sábado, 15 de outubro de 2011

David Hume - Do estudo da história (1741).



Este texto do filósofo escocês David Hume (1711-1776) faz parte dos seus Ensaios Morais, Políticos e Literários. Publicados em 1741-1741, foram revistos várias vezes pelo autor, com alguns sendo adicionados ou removidos (como é o caso deste, que transcrevo  nesta  postagem) ao longo das reedições. Foram bem recebidos pelo público, um best-seller da época, proporcionando ao filósofo uma vida confortável.
Encontramos aqui um pouco da concepção iluminista de história, o tempo como uma flecha rumo ao progresso, ou seja, maior refinamento nos costumes e instituições políticas. Ecos da célebre formulação de Cícero, da "História como mestra da vida" estão presentes. Assim debruçar-se sobre o passado seria um entretenimento elevado, porém não só relacionado aos fatos mais memoráveis e das ações mais célebres, mas também dos vícios e atrocidades que acompanham a trajetória da humanidade. Nesse caso há uma função pedagógica e moralizante.
Certamente após o historicismo de Ranke, as críticas de Marx, Durkheim, Weber e Simiand à história factual, os novos direcionamentos teóricos e metodológicos propostos pela Escola dos Annales, pelas historiografias italiana e alemã, a "virada linguística" e o pós-modernismo tudo isso parece ingênuo e superficial. Todavia aqui se propõe algo que ficou meio deixado de lado: uma dimensão lúdica, diletante. Ela pode ser uma maneira de proporcionar prazer, sem renunciar à razão e ao espírito crítico.

"Não existe nada que eu recomendaria com mais convicção às minhas leitoras do que o estudo da história, por ser a ocupação, entre todas as outras, mais adequada não somente ao seu sexo como à sua educação, muito mais instrutiva do que os seus livros de entretenimento habituais e muito mais divertida do que aquelas composições sérias que geralmente se encontram em seus armários. Entre outras verdades importantes, que elas podem aprender com a história, as leitoras podem se informar sobre duas em particular, cujo conhecimento contribuirá bastante para sua serenidade e repouso; Que o nosso sexo, bem como o delas, está longe de ser constituído por criaturas tão perfeitas como elas podem imaginar; e Que o Amor não é a única paixão que governa o mundo masculino, poi ele é freqüentemente sobrepujado pela avareza, pela ambição, pela vaidade e por mil outras paixões. Levando em conta esses dois particulares, se são mal-intencionados os representantes do sexo masculino que recomendam os romances e novelas ao sexo frágil eu não sei; mas devo confessar que sinto alguma tristeza ao vê-las com tanta aversão pela realidade dos fatos e com tamanho apetite pela ilusão. Lembro que, numa ocasião, fui solicitado por uma jovem beleza, por quem eu nutria alguma paixão, a lhe enviar novelas e romances para a sua diversão durante a sua estada no campo; mas eu não era egoísta a ponto de tirar proveito das possibilidades que tal leitura poderia me proporcionar e estava mesmo decidido a não fazer um mau uso das armas envenenadas contra ela. Por isso, eu lhe enviei as Vidas de PLUTARCO,assegurando-lhe, ao mesmo tempo, que não existia uma palavra sequer de verdade naquele livro, do começo ao fim. Ela o leu com muita atenção, até chegar às vidas de ALEXANDRE e CÉSAR, cujos nomes ela ouvira por acidente; e então me devolveu o livro, reprovando-me muito por enganá-la.

Na verdade, podem alegar que o sexo frágil não demonstra tal aversão pela história, tal como representei aqui; desde que se trate de uma história secreta e contenha alguma transação memorável, de forma a excitar a sua curiosidade. Mas como eu não considero que a verdade, que é a base da história, tenha qualquer parentesco com essas anedotas, não posso admitir que isso seja uma prova de sua paixão por aquele estudo. Por mais que essa paixão possa existir, não vejo por que a mesma curiosidade não possa ser direcionada de uma forma mais adequada, levando-as a se interessar pelos relatos daqueles que viveram em épocas passadas, bem como de seus contemporâneos. Que importância tem para CLEORA se FÚLVIA mantém ou não um comércio secreto de Amor com FILANDRO? Não tem ela igual razão para ficar satisfeita, quando lhe informaram (e isto é sussurrado entre os historiadores) que a mulher de CATÃO armara uma intriga com CÉSAR e convencera seu filho, MARCUS BRUTUS, de que o amava como marido, embora na verdade ele fosse seu amante? E não são os amores de MESSALINA e JÚLIA temas narrativos tão interessantes quanto qualquer intriga que esta cidade tenha produzido nos últimos anos?

Mas não sei de onde se tirou a ideia de que eu fui de algum modo contaminado por uma sorte de implicância contra as mulheres: A menos, talvez, que isto proceda do mesmo motivo que faz alguém que, sendo o companheiro favorito de uma mulher, é também objeto de pilhérias e brincadeiras, ainda que bem-intencionadas. De qualquer forma, é agradável nos dirigirmos a alguém que nos é agradável; e presumir, ao mesmo tempo, que nada será levado a mal por alguém que esteja seguro da boa opinião e dos afetos de qualquer um presente. Passarei agora a abordar meu tema mais seriamente, e apontarei as muitas vantagens que resultam do estudo da história; mostrarei também como este é adequado a todas as pessoas, mas particularmente àquelas que se privam dos estudos mais rigorosos, pela fragilidade de sua natureza ou pela fraqueza de sua educação. As vantagens encontradas na história parecem se dividir em três tipos: ela entretém a imaginação, desenvolve a compreensão e fortalece a virtude.

Será que existe, a rigor, um entretenimento mais agradável ao espírito do que ser transportado às mais remotas épocas do mundo e observar a sociedade humana em sua infância, fazendo os primeiros e débeis ensaios em direção às artes e ciências? Do que ver a política dos governos, e a civilidade da conversação se refinarem pouco a pouco, e tudo o que é ornamental à vida humana avançar rumo à sua perfeição? Observar a ascensão, o progresso, o declínio e a extinção final dos impérios mais poderosos; As virtudes, que contribuíram para a sua grandeza, e os vícios, que provocaram a sua ruína? Resumindo, ver toda a raça humana, desde o início dos tempos, passar como numa retrospectiva diante de nossos olhos; aoarecendo em suas cores verdadeiras, sem qualquer daqueles disfarces que, durante o seu tempo de vida, comprometeram o julgamento de tantas pessoas: Pode-se imaginar espetáculo mais magnífico, mais variado e interessante? Que diversão, tanto dos sentidos quanto da imaginação se lhe pode comparar? Aqueles passatempos triviais, que absorvem tanto do nosso tempo, podem ser considerados mais satisfatórios e mais dignos de atrair nossa atenção? Quão pervertido deve estar um gosto capaz de fazer uma escolha de prazer tão equivocada!
Mas a história desenvolve o conhecimento, além de constituir uma diversão agradável; e uma grande parte daquilo que geralmente chamamos de Erudição e que temos em tão alta conta não é senão uma familiaridade com os fatos históricos. Um conhecimento extenso deste tipo pertence aos homens de letras; mas devo julgar uma ignorância imperdoável das pessoas, seja qual for seu sexo ou condição social, que não conheçam a história de seu próprio país, além da história da GRÉCIA e de ROMA. Uma mulher pode se comportar com boas maneiras, até mesmo demonstrar alguma vivacidade e inteligência; mas quando seu espírito é tão pouco estimulado, é impossível que sua conversação possa proporcionar qualquer entretenimento a homens sensatos e reflexivos.
Devo acrescentar que a história não é somente uma região valiosa do conhecimento, mas abre portas para muitas outras regiões, além de fornecer material para a maioria das ciências. E, de fato,se considerarmos a brevidade da vida humana, e o nosso limitado saber mesmo no que se refere ao nosso próprio tempo, devemos estar cientes de que seríamos eternas crianças no nosso conhecimento, se não fosse por essa invenção, que amplia a nossa experiência a todas as épocas passadas, e rumo às nações mais distantes; e que contribui significativamente para o progresso do nosso saber, como se toda a história se tivesse passado efetivamente sobre a nossa observação. De um homem familiarizado com a história pode-se dizer que, de certa forma, ele viveu desde o princípio do mundo e fez contínuas adições ao seu estoque de conhecimento a cada século.
Também existe outra vantagem naquela experiência adquirida por meio da história, acima do que é aprendido com a experiência do mundo, que é a de nos tornar familiarizados com os negócios humanos, sem diminuirmos em qualquer grau os nossos mais delicados sentimentos da virtude: E, para ser franco, eu não conheço qualquer estudo ou ocupação que possa exceder a história neste particular. Os poetas podem pintar a virtude com as cores mais encantadoras; mas, como eles se dedicam inteiramente às paixões, freqüentemente se tornam defensores do vício. Até mesmo os filósofos estão sujeitos a se confundir, nas sutilezas de suas especulações; e temos visto alguns deles chegarem ao ponto de negarem a realidade de todas as distinções morais. Mas julgo ser uma observação digna da atenção dos pensadores especulativos que os historiadores tem sido, quase sem exceção, os verdadeiros amigos da virtude e sempre representaram em cores adequadas, por mais que tenham errado em seus julgamentos de indivíduos particulares. O próprio MAQUIAVEL demonstra um autêntico sentimento de virtude em sua história de FLORENÇA. Quando se fala como um Político, em seus raciocínios gerais, ele considera o envenenamento, o assassinato e o perjúrio como meios lícitos do exercício do poder; mas quando fala como um Historiador, ele demonstra uma indignação tão intensa contra o vício e uma aprovação tão vigorosa da virtude, em muitas passagens, que eu não hesitaria em aplicar a ele aquela obsevação de HORÁCIO: Que, se você perturbar a natureza, ainda que com grande indignação, ela sempre se voltará contra você. Esta atitude dos histriadores a favor da virtude não é difícil de demonstrar. Quando um homem de negócios ingressa na vida e na ação, ele está mais inclinado a considerar as personalidades dos homens em relação aos seus próprios interesses do que pelas suas características em si; e o seu julgamento é, a todo momento, comprometido pela violência de suas paixões. Quando um filósofo contempla personalidades e costumes sem sair de seu gabinete, a visão abstrata geral dos objetos que desenvolve deixa a sua mente tão fria e apática que não sobra espaço para os sentimentos de natureza agirem; e ele mal precebe a diferença entre o vício e a virtude. A história mantém um justo equilíbrio entre esses dois extremos, abordando sempre os objetos de um ponto de vista adequado. Os autores da história, bem como os leitores, estão suficientemente interessados nos personagens e acontecimentos para terem um vívido sentimento de vergonha ou satisfação; e ao mesmo tempo, eles não tem um interesse ou preocupação particular qualquer que corrompa o seu julgamento.


Verœ voces tum demum pectore ab imo Eliciuntur1"



1 - LUCRÉCIO De rerum natura 3.57-58 [...só então as palavras verdadeiras vêm do fundo do coração.]

Fonte: HUME, David   Ensaios Morais, Políticos e Literários. introdução à edição brasileira Renato Lessa, editado por e com prefácio e notas de Eugene F. Miller, tradução de Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004 (Liberty Classics) pp. 781-787



Nenhum comentário: