quinta-feira, 8 de março de 2018

Ayaan Hirsi Ali - A libertação das mulheres é como uma grande casa inacabada...



Ayaan Hirsi Ali nasceu em Mogadíscio, Somália em 1969. Como criança pequena, ela foi submetida a mutilação genital feminina. Ao crescer, ela abraçou o Islã e esforçou-se para viver como muçulmano devoto. Mas ela começou a questionar aspectos de sua fé. Um dia, enquanto ouvia um sermão sobre as várias maneiras pelas quais as mulheres deveriam ser obedientes aos seus maridos, não podia resistir a perguntar: "Será que nossos maridos também nos obedecem?"
Em 1992, Ayaan fugiu para a Holanda para escapar de um casamento forçado. Lá, ela recebeu asilo, e com o tempo a cidadania. Ela rapidamente aprendeu holandês e conseguiu estudar na Universidade de Leiden, ganhando sua mestrado em ciência política. Trabalhando como um tradutor para imigrantes somali, ela viu em primeira mão as inconsistências entre a sociedade liberal, a sociedade ocidental e tribal, as culturas muçulmanas.
De 2003 a 2006, Ayaan foi membro eleito do parlamento holandês. Enquanto estava no parlamento, ela se concentrou em promover a integração de imigrantes não-ocidentais na sociedade holandesa e na defesa dos direitos das mulheres muçulmanas.
Em 2004, Ayaan ganhou atenção internacional após o assassinato de Theo van Gogh. Van Gogh havia dirigido seu curta apresentação do filme , um filme sobre a opressão das mulheres sob o Islã. O assassino, um muçulmano radical, deixou uma ameaça de morte por ela presa ao baú de Van Gogh.
Em 2006, Ayaan teve que se demitir do parlamento quando o então ministro holandês da Imigração decidiu revogar sua cidadania, argumentando que Ayaan induziu em erro as autoridades no momento de seu pedido de asilo. No entanto, os tribunais holandeses confirmaram que Ayaan era realmente um legítimo cidadão holandês, levando à queda do governo. Desiludido com a Holanda, posteriormente se mudou para os Estados Unidos.
Em 2007, Ayaan fundou a Fundação AHA para proteger e defender os direitos das mulheres nos EUA a partir de práticas tradicionais nocivas. Hoje, a Fundação é a principal organização que trabalha para acabar com a violência de honra que envergonha, machuca ou mata milhares de mulheres e meninas nos EUA a cada ano e coloca milhões de pessoas em risco. 
Ayaan é um Fellow com o Futuro do Projeto de Diplomacia no Belfer Center for Science and International Affairs da Harvard Kennedy School, um estudante visitante do American Enterprise Institute em Washington DC e um membro do Conselho de Relações Exteriores. Ayaan está atualmente pesquisando a relação entre o Ocidente e o Islã. Ela tem que viver com segurança 24 horas por dia, como sua vontade de falar e seu abandono da fé muçulmana tornou-se um alvo de violência por extremistas islâmicos.
Ayaan Hirsi Ali foi nomeada uma das "100 pessoas mais influentes da revista TIME" de 2005, um dos Glamour Heroes de 2005 e European's Year's Year 's Reader's Digest de 2005. Ela é a autora mais vendida de Infidel (2007) e Heretic : Por que o Islã precisa de uma reforma agora (2015).
Fonte: https://www.hoover.org/profiles/ayaan-hirsi-ali


A libertação das mulheres é como uma grande casa inacabada. A ala oeste já está
relativamente pronta. A maioria das que residem desse lado goza de privilégios como direito
ao voto e a se candidatar. Temos acesso à educação e podemos nos sustentar com o próprio
trabalho se assim desejarmos. Conseguimos convencer a maioria dos legisladores deste lado
da casa de que a violência doméstica, o assédio sexual e o estupro são crimes pelos quais o
perpetrador deve ser castigado. Temos direitos reprodutivos sobre nosso corpo e nossa
sexualidade; embora os pais, professores e líderes comunitários orientem as meninas e moças,
eles não tentam coagi-las a aceitar um relacionamento com um homem (nem, recentemente,
com outra mulher). Candidatos a consortes podem fazer de tudo para atraí-las, mas têm de
engolir o próprio orgulho se forem rejeitados por uma delas.
Como ocorre com todas as casas, o lado oeste desta casa nem sempre é administrado sem
turbulências. Em alguns casos, as regras da casa não são defendidas. Queixas de violência
doméstica feitas por meninas são ignoradas, negadas, o perpetrador é liberado com uma
advertência ou um castigo muito menos severo do que o mal causado por ele. Outras mulheres
podem sentir que não recebem uma compensação financeira equivalente à de seus colegas
homens que desempenham o mesmo trabalho; e outras se veem atingindo um teto de vidro.
Assim, algumas mulheres tentam conferir à casa novas regras e quebrar os tetos de vidro.
Mas, quando visitamos a ala leste, o que encontramos está num estado muito anterior ao
inacabado. Partes da obra foram iniciadas e depois abandonadas, e estão caindo em ruínas.
Em outras partes, sempre que uma parede é erguida, aparece alguém com uma escavadeira e a
derruba. Naquilo que poderiam ser maravilhosos pátios há valas comuns com meninas sem
nome que morreram porque não foram consideradas dignas de ser alimentadas ou tratadas para
curar doenças comuns. Na ala leste as meninas são transportadas pelos pais como se fossem
propriedade, muitas vezes quando são jovens, para satisfazer os impulsos sexuais dos adultos.
Há meninas trabalhando a terra, apanhando água, pastoreando animais, cozinhando e limpando
do raiar do dia ao pôr do sol sem receber nada por seus esforços, enquanto outras são
espancadas impunemente pelos parentes mais próximos. Jovens moças morrem durante o parto
porque lhes faltam os cuidados mais básicos de higiene e saúde.
Em certos rincões da ala leste, as mães nem sempre ficam alegres quando descobrem que
estão grávidas. Um médico analisa que o feto em gestação será um menino ou uma menina; se
for uma menina ele aceita o pagamento da mãe desgraçada e interrompe a gravidez, e se ela
não puder pagar pelo aborto a criança, depois de nascer, é sufocada ou abandonada para
morrer. O aborto de meninas é tão sistemático em certos cômodos da ala leste que há um
grande número de rapazes que não encontram parceiras para casar.
Perto do centro da ala leste, a maioria das mulheres é expulsa dos quartos coletivos e
corredores, e quando podem ser vistas estão invariavelmente cobertas da cabeça aos pés com
peças escuras e feias. Se estupradas, elas devem arcar com o ônus da prova, e em certos
quartos mulheres e meninas a partir dos treze anos de idade são açoitadas e apedrejadas em
público até a morte por sua desobediência das questões sexuais. No lado mais oriental da casa
algumas pessoas têm tanto medo da sexualidade de uma mulher que cortam a genitália das
meninas, mutilando-as e marcando-as como sua propriedade.
Hoje em dia muitos habitantes da ala leste encontram o caminho que leva ao outro lado da
casa, ainda que seja até o apertado quarto dos empregados. Na ala oeste o destino das meninas
da ala leste parece muito distante. E enquanto as meninas da ala oeste se mantêm ocupadas
com futilidades como a cor da pintura, o tamanho dos candelabros e o formato da cerca viva
no jardim, para não falar naquele incômodo teto de vidro, homens da ala leste reivindicam
para si quartos no oeste, dentro dos quais praticam seus hábitos orientais.
Eu estaria sentada no meu escritório em Nova York, bem acima do grande e intenso
burburinho da ala oeste, fantasiando que um dia as abastadas mulheres do Ocidente se
reuniriam para fazer da libertação das cabanas na ala leste a sua maior prioridade. Elas
avançariam para erguer um novo edifício da liberdade, da força e da fartura para o Oriente,
derrubando os antigos barracos e abrindo as portas visíveis e invisíveis da prisão, permitindo
às suas irmãs que vejam a luz do dia.
Esse é o meu sonho. Mas, francamente, não sei se as feministas ocidentais têm a coragem e
a clareza de propósito para me ajudarem a torná-lo realidade.

Fonte: Nômade. Do islã para a América. Tradução: Augusto Pacheco Calil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011  pp.331-333

domingo, 15 de outubro de 2017

Elias Canetti - A diversidade dos professores...



A multiplicidade dos professores era surpreendente; é a primeira diversidade de que se é consciente na vida. Que eles ficassem por tanto tempo parados à nossa frente, expostos em cada um de seus movimentos, sob incessante observação; ora após hora o verdadeiro objeto do nosso interesse, sem poderem se afastar durante um tempo precisamente delimitado; a sua superioridade, que não queremos reconhecer de uma vez por todas e que nos torna perspicazes, críticos e maliciosos; a necessidade de acompanhá-los sem que queiramos nos esforçar demais, pois ainda não nos tornamos trabalhadores dedicados e exclusivos; também o mistério que envolve a nossa vida fora da escola, quando não estão à nossa frente como atores, representando a si próprios; e, mais ainda, a alternância dos personagens, um após outro, no mesmo papel, no mesmo lugar e com a mesma intenção, portanto eminentemente comparáveis – tudo isso, em seu efeito conjunto, é outra escola, bem diferente da escola formal, uma escola que ensina a diversidade dos seres humanos; se a tomarmos um pouco a sério, resulta a primeira escola em que conscientemente estudamos o homem.
Não seria difícil, e talvez fosse interessante, analisar a própria vida, em busca de saber quantos e quais desses professores foram reencontrados sobre outros nomes, quais nos foram simpáticos por causa disso, de quais nos afastamos só por causa de uma velha antipatia, quais as decisões tomadas devido a um antigo conhecimento, o que teríamos feito diferente, sem tal conhecimento. À primeira tipologia infantil, baseada nos animais e que conserva sua eficácia, é sobreposta uma nova tipologia, a dos professores. Em todas as classes existem colegas que os imitam perante os outros com uma habilidade especial; uma classe sem esses imitadores de professores de certa forma seria uma classe sem vida. 
Agora, quando os faço desfilar diante de mim, admiro-me da diversidade, da peculiaridade, da riqueza dos meus professores de Zurique. De muito deles aprendi tudo aquilo que correspondia às suas intenções, e a gratidão por eles sinto após cinquenta anos, por estranho que possa parecer, se torna maior a cada dia que passa. Mas, também aqueles de quem pouco aprendi estão tão nitidamente à minha frente como pessoas ou como figuras, que só por isso me sinto em dívida com eles. São os primeiros representantes daquilo que mais tarde constituiu para mim a essência do mundo, a sua população. São inconfundíveis, uma das qualidades supremas; que eles, concomitantemente se tornassem figuras, nada lhes tira de sua personalidade. A interpretação da fluidez que existe entre indivíduos e tipos é, verdadeiramente, uma das tarefas do escritor.

(…) Naquele tempo, a escola me dava tanto quanto em outras épocas só me deram os livros. Aquilo que eu aprendia de viva voz dos professores, conservava como imagem de quem dizia, e em minha memória assim ficou parado para sempre. Mas, se havia também professores dos quais eu nada aprendia – mesmo assim eles deixaram sua impressão por si próprios, por sua figura peculiar, seus movimentos, sua maneira de falar, e, sobretudo, por sua antipatia ou simpatia, conforme o qual sentíamos. Havia todos os graus de afeição e de calor, e não me lembro de um professor sequer que não tenha se esforçado por ser justo. Mas nem todos conseguiam administrar a justiça de forma a ficarem completamente ocultos o desagrado ou a estima. A isso se acrescenta a diferenciação de recursos internos, a paciência, a sensibilidade, a expectativa.

Elias Canetti – A língua absolvida: História de uma juventude. Tradução: Kurt Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p. 172


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Christopher Lasch - "O movimento Nova Era: Nenhum esforço, nenhuma verdade, nenhuma solução...



(...) O movimento Nova Era  - a última contribuição à nossa longa história de bizarros modismos e panaceias espirituais - atrai um misto de ridicularização e alarme indignado. Não só a degradação da religiosidade mas sua flagrante comercialização levanta a suspeita de fraude religiosa em larga escala (...) O movimento Nova Era tenta combinar meditação, pensamento positivo, cura pela fé... misticismo, ioga, hidroterapia, acupuntura, incenso, astrologia, psicologia junguiana, bio-realimentação, percepção extra-sensorial, espiritualismo, (...) a teoria da evolução, terapia do sexo reichiana, mitologias antigas, (...) hipnose e um sem-número de outras técnicas destinadas a aumentar a percepção, incluindo elementos retirados das principais tradições religiosas.
A substituição da religião pela Nova Era apazigua a consciência em vez de perturbá-la. Seu ensino central é que não importa em que você crê, contanto que funcione no seu caso. "É verdade se você crê que é": lema da Nova Era...
A questão não é se as terapias da Nova Era realmente funcionam, mas sim se a religião deve ou não ser reduzida a uma terapia. Se ela oferece nada mais do que um enlevo espiritual, a religião se torna uma droga a mais numa sociedade dominada pelas drogas.

Christopher Lasch - "O movimento Nova Era: Nenhum esforço, nenhuma verdade, nenhuma solução. Notas sobre Gnosticismo - Parte V, Abril de 1991"

sábado, 29 de julho de 2017

Crimson Glory - In Dark Places







Waves pound the gloomy shores, I watch them roll
across my feet so warm
I know she's waiting there for me
In ancient rhymes she whispers in the wind
a strange and haunting melody
As it fills the silence, I feel the shivers cold
embrace my soul
From the deep she beckons me
promising eternity
In a world where nothing's real
beyond this realm of light and dreams
You, mystic moon it's you who rules the night
breathing life into my dreams
I see your face in nightmares shining bright
So, it's fare to you my sunlit world
so full of hate and misery
You see I can't take it anymore
From my sleep you beckon me
promising eternity
In your world of mystery
to your realm of harmony
In dark places
In dark places we will be
forever beyond the light
In dark places we will be free
from the pain that fills our lives
Through arching moonbeams of light we glide
in bending shadows of warm starlight
Angels of colors light the night as they fly
transcending into the electric sky
In dark places
In dark places we will b
forever beyond the light
In dark places we will be free
from the pain that fills our lives
In dark places we will be
forever beyond the light
In dark places we will see
worlds we've always dreamed

Ondas batem em margens sombrias, eu as vejo rolar 
em meus pés tão quentes 
Eu sei que ela está lá  esperando por mim 
Em rimas antigas, ela sussurra ao vento 
uma melodia estranha e assombrosa,
enquanto preenche o silêncio, eu sinto gélidos arrepios 
abraçarem minha alma.
Da profundeza ela me acena
promissora eternidade.
Em um mundo onde nada é real,
além deste reino da luz e sonha.
Você, a lua mística, é você que governa a noite 
vida respirando em meus sonhos 
Eu vejo seu rosto brilhando  em pesadelos 
Então, é a passagem do meu ensolarado mundo 
tão cheio de ódio e miséria 
Você vê que eu não aguento mais 
do meu sono você me acena
promissora eternidade
Em seu mundo de mistério 
para o seu reino da harmonia 
Em locais escuros, 
em locais escuros estaremos 
sempre para além da luz 
Em locais escuros estaremos livres 
da dor que enche nossas vidas 
Através luar arqueamento de luz que deslizam 
nas sombras de flexão de luz das estrelas quentes 
Anjos de luz as cores da noite como eles voam 
transcendendo para o céu elétrico 
Em locais escuros, 
em locais escuros estaremos
sempre além a luz 
Em locais escuros, estaremos livres 
da dor que enche nossas vidas 
Em locais escuros, estaremos 
sempre para além da luz 
Em locais escuros, vamos ver 

mundos que sempre sonhamos...


sexta-feira, 28 de julho de 2017

Catulo - Que, oprimido por dura sorte e desventura – Quod mihi fortuna casuque oppressus acerbo



Não exitem retratos ou esculturas do poeta romano Caio Valério Catulo (c.87 ou 84 a.C. - 57 ou 54 a.C). Assim como inúmeros vultos da Antiguidade, sua "face verdadeira" é uma incógnita. Muitos, séculos depois, descobrimos que eram de outra pessoa, cuja identidade pouquíssimo ou nada sabemos, e não aquela a quem a tradição atribuía. Esta imagem de homem jovem é um dos retratos de Fayum - série de retratos pintados sobre madeira utilizando ora as técnicas de encáustica ora de têmpera, durante o Egito romano - foi utilizada numa edição dos poemas de Catulo  pela Penguin Classics. Utilizei um destes retratos na postagem sobre Sulpícia, poeta romana quase sua contemporânea. Transmitem uma  intensidade bastante expressiva e ao mesmo tempo serena, um sentido de mistério e anonimato que o decorrer dos séculos vai aprofundando. Uma arte poderosa, digna de retratar, ainda que imaginariamente, um poeta.

68

Que, oprimido por dura sorte e desventura,
         me envias esta carta escrita em lágrimas,
por que um náufrago eu salve das ondas que espumam
         no mar, e do portal da morte eu tire
5. a quem nem Vênus deusa em doce sono deixa,
         deserto, descansar em leito só,
nem a Musa no canto de antigos poetas
       deleita, e a mente aflita faz vigília –
isto me apraz pois, vejo, me tens teu amigo,
10.        e dons da Musa pedes e de  Vênus;
mas não esqueças, Álio, meus agravos nem
         creias que odeie meus deveres de hóspede,
e vê as vagas de infortúnio em que eu afundo:
          não peças alegria a um infeliz.
15.  No tempo em que vesti a toga branca, quando
          a vida em flor trazia primaveras,
              muito me diverti com versos, nem me esquece
        a deusa que ata doce e amaro a amor:
 mas tal empenho, em luto, a morte irmã tolheu-me
20.         (eu mísero), ah irmão!, de mim roubado,
 tu, irmao, ao morrer, partiste minha calma,
           contigo nossa casa está enterrada,
 contigo fosse embora, vã, nossa alegria
           que em vida teu gentil amor nutria.
25.  Por sua morte afugentei da mente inteira
            tais empenhos e da alma tais delícias;
 quando então dizes, Álio, “é tolice, Catulo,
            ficares em Verona, que um Romano
 já esquenta o frio dos pés no leito que deixaste”,
30.         isto não é tolice, mas tristeza;
 perdoarás se o que este luto me tomou –
            meus dons – não te conceda: não consigo,
 e livros eu não tenho aqui comigo muitos
        (em Roma vivo: aí é minha casa,
35.  aí, minha morada, aí desfruto a vida)
             e dentre todos, poucos me acompanham.
  Assim não vás pensar que por maldade ou muita
            ingratidão no peito eu faça isto:
  nenhum verso verter dos dois pedidos teus;
40.         bem mais faria se algo mais pudesse.

  Não posso calar, deusas, como Álio ajudou-me,
        ou com quantos favores me ajudou.
  Nem o tempo, fugindo nos séc’los que olvidam,
         com cega noite cubra o seu empenho;
45.   mas eu vos direi, vós logo a muitos dizei:
          nem que antigo, o papel fazei falar,
  POR QUE EM MEUS VERSOS VIVA MESMO APÓS MORRER;
morto seja lembrado mais e mais,
  nem alta aranha, urdindo tênue teia, a obra
50.     erga sobre o perdido nome de Álio.
    Pois a dor que me deu a dúplice Amatúsia
sabeis e como fez por corroer-me,
    quando ardi tanto quanto as penhas da Trinácria
e, no Eta, as águas Málias das Termópilas:
55.     tristes de assíduo choro os olhos consumiam-se
e afundava-se a face em ondas míseras,
    qual luzindo nas cimas de etérea montanha
salta um riacho da mucosa pedra
    e que a rolar precípite do vale prono
60. em meio a denso povo faz caminho,
    doce alívio do suor do viandante Iasso,
quando a estiagem sulca a terra exausta.
    Então, tal qual ao nauta em meio a negro vórtice,
soprando afável, vem um vento leve
65.     da prece a Pólux já, já rezada a Castor,
  assim foi Álio auxílio para mim.
    Ele as via e me abriu largas em campo ocluso,
    meu deu morada e deu-me à sua dona,
    e lá comuns nós praticávamos amores
70.   e clara minha deusa em passo manso
    entrou e os pés sobre alisado umbral luzentes
deteve entre sandálias sonorosas,
    qual Laodamia outrora ardendo pelo esposo
 à casa veio de Protesilau,
75.     de mau começo até que os celestes senhores
 sacro aplacasse o sangue de uma vítima.
    Que eu não venha a querer nada, ó virgem Ramnúsia,
 que contrários senhores mal acolhem.
    Com quanta sede o altar queria o pio cruor
80.  viu Laodamia ao partir seu marido,
    do novo esposo os braços tendo que largar
 antes que um após outro a vir invernos
    amor voraz em longas noites saturassem,
 para aturar viver, rompido o enlace.
85.     Já sabiam as Parcas: partiria em breve,
 se partisse soldado aos muros de Ílio
    pois do rapto de Helena, primeiros Argivos,
 Tróia atraía homens junto a si.
    Tróia, nefas!, comum sepulcro a Europa e Ásia,
90.  Tróia – aos fortes, às forças, todos, áspera
    cinza – tão miserável morte ao meu irmão
 trouxe, ah irmão roubado a mim tão triste,
    de ti tão triste, irmão, ah, luz também roubada,
 contigo nossa casa está enterrada,
95.     contigo foi-se embora, vã, nossa alegria
 que em vida teu gentil amor nutria.
    E agora longe estás, nem dentre conhecidas
 tumbas nem junto às cinzas de parentes;
    mas em Tróia fatal, Tróia cruel, areias,
100.  terras alheias lá têm-te enterrado,
    às quais se diz que às pressas juntos jovens Gregos
foram abandonando arcanos lares
   por que Páris, gozando a amante que raptou,
em calmo leito não fruísse fácil
105.    ócio: então te roubaram, linda Laodamia,
teu enlace mais doce que alma e vida
   pois te absorvendo em tanto vórtice de amor
a ardência a abismo te levou abrupto,
   qual o de Fêneo de Cilene, os Gregos dizem
110. que haurindo humores seca o solo píngüe,
   que (é fama) fez, talhando as medulas do monte,
de falso pai o filho de Anfitrião
   quando com certas setas no Estinfalo os monstros
matou a mando de um senho pior
115.    para a porta do céu a mais deuses abrir-se
e Hebe não ser de longa virgindade.
   Mas teu amor mais fundo foi que fundo abismo
pois te ensinou sofrer, domada, o jugo:
   nada mais grato ao pai pela idade abalado
120.   que um neto temporão que a filha embala,
   que, herdeiro, vindo enfim, da fortuna do avô,
seu nome faz lavrar no testamento,
   que aos risos do parente causando irrisão,
o espanta, abutre, da cabeça em cãs.
125.    Nem tem tanto prazer com o seu branco par
a pomba que, se diz, desfruta beijos
   das bocas sempre a dar mordidas, menos proba
que a mulher que por muitos tem quereres.
   Mas tu sozinha a estes furores venceste,
130. ao reveres de vez teu loiro esposo.
   A esta pouco ou nada tendo a conceder,
Minha Luz a meus braços entregou-se
   e correndo-lhe à volta aqui e ali Cupido
claro brilhava em túnica açaflor,
135.    e embora com um só Catulo não contente,
porque é discreta, as raras fugas vamos
   tolerar (não causemos tédio como os tolos).
Até Juno, a maior entre os celícolas,
   calou muito ódio ardente às culpas do marido –
140. Jove, o de muito querer, muitas fugas.
   Mas não é justo comparar homens e deuses
NEM MALES NÓS SOFREMOS TANTO COMO
   JUNO; ENTÃO DEIXA AS QUEIXAS E FIRME, CATULO,
larga a tarefa ingrata de pais trêmulos,
145.    pois ela pela mão do pai trazida não
veio à casa a exalar odor Assírio,
   mas numa noite incrível dons furtivos deu-me,
próprios dos braços de seu próprio esposo;
   basta-me, pois, que só a mim foi dado um dia
150. que ela marca com pedra bem mais branca.
   Para ti o que pude, um dom, perfeito em versos,
te dou, Álio, por teus favores todos,
   por que ferrugem não te cubra o nome, espessa
cada dia que passa, todo dia.
155.   Que os deuses tragam cá seus dons sem fim, que Têmis
soía dar aos homens bons de antanho.
  Sede felizes, tu e os que são tua vida,
a casa em que gozamos, a senhora,
  e a hóspede, que desde o início deu-me abrigo;
160. de quem todo o meu bem primeiro veio;
  que mais que todos é mais grata a mim que eu mesmo:
Minha Luz. Viva, é doce meu viver.

O Livro de Catulo. Tradução, introdução e notas de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996 (Texto e Arte; 13), pp. 139-144






Lorde Kames - Nosso apego a objetos de angústia.



Nosso apego a objetos de angústiai.

Um célebre crítico francêsii que trata de poesia e pintura se dedica a um tópico que outros já examinaram, mas sem sucesso; qual seja, explicar o nosso forte apego por objetos de angústia, imaginários ou reais. “Não é fácil”, diz ele, “explicar o prazer que nos dão a poesia e a pintura, que com frequência lembra a aflição e cujos sintomas são por vezes idênticos aos da mais profunda tristeza. As artes da poesia e da pintura nunca são tão aplaudidas como quando logram produzir a dor. Um misterioso encanto nos vincula a representações dessa natureza, no mesmo instante em que o nosso coração, repleto de angústia, se insurge contra o prazer. Tentarei desfazer esse paradoxo e explicar o fundamento dessa espécie de prazer, tarefa que pode parecer ambiciosa, quando não incauta, pois promete dar conta do que ocorre no peito de cada um, das secretas fontes de sua aprovação e desgosto”. Acompanhemo-lo em sua árdua tarefa. A título de fundamento, ele arrisca a seguinte explicação: “O homem é, por natureza, destinado à atividade; a inatividade do corpo ou da mente traz langor e desgosto, e esse motivo é suficiente para que se recorra a toda sorte de ocupação em busca de alívio. Por instinto, saímos à cata de todo objeto que possa excitar nossas paixões e nos mantenha agitados, e isso a despeito da dor que nos traz, das noites em claro e dos dias perdidos; os homens sofrem mais com a ausência de paixões do que com a agitação que elas ocasionam”. Eis, em suma, a primeira seção. Na seção seguinte, ele desce a exemplos particulares. O primeiro é a compaixão, que faz com que nos atenhamos à miséria e angústia alheia, embora desse modo tomemos parte em seu sofrimento. Esse impulso, observa o autor, depende inteiramente do princípio anterior, pelo qual preferimos uma ocupação, por mais dolorosa que seja, à desocupação. O autor menciona ainda o exemplo das execuções públicas. “Acudimos em multidão ao espetáculo mais horrendo que se poderia contemplar, assistir a um pobre miserável sendo torturado numa roda, queimado vivo ou estripado. Quanto mais angustiante a cena, maior o número de espectadores. É possível antever, mesmo sem a experiência, que as cruéis circunstâncias da execução, que os profundos gemidos e a angústia de nosso semelhante produzirão uma impressão cuja dor só será dissipada após um longo período de tempo. O atrativo da agitação é mais forte que os poderes de reflexão e experiência juntos”. Ele prossegue mencionando o estranho deleite do povo romano com os entretenimentos encenados no anfiteatro: criminosos expostos a feras selvagens, grupos de gladiadores que se abatem uns aos outros, e aproveita a ocasião para fazer a seguinte observação a respeito da nação inglesa: “Os ingleses têm um coração tão terno que mostram humanidade para com os piores criminosos. Não permitem a tortura, alegando que é preferível deixar impune um crime a submeter um inocente aos tormentos que outros países cristãos utilizam para extorquir uma confissão de culpa. Mas este povo tão cioso de seus semelhantes sente um prazer infinito no pugilismo, na tourada e em outros espetáculos selvagens”. E conclui mostrando que o próprio horror à inação é o que leva os homens a se entregarem aos jogos, cartas e dados: “Os tolos e os trapaceiros é que procuram o jogo com a esperança de ganhar. A maioria tem outros motivos. Negligenciam as diversões que requerem destreza e habilidade, e preferem arriscar a fortuna em jogos de azar, que mantêm a mente em contínuo movimento e onde cada lance é decisivo”.
Tal é, em linhas gerais, a explicação de nosso autor. É inegável que ela tem ares verdadeiros; mas as seguintes considerações levam-me a colocá-la em questão. Em primeiro lugar, se a dor da inação é o motivo que nos arrasta aos referidos espetáculos, seria de esperar que estes só fossem frequentados pelos que se sentem mais oprimidos pelo ócio. Mas não é o que acontece; toda sorte de gente acode a eles. Cenas de perigo e angústia exercem um fascínio misterioso, que retira os homens das ocupações mais sérias e opera tanto sobre os ativos como sobre os indolentes. Em segundo lugar, não houvesse em tais espetáculos algo mais que atrai a mente, além da perspectiva de suprimir a dor da inação, a agitação seria o único fundamento para que se preferisse um objeto a outro: quanto mais agitada a mente, mais atraente o objeto. Mas a experiência diz o contrário. Muitos objetos de horror e desgosto agitam a mente de forma tão extrema que mesmo os mais ociosos procuram evitá-los. É o que mostra cabalmente o exemplo que nosso autor encontra em Lívio: “No início, a luta de gladiadores à moda romana mais assustava do que agradava à plateia grega, desabituada a um espetáculo como esse. Mas a frequência das exibições acostumou os olhos do povo, que passou a apreciá-lo; e, com o tempo, difundiu-se entre os jovens a paixão pelas armas.”iii De início, os gregos não se deixavam atrair pelo espetáculo, ao contrário, detestaram-no até que o costume o tornasse mais familiar, menos incômodo, por fim apreciável. Pelo mesmo motivo, um dos entretenimentos prediletos dos ingleses, a rinha de ursos, é considerada repulsiva pelos franceses e por outras nações polidas, como excessivamente selvagem para agradar a pessoas de gosto refinado.
Fosse o homem cujo ser cuja única perspectiva de ação consistisse em obter prazer ou em evitar a dor, como quer a premissa de nosso autor, que vai buscá-la no Sr. Locke,iv essa suposição tornaria difícil, senão impossível, explicar satisfatoriamente por que nos inclinamos a frequentar, de olhos arregalados, entretenimentos inteiramente dolorosos. Mas, se examinarmos com mais atenção a natureza humana, encontraremos numerosos e variados impulsos de ação, independentes de prazer e dor. Sigamos agora essa trilha, e vejamos se não nos leva a uma solução do problema.
Se prestarmos atenção às nossas emoções, não somente às que despertam de objetos externos, descobriremos que são muito diversificadas, fortes ou fracas, distintas ou confusas etc. Não há divisão mais abrangente de nossas emoções do que entre agradáveis e desagradáveis. Mas é desnecessário, e talvez seja vão, indagar pela origem dessa diferença. Tudo o que podemos afirmar é que a constituição de nossa natureza é tal que seu arranjo responde ao sábio e benigno propósito do criador.
Outras circunstâncias a considerar nas emoções é que a afeição entra na composição de algumas, a aversão na de outras. Sentimos afecção por certos objetos, queremos possuí-los e desfrutá-los, outros despertam em nós aversão, e procuramos evitá-los. Objetos agradáveis são os únicos capazes de comover nossa afeição, na nossa aversão só se comove por objetos desagradáveis. Não investigaremos aqui se todo objeto agradável tem por efeito despertar uma afecção. Observo apenas que muitos objetos desagradáveis e mesmo dolorosos não despertam em nós a menor aversão. É verdade que objetos horrorosos, repugnantes ou terríveis despertam aversão, mas muitas paixões e emoções, e mesmo as mais dolorosas, não despertam qualquer aversão. O pesar é uma emoção extremamente dolorosa, que não é, entretanto, acompanhada de qualquer aversão. Pelo contrário, pode ser tão atraente quanto algumas de nossas mais prazeirosas emoções, e é com obstinação que nos apegamos a muitos objetos que o despertam. Exemplo semelhante se encontra na compaixão. Objetos que produzem angústia, embora causem dor, não despertam aversão; pelo contrário, atraem-nos e inspiram-nos o desejo de aliviar a aflição alheia.
Na infância, desejos e apetites são os únicos incitamentos à ação. Ao longo da vida, aprendemos a distinguir, em meio aos objetos que nos cercam, os que produzem prazer dos que produzem dor, e vamos assim adquirindo um incitamento de outra espécie. O amor-próprio é uma poderosa motivação a buscarmos tudo o que possa contribuir para a nossa felicidade. Opera por meio de reflexão e experiência, e todo objeto que pareça acrescentar à nossa felicidade desperta em nós inequívoco desejo de posse. Quando atua o amor-próprio, prazer e dor são os únicos móbiles de ação. Mas nem todos os nossos apetites e paixões são desse gênero. Muitos operam por um impulso direto, sem intervenção da razão, à maneira de instintos animais. E, assim como estes não são influenciados por nenhuma espécie de raciocínio, também a perspectiva de não ser miserável, mas sim feliz, não é inerente ao móbil que nos impulsiona. É verdade que a gratificação de nossas paixões é agradável; também é verdade que, ao dar ensejo a um apetite particular, a perspectiva do prazer pode se tornr um móbil de ação, graças a um ato de reflexão. Mas não se deve confundir tais coisas com o impulso que resulta diretamente do apetite ou paixão, que opera às cegas, como eu disse, à maneira de um instinto, sem qualquer consideração por eventuais consequências.
Confirma a distinção entre ações orientadas por amor-próprio e ações dirigidas por um apetite ou paixão em particular a observação de que se a meta do amor-próprio é sempre a mesma – a nossa felicidade –, os demais apetites e paixões podem ter uma tendência diferente. Isso se torna evidente pela seguinte indução: é agradável a gratificação que temos quando nos vingamos de alguém que odiamos. O caso é outro quando somos ofendidos por um amigo: a amizade me impede de machucá-lo, por mais ofendido que eu esteja. “Não encontro em meu coração um motivo para magoá-lo; procurarei torná-lo ciente do mal que ele me fez”. Mas a sede de vingança que é assim represada pode atacar os órgãos vitais da parte ofendida e ser extravasada na forma de irritação e mau humor, e os vapores só se dissipam com o tempo ou com um pedido de desculpas. Não faltam exemplos de pessoas atingidas por esse humor nefasto, por essa espécie de vingança que se volta contra a parte ofendida e que, em troca de um pedido de desculpas, infligem a si mesmas um grande malefício. Lembremos aqui a jovem que se desilude com o amor, e que, para fomentar ainda mais sua angústia, se atira nos braços do primeiro janota que lhe pede em casamento. Cada um pode observar por si mesmo que a paixão do pesar, quando chega ao auge, afasta para longe tudo o que tende a produzir tranquilidade e conforto. Tomado pelo pesar, o homem se entrega à miséria com uma espécie de simpatia pela pessoa por quem ele padece. “Como poderia ser feliz, se meu companheiro não é?” Tal é a linguagem dessa paixão. O homem que se encontra nessa circunstância é um tormento para si mesmo. Temos assim um fenômeno singular da natureza humana: um apetite pela dor, uma inclinação a tornar-se miserável por contra própria, pior que o suicídio, crime que ao menos põe fim a uma miséria que se tornou insuportável.
Isso nos mostra quão imperfeita é a descrição da natureza humana oferecida pelo Sr. Locke e pelo Abade Dubos, que não reconhecem outro móbil de ação além do que resulta do amor-próprio ou das medidas que tomamos para obter prazer e evitar a dor. Esse sistema exclui muitos apetites e paixões, bem como a afeição ou aversão neles envolvida. E, no entanto, podemos dizer, com alguma probabilidade, que é mais frequente sermos influenciados por esses móbiles do que pelo amor-próprio. Tão variada é a natureza humana, tão complexos os seus poderes de ação, que ela não pode ser contemplada de um único ponto de vista.
Podemos agora retornar ao nosso tópico, uma vez expostos os princípios de ação que lhe dizem respeito. Pode-se inferir do estabelecido que a natureza nos designou para a sociedade e nos uniu intimamente uns aos outros pelo princípio de simpatia, que comunica muitos a alegria ou a tristeza de cada um. Compartilhamos da aflição de nossos semelhantes, padecemos com eles e por eles, e seus infortúnios nos afetam às vezes mais que os nossos próprios. E não admira que ao invés de evitarmos objetos de miséria nos apegamos a eles, o que é tão natural quanto o pesar que sentimos por conta de nossos próprios infortúnios. Admiremos, entrementes, a sábia ordenação da providência: se a nossas afecções sociais estivesse misturado um mínimo de aversão, que fosse por eventuais sofrimentos, estaríamos inclinados, ao perceber um objeto de angústia, a afastá-lo dos olhos e da mente, não a aliviar o sofrimento alheio.
De modo algum pode-se considerar esse princípio como um defeito ou vício; é o cimento da sociedade humana. Não há quem esteja ao abrigo do infortúnio, e a simpatia promove a felicidade e segurança dos homens. A prosperidade e segurança de cada um deve ser preocupação de muitos, o que contribui mais para a felicidade geral do que se cada um só tivesse de depender de si mesmo, como numa ilha deserta, sem poder contar com a consideração e o cuidado dos outros. Mas isso não é tudo. Observando nosso caráter e ações a partir de uma perspectiva reflexiva, não poderemos deixar de aprovar a ternura e simpatia que encontramos em nossa natureza. Deleitamo-nos com nós mesmos em virtude de nossa própria constituição, a consciência de nosso mérito é fonte de satisfação contínua.
Ampliando um pouco a nossa discussão, observaremos que por natureza temos uma grande curiosidade pela história da vida de alguns homens. Julgamos suas ações, aprovamos ou desaprovamos, condenamos ou absolvemos, e a mente, assim ocupada, obtém um maravilhoso deleite. Há mais. Envolvemo-nos profundamente com as preocupações alheias, tomamos partido, compartilhamos alegrias e angústias, preferimos estes, não gostamos daqueles. Esse pendor da mente explica porque histórias, romances e peças são um entretenimento universal que agrada a todos. Trata-se de algo natural ao homem, como criatura sociável, e mais sociáveis são aqueles que mostram essa espécie de curiosidade e preferem entretenimentos como esses.
A tragédia é uma imitação, uma representação de caracteres e ações humanas. É uma história fictícia, que em geral produz impressões mais fortes que as de histórias reais: uma obra de gênio que privilegia incidentes que produzam a impressão mais profunda, conduzindo-os de modo a manter a mente em contínuo suspense e agitação, mais intensos que na vida real. Uma boa tragédia excita cada uma das paixões sociais. Somos tomados de súbita afeição pelos personagens que representa: cativam-nos como amigos queridos, e sentimos esperança e medo como se tivéssemos diante de nós uma história verdadeira.
Ao filósofo ignorante, que desconhece o teatro, pode parecer surpreendente que a imitação tenha um efeito tão grande na mente que a falta de verdade e realidade não seja um empecilho à operação de nossas paixões. Mas, deixando de lado uma explicação material, é evidente que essa aptidão da mente humana a receber impressões de objetos fictícios ou reais contribui para os mais nobres propósitos da vida. Não há nada melhor para aprimorar a mente e torná-la virtuosa do que examinar as ações dos outros, compreender o que impele o virtuoso a aprovar sua conduta e condenar e repelir o vício. Pois a mente, a exemplo do corpo, só se torna forte com o exercício. Se essa espécie de disciplina se confinasse a cenas da vida real, teria pouco proveito para a maioria dos homens, dado que tais cenas são relativamente raras. Mesmo na história, não são muito frequentes. Em composições da arte, por outro lado, quando a ficção tem lugar, somente a falta de gênio pode impedir o exercício da mente pelo qual ela adquire sensibilidade e consolida hábitos virtuosos.
Assim, a tragédia cativa nossas paixões tanto quanto uma história real. Amizade e respeito pela virtude, repulsa ao vício, compaixão, esperança e medo, a série inteira das paixões sociais é despertada e exercitada.
Parece que temos aqui uma boa explicação de nosso gosto pelo teatro; mas, examinando bem a questão, encontraremos dificuldades às quais os princípios acima delineados dificilmente poderiam oferecer uma resposta satisfatória. Não admira que os jovens acudam ao entretenimento teatral. O apreço pela novidade, o desejo de se manter ocupado e a beleza da ação constituem atrativos poderosos, e se uma pessoa, qualquer que seja sua idade, toma a peito os interesses das personagens, a atração se torna tão intensa que o prospecto de aflição e pesar não é suficiente para impedir que ela se envolva. Em geral, a experiência nos torna mais sábios; e pode parecer surpreendente, dado que a angústia é o desfecho infalível de encenações como essas, que pessoas dotadas de juízo mais maduro não prefiram simplesmente evitá-las. Estaria adormecido o amor-próprio, esse princípio tão ativo. Mais natural seria pensar que a experiência nos ensina a nos mantermos afastados do perigo, e que poucas pessoas dotadas de reflexão frequentariam as tragédias mais dramáticas. O contrário, no entanto, é verdade: as tragédias mais dramáticas são as prediletas de pessoas de todas as idades, e em especial das mais impressionáveis, cujos sentimentos são mais delicados. Um homem desse caráter mal se livrou da profunda angústia em que foi lançado na noite anterior por uma bela tragédia, quando decide calmamente, em seus aposentos, sem o menor vestígio de amor-próprio, retornar ao teatro para assistir a outra encenação como essa.
Isso nos leva a uma conjectura das mais curiosas, acerca da natureza humana. Estas especulações oferecem uma prova cabal de que, contrariamente ao que se pensa, o amor-próprio nem sempre intervém para evitar dor e angústia. Ao examinar como isso acontece, descobrimos um admirável artifício da natureza humana para dar plena vazão às afecções sociais. Tendo em vista, como dissemos, que algumas paixões dolorosas são acompanhadas de aversão, e outras de afeição, descobriremos, num exame mais rigoroso, que as paixões dolorosas que na sensação imediata estão isentas de toda aversão, dela também estão livres na reflexão em ato. Ou, para expressar-me de modo mais prosaico, quando refletimos sobre a dor que sofremos em nossa consideração pelos outros, se uma aversão se mistura à reflexão, é devido à dor que sentimos ao considerar o objeto. Que nos seja permitido, para ilustrar esse ponto, comparar a dor que resulta da compaixão com uma dor física qualquer. O corte da pele humana é acompanhado da mesma intensa aversão na sensação imediata ou na reflexão posterior. Mas não sentimos o mesmo quando refletimos sobre as dores intelectuais acima mencionadas. Pelo contrário, quando refletimos sobre o infortúnio de um amigo, por exemplo, a reflexão é acompanhada de intensa satisfação. Aprovamos a nós mesmos quando sofremos com um amigo, sentimos apreço por nossa pessoa por conta desse sofrimento, e suportamos de bom grado a angústia de uma ocorrência como essa, tudo isso sem a menor oposição do amor-próprio.
O escrutínio das paixões dolorosas e livres de aversão nos mostra que elas são todas do gênero social e resultam do nobre princípio de simpatia, que é o cimento da sociedade humana. As paixões que nos causam dor são acompanhadas pelo mesmo apetite de indulgência concomitante às que nos causam prazer. Submetemo-nos resignados a essas paixões dolorosas, e não nos parece que sofrê-las seja uma penúria. Dada a nossa constituição temos a consciência de que há regularidade e ordem nas coisas, de que nosso sofrimento é correto e conveniente. Afecções morais em geral, as dolorosas inclusive, estão inteiramente isentas de aversão, mesmo quando refletimos sobre as angústias mais comuns que nos oprimem. A simpatia, em especial, nos vincula tão fortemente ao objeto de angústia, que chega a sobrepujar o efeito do amor-próprio que dele nos afasta. A simpatia, consequentemente, embora seja uma paixão dolorosa, é atraente: no consolo ao próximo, a gratificação da paixão é um prazer considerável. Essa observação ressalta o brilho próprio das afecções morais, em contraste com as malignas ou egoístas.
Muitas e variadas são as molas de ação da natureza humana, nenhuma é tão admirável quanto a que ora examinamos. A simpatia é o princípio que conecta as pessoas em sociedade por laços mais fortes que os de sangue. E, por mais que a compaixão, que é sua cria, seja uma emoção dolorosa, se fosse acompanhada de aversão, mesmo na reflexão sobre angústia que ocasiona, esse sentimento enfraqueceria gradualmente a paixão e nos curaria de uma grave doença. Mas o criador de nossa natureza não deixou inacabada a sua obra. Deu-nos esse nobre princípio por inteiro e sem contraparte, para que sua operação fosse vigorosa e universal. Longe de termos aversão à dor ocasionada pelo princípio social, refletimos sobre ela com satisfação, e a ela nos submetemos contentes e de bom grado, como se fora um prazer. Por isso, permitimos que a tragédia se apodere da mente, com os muitos encantos que despertam do exercício das paixões sociais, sem qualquer objeção do amor-próprio.
Estivesse nosso autor ciente do princípio de simpatia, ele poderia explicar porque compartilhamos a angústia alheia, sem precisar recorrer a uma razão tão imperfeita como a repulsa à inação. Tampouco seria preciso entrar em questões filosóficas, pois não faltam indícios de que de fato é assim na vida comum. Em toda parte encontramos pessoas de temperamento simpático que optam por dedicar suas vidas ao cuidado dos carentes e doentes, que compartilham de suas aflições e sentem profundamente suas preocupações, tristezas e pesares. Vivem tristes e abatidas, sem outra satisfação que a do dever cumprido.
Se é justa essa explicação, podemos estar certos de que pessoas dotadas de um temperamento caridoso são as que mais apreciam a tragédia, que oferece pleno escopo ao fomento de sua paixão. Os efeitos que a tragédia produz são mesmo admiráveis. As paixões, assim como ganham força ao serem fomentadas, tornam-se fracas na falta de exercício. Pessoas prósperas, que desconhecem a aflição e a miséria, tendem a se tornar insensíveis. A tragédia é um antídoto admirável a essa fraqueza. Ela humaniza o temperamento, pois oferece objetos fictícios dignos de piedade cujo efeito é praticamente o mesmo que o de objetos reais, ou seja, o exercício das paixões. Levados por um impulso natural, mergulhamos nas aflições despertadas pela representação de infortúnios fictícios, e mesmo que nada mais atraia a mente ou lhe acene com satisfação, a piedade é uma paixão capaz de reunir multidões nessas representações.
A curiosidade explica porque as execuções públicas são tão populares. Pessoas dotadas de uma sensibilidade mais refinada se empenham em corrigir um eventual apetite cujo fomento produz dor mas não é acompanhado, na reflexão, do sentimento de mérito próprio. Se execuções públicas entretêm sobretudo o vulgo, é porque este se deixa guiar cegamente pela curiosidade, sem considerar se tais espetáculos contribuem ou não para o seu bem.
O pugilismo, a exemplo da luta de gladiadores, anima-nos e nos inspira com exemplos de coragem e bravura. Entramos no espírito do lutador, e tornamo-nos tão audaciosos e intrépidos quanto ele se mostra diante de nós. Por outro lado, compartilhamos da angústia dos derrotados, pelos quais sentimos uma simpatia proporcional à valentia de sua conduta. Não admira que espetáculos como esses sejam frequentados por pessoas de gosto distinto. Nossa motivação tem aqui o mesmo princípio que produz em nós o desejo de conhecer os feitos de conquistadores e heróis. Observe-se ainda que esses espetáculos têm o notável efeito de ensinar a juventude a ser intrépida e destemida. Portanto, não me parece que os estrangeiros tenham razão em condenar o gosto inglês nesse particular. Espetáculos dessa espécie merecem o estímulo do Estado e devem ser objetos de políticas públicas.
Quanto ao jogo, não concebo qual prazer haveria em manter a mente suspendida, como se fora num cadafalso, tal como fazem os que apostam dinheiro em jogos de azar. Inação e ociosidade são dores mais suportáveis do que essa. Estou convencido de que, no fundo, move o jogador a ganância pelo dinheiro. E não me venham dizer que alguém prefere apostar seu dinheiro em jogos de azar por desprezo aos jogos de habilidade e destreza, pois essa escolha só pode decorrer de algo como impaciência, presunção ou indolência. Uma especulação curiosa quanto ao jogo, é que há nele um prazer que se segue ao bom desempenho e uma dor que se segue ao mau, independentemente do resultado da partida ou da soma de dinheiro envolvida. É evidente que a boa sorte eleva o espírito e a má sorte o deprime, não importa o resultado final. Isso é próprio de nosso interesse pelo jogo como diversão. Deixo a outros que investiguem a qual princípio de nossa natureza pertence esse interesse.
Aproveito esta 3ª edição de meus Ensaios para resolver uma questão que permaneceu em aberto nas edições anteriores. A terra mal produz para o uso do homem o que não requeira o trato da indústria ou da arte; e o homem, que é naturalmente artificioso e industrioso, está pronto a responder o chamado. Se encontrasse tudo ao alcance das mãos, sem que tivesse de pensar ou trabalhar, seria inferior à mais vil das criaturas animais. E, se digo inferior, é porque a mais vil criatura, perfeita em seu gênero, está acima de uma outra corrompida, de não importa qual gênero. O amor-próprio nos incita a trabalharmos em benefício próprio; a benevolência em benefício dos outros. A emulação reforça esses princípios. Encontra-se mesmo entre crianças, que querem vencer, ainda que não saibam o que as incita tanto. Na luta por riqueza, glória e poder, a emulação é uma figura esplêndida, que opera vigorosamente em obras que requerem destreza e não adormece em disputas que dependem do acaso, como jogos de cartas ou de dados. A verdade é que o prazer da vitória sem a perspectiva do lucro é mais fraco. E lamento dizer, mas os riscos extremos aos quais os homens se submetem nos jogos de azar são instigados, senão em todas, no mais das vezes, pela avareza.


i“Our Attachment to Objects of Distress”. In: Essays on the principles of morality and natural religion, ensaio I. 3ª edição. Londres: 1779. Tradução: Daniel Lago Monteiro. (NE)
iiO abade Dubos. [Jean-Baptiste Dubos, Réflexions critiques sur la poésie et la peinture, introdução, cap. 1; livro I. 01 ss. Paris: 1719. Cf. Hume, “Da tragédia”. In: Quatro ensaios. Londres: 1757.] (NA)
iiiTito Lívio, História de Roma, Livro XLI. (NA)
ivLocke, Ensaio sobre o entendimento humano, livro II,cap. XXI, §§ 37-43. 4ª edição. Londres: 1704. (NT)


Bibliografia: Lorde Kames (Henry Home) Nosso apego a objetos de angústia. PIMENTA, Pedro Paulo (org.) O Iluminismo Escocês. São Paulo: Alameda, 2011




Imagens: John Collet , The Female Bruisers, 1770 The British Museum; The Enraged Musician, 1741 - William Hogarth; Engraved print of The Beggar's Opera by William Blake after Hogarth, London, England, c.1729