sexta-feira, 28 de julho de 2017

Catulo - Que, oprimido por dura sorte e desventura – Quod mihi fortuna casuque oppressus acerbo



Não exitem retratos ou esculturas do poeta romano Caio Valério Catulo (c.87 ou 84 a.C. - 57 ou 54 a.C). Assim como inúmeros vultos da Antiguidade, sua "face verdadeira" é uma incógnita. Muitos, séculos depois, descobrimos que eram de outra pessoa, cuja identidade pouquíssimo ou nada sabemos, e não aquela a quem a tradição atribuía. Esta imagem de homem jovem é um dos retratos de Fayum - série de retratos pintados sobre madeira utilizando ora as técnicas de encáustica ora de têmpera, durante o Egito romano - foi utilizada numa edição dos poemas de Catulo  pela Penguin Classics. Utilizei um destes retratos na postagem sobre Sulpícia, poeta romana quase sua contemporânea. Transmitem uma  intensidade bastante expressiva e ao mesmo tempo serena, um sentido de mistério e anonimato que o decorrer dos séculos vai aprofundando. Uma arte poderosa, digna de retratar, ainda que imaginariamente, um poeta.

68

Que, oprimido por dura sorte e desventura,
         me envias esta carta escrita em lágrimas,
por que um náufrago eu salve das ondas que espumam
         no mar, e do portal da morte eu tire
5. a quem nem Vênus deusa em doce sono deixa,
         deserto, descansar em leito só,
nem a Musa no canto de antigos poetas
       deleita, e a mente aflita faz vigília –
isto me apraz pois, vejo, me tens teu amigo,
10.        e dons da Musa pedes e de  Vênus;
mas não esqueças, Álio, meus agravos nem
         creias que odeie meus deveres de hóspede,
e vê as vagas de infortúnio em que eu afundo:
          não peças alegria a um infeliz.
15.  No tempo em que vesti a toga branca, quando
          a vida em flor trazia primaveras,
              muito me diverti com versos, nem me esquece
        a deusa que ata doce e amaro a amor:
 mas tal empenho, em luto, a morte irmã tolheu-me
20.         (eu mísero), ah irmão!, de mim roubado,
 tu, irmao, ao morrer, partiste minha calma,
           contigo nossa casa está enterrada,
 contigo fosse embora, vã, nossa alegria
           que em vida teu gentil amor nutria.
25.  Por sua morte afugentei da mente inteira
            tais empenhos e da alma tais delícias;
 quando então dizes, Álio, “é tolice, Catulo,
            ficares em Verona, que um Romano
 já esquenta o frio dos pés no leito que deixaste”,
30.         isto não é tolice, mas tristeza;
 perdoarás se o que este luto me tomou –
            meus dons – não te conceda: não consigo,
 e livros eu não tenho aqui comigo muitos
        (em Roma vivo: aí é minha casa,
35.  aí, minha morada, aí desfruto a vida)
             e dentre todos, poucos me acompanham.
  Assim não vás pensar que por maldade ou muita
            ingratidão no peito eu faça isto:
  nenhum verso verter dos dois pedidos teus;
40.         bem mais faria se algo mais pudesse.

  Não posso calar, deusas, como Álio ajudou-me,
        ou com quantos favores me ajudou.
  Nem o tempo, fugindo nos séc’los que olvidam,
         com cega noite cubra o seu empenho;
45.   mas eu vos direi, vós logo a muitos dizei:
          nem que antigo, o papel fazei falar,
  POR QUE EM MEUS VERSOS VIVA MESMO APÓS MORRER;
morto seja lembrado mais e mais,
  nem alta aranha, urdindo tênue teia, a obra
50.     erga sobre o perdido nome de Álio.
    Pois a dor que me deu a dúplice Amatúsia
sabeis e como fez por corroer-me,
    quando ardi tanto quanto as penhas da Trinácria
e, no Eta, as águas Málias das Termópilas:
55.     tristes de assíduo choro os olhos consumiam-se
e afundava-se a face em ondas míseras,
    qual luzindo nas cimas de etérea montanha
salta um riacho da mucosa pedra
    e que a rolar precípite do vale prono
60. em meio a denso povo faz caminho,
    doce alívio do suor do viandante Iasso,
quando a estiagem sulca a terra exausta.
    Então, tal qual ao nauta em meio a negro vórtice,
soprando afável, vem um vento leve
65.     da prece a Pólux já, já rezada a Castor,
  assim foi Álio auxílio para mim.
    Ele as via e me abriu largas em campo ocluso,
    meu deu morada e deu-me à sua dona,
    e lá comuns nós praticávamos amores
70.   e clara minha deusa em passo manso
    entrou e os pés sobre alisado umbral luzentes
deteve entre sandálias sonorosas,
    qual Laodamia outrora ardendo pelo esposo
 à casa veio de Protesilau,
75.     de mau começo até que os celestes senhores
 sacro aplacasse o sangue de uma vítima.
    Que eu não venha a querer nada, ó virgem Ramnúsia,
 que contrários senhores mal acolhem.
    Com quanta sede o altar queria o pio cruor
80.  viu Laodamia ao partir seu marido,
    do novo esposo os braços tendo que largar
 antes que um após outro a vir invernos
    amor voraz em longas noites saturassem,
 para aturar viver, rompido o enlace.
85.     Já sabiam as Parcas: partiria em breve,
 se partisse soldado aos muros de Ílio
    pois do rapto de Helena, primeiros Argivos,
 Tróia atraía homens junto a si.
    Tróia, nefas!, comum sepulcro a Europa e Ásia,
90.  Tróia – aos fortes, às forças, todos, áspera
    cinza – tão miserável morte ao meu irmão
 trouxe, ah irmão roubado a mim tão triste,
    de ti tão triste, irmão, ah, luz também roubada,
 contigo nossa casa está enterrada,
95.     contigo foi-se embora, vã, nossa alegria
 que em vida teu gentil amor nutria.
    E agora longe estás, nem dentre conhecidas
 tumbas nem junto às cinzas de parentes;
    mas em Tróia fatal, Tróia cruel, areias,
100.  terras alheias lá têm-te enterrado,
    às quais se diz que às pressas juntos jovens Gregos
foram abandonando arcanos lares
   por que Páris, gozando a amante que raptou,
em calmo leito não fruísse fácil
105.    ócio: então te roubaram, linda Laodamia,
teu enlace mais doce que alma e vida
   pois te absorvendo em tanto vórtice de amor
a ardência a abismo te levou abrupto,
   qual o de Fêneo de Cilene, os Gregos dizem
110. que haurindo humores seca o solo píngüe,
   que (é fama) fez, talhando as medulas do monte,
de falso pai o filho de Anfitrião
   quando com certas setas no Estinfalo os monstros
matou a mando de um senho pior
115.    para a porta do céu a mais deuses abrir-se
e Hebe não ser de longa virgindade.
   Mas teu amor mais fundo foi que fundo abismo
pois te ensinou sofrer, domada, o jugo:
   nada mais grato ao pai pela idade abalado
120.   que um neto temporão que a filha embala,
   que, herdeiro, vindo enfim, da fortuna do avô,
seu nome faz lavrar no testamento,
   que aos risos do parente causando irrisão,
o espanta, abutre, da cabeça em cãs.
125.    Nem tem tanto prazer com o seu branco par
a pomba que, se diz, desfruta beijos
   das bocas sempre a dar mordidas, menos proba
que a mulher que por muitos tem quereres.
   Mas tu sozinha a estes furores venceste,
130. ao reveres de vez teu loiro esposo.
   A esta pouco ou nada tendo a conceder,
Minha Luz a meus braços entregou-se
   e correndo-lhe à volta aqui e ali Cupido
claro brilhava em túnica açaflor,
135.    e embora com um só Catulo não contente,
porque é discreta, as raras fugas vamos
   tolerar (não causemos tédio como os tolos).
Até Juno, a maior entre os celícolas,
   calou muito ódio ardente às culpas do marido –
140. Jove, o de muito querer, muitas fugas.
   Mas não é justo comparar homens e deuses
NEM MALES NÓS SOFREMOS TANTO COMO
   JUNO; ENTÃO DEIXA AS QUEIXAS E FIRME, CATULO,
larga a tarefa ingrata de pais trêmulos,
145.    pois ela pela mão do pai trazida não
veio à casa a exalar odor Assírio,
   mas numa noite incrível dons furtivos deu-me,
próprios dos braços de seu próprio esposo;
   basta-me, pois, que só a mim foi dado um dia
150. que ela marca com pedra bem mais branca.
   Para ti o que pude, um dom, perfeito em versos,
te dou, Álio, por teus favores todos,
   por que ferrugem não te cubra o nome, espessa
cada dia que passa, todo dia.
155.   Que os deuses tragam cá seus dons sem fim, que Têmis
soía dar aos homens bons de antanho.
  Sede felizes, tu e os que são tua vida,
a casa em que gozamos, a senhora,
  e a hóspede, que desde o início deu-me abrigo;
160. de quem todo o meu bem primeiro veio;
  que mais que todos é mais grata a mim que eu mesmo:
Minha Luz. Viva, é doce meu viver.

O Livro de Catulo. Tradução, introdução e notas de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996 (Texto e Arte; 13), pp. 139-144






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