexa. Um analgésico que alivia um pouco a dor, mas esconde uma infecção mais aguda e que precisa ser cuidada de forma mais premente. De certa forma continuo pensando assim, mas pretendo articular essa repulsa num discurso mais organizado.

Com a melhor intenção possível, o coordenador pretendia criar um “clima de união”, “solidariedade” entre os professores. Era início do quarto bimestre, ninguém aguentava mais tanta tensão etc.

Segundo o discurso corrente ser educador seria algo mais “amplo”, “adequado” à contemporaneidade da profissão docente, enquanto à palavra professor, cuja função se limitaria a um mero “transmissor de conhecimentos”, aquele que “ensina” determinado conteúdo, e não mais do que isso. Como se fosse demeritório, vergonhoso ensinar a legalidade de uma ciência ou outro saber escolar.

Portanto, há uma positividade concedida à palavra educador, enquanto professor tende a concentrar certa negatividade, uma marca de “insuficiência”, “limitação”, não compatibilidade a sociedade e a escola tal como se configuram hoje. Refiro-me a "sociedade" e "escola" como certos discursos veiculado por algumas instituições e meios (econômicos, políticos, pedagógicos e midiáticos)que pensam como "realmente" a "sociedade" e a "escola" devem "ser" e "funcionar", desconsiderando a complexidade do real.

Não vejo problema algum em me considerar professor. Aparecem algumas manifestações de consideração, o fato de que sou “um sofredor”. Com certeza o pouco prestígio da profissão incomoda enormemente. Todavia, autodenominar-se “educador” não muda muito a situação.

Neste blog me defino como historiador e professor. Isto leva a uma outra historinha: nos meus tempos de graduação na FFLCH – USP, ou mais precisamente na licenciatura em História pela FE da mesma universidade, as aulas de metodologia do ensino eram um desfile de lamentações, em especial daqueles que já lecionavam há algum tempo na rede pública ou particular. Em dado momento alguém afirmava que era historiador e não professor de história. Creio que o (ou a) colega não estava desqualificando a figura do professor, apenas afirmando uma identidade profissional, ainda mais porque a profissão de historiador ainda espera pela sua regulamentação (os projetos de lei que surgiram eram insatisfatórios).

No entanto, tal manifestação não esconde certo mal-estar pela condição atual do trabalho docente; pouco reconhecimento social, indiferença de parte dos alunos e famílias, precariedade de recursos, remuneração injusta, jornadas de trabalho enormes, pouco tempo para se aprimorar culturalmente, situações de violencia... O que é triste, pois o imaginário do professor de história que eu  tive na infância e adolescência é forte, ele abriu portas para o conhecimento de outros tempos e realidades, influenciando nas escolhas profissionais de alguns, (em parte é meu caso). 

Existe também a imagem do professor de história “dogmático e doutrinador político” (é só falar mal do governo que você ganha boa nota com ele, rssssss). Mas fica para outra ocasião.

Dada à condição neotênica dos seres humanos, ou seja, o nosso inacabamento ao nascer, a infância longa e o processo de desenvolvimento contínuo que continua após o nascimento, a educação e função do educador é algo anterior à invenção das instituições de ensino e configuração da profissão docente. Daí o papel primordial da família na transmissão da cultura. O ato de educar é uma característica humana.

Portanto, de certa forma, todos somos “educadores”. Em certas  ocasiões aprendemos e ensinamos formal ou informalmente determinados momentos. No entanto, há uma diferença em afirmar-se professor e ser educador. Não pretendo diabolizar a palavra "educador", apenas atentar para o fato de que ela pode ser um meio que desqualifica o trabalho específico do educador segundo determinados interesses.

O que está em jogo aqui é a especificidade do trabalho do professor. Trata-se de uma escolha profissional, exercida em instituições, com regras, saberes e hierarquias próprias, num contexto de tradições públicas, que compreendem o ensinar a ler e escrever, o ensino de artes, ciências e outras formas de conhecimento que possuem critérios de avaliação e validação. Não é (ou não deveria ser) qualquer coisa.

Etimologicamente, a palavra professor (lat professor, ōris) formou-se a partir do latim profiteri, com o mesmo significado, formada por fateri (confessar), com o prefixo pro- (diante, no sentido de algo, alguém “à vista, diante de todos). A partir de certo momento da história, o professor passou a ser aquele que professava, ou seja, declarava, proclamava publicamente que possuía determinados conhecimentos relativos a certas áreas do saber e que podia transmití-los. Compreender as razões que levam muitos profissionais da educação a se envergonhar desta designação e as injunções políticas e ideológias que alimentam esta situação é a tarefa que continuarei numa futura postagem. Por mim, sem falsos medos e pudores, prefiro ser chamado de professor do que o demasiado vago (e um tanto enganoso) termo educador.

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