quinta-feira, 27 de julho de 2017

Sobre a diversidade pedagógica.


Denomino “diversidade pedagógica” um conjunto de enunciados a respeito da educação em seus vários aspectos. Seus formuladores, membros da sociedade civil – não apenas trabalhadores da educação, em certos casos, estes são meros coadjuvantes – ou de órgãos governamentais, encontram-se no amplo espectro das ideologias políticas. Trata-se de vários tipos de discursos que pretendem constituir um espaço de discussão de questões educacionais num sentido público, aberto às diversas abordagens políticas, epistemológicas, estéticas… Mas, por certas razões (inconscientes e intencionais), eles não cumprem este objetivo. Lamentavelmente, tende a se tornar uma abstração de gabinete, algo que não existe, apenas um construto que traz apaziguamento às consciências inquietas que acreditam que a educação é a solução para todos os problemas do mundo (enquanto outros temas igualmente essenciais ficam relegados a um segundo plano). Um natimorto, se realmente chegou a ser concebido da forma pretendida… Ele atravessa todo o espectro ideológico, como afirmei acima, da esquerda à direita (para quem leva a ferro e fogo essas distinções), agregando as particularidades de cada credo. Por que a educação atrai tantos palpiteiros salvadores da pátria? Talvez porque todo mundo passou por um processo educativo, escolar ou de outro tipo, e o laço emocional seja muito forte, a experiência, com seus aspectos agradáveis ou não marca muito a personalidade da pessoa. Afinal, o que seria do animal humano sem o processo da educação? Entretanto, nenhum idealismo justifica a produção de juízos voluntaristas sem o mínimo conhecimento de causa (e entendo como causa aspectos históricos, filosóficos e políticos de todo campo educativo, não apenas “receitas caseiras”; requer um trabalho reflexivo paciente, que mobiliza história e memória, ética e racionalidade…).

Antes de avançar, alguns esclarecimentos oportunos. A expressão não é original e muitas vezes pode parecer estranha ao leitor da maneira como a emprego. Falo da  “minha diversidade pedagógica”, isto é, tal como a concebo. Contém certa dose de sarcasmo, por ser um tema banalizado a ponto de perder qualquer pertinência. Pode-se encontrar, “diversidade pedagógica” em outros contextos, bastante diferentes de minhas convicções a respeito do tema. Poderia utilizar “pluralidade pedagógica” ou “pluralismo pedagógico”; o efeito seria o mesmo. Melhor ainda: "Dissimulação pedagógica"! Entretanto, alguma implicação com a questão diversidade dentro de meu ser impeliu-me a usar a expressão. Por fim, “diversidade” remete a uma multiplicidade de visões, heterogêneas e conflitantes a respeito do tema. Dá uma ideia de uma sociedade aberta atuando. Mas, não é isso que ocorre.

Outra coisa; não defendo que qualquer elaboração intelectual seja aceita indiscriminadamente no contexto de uma conversação, diálogo e discussão acerca dos fundamentos de uma “boa educação” (no tocante a conteúdos, currículos, metodologias, políticas públicas, legislação, etc.). De forma alguma. Refiro-me ao vasto repertório formado ao longo dos séculos e que faz parte de nossa tradição ocidental – termo tao aviltado e propositalmente mal compreendido – , o que abrange desde a cultura clássica, passando pelas várias cristandades, até a produção intelectual do Renascimento e dos séculos da Modernidade e, finalmente, a Contemporaneidade. Estarei sendo “reducionista”, “etnocêntrico”, “elitista”, entre outros qualificativos que querem explicar tudo e acabam não esclarecendo nada? Depende do que se entende das expressões arroladas acima. Não dá  para abranger tudo o que existe. Vira superficialidade. Operamos a partir da perspectiva em que estamos; somos brasileiros, latino-americanos, tributários principalmente da cultura europeia e de elementos das culturas indígenas e africanas. De forma conflituosa, muitas vezes. O elitismo? Se se entender elitismo como opção deliberada pelo que melhor se produziu dentro de nossa tradição, algo canônico – certamente discutível e provisório, mas que passou pelo olhar de gente mais experiente que nós e, portanto, afigura certa excelência paradigmática, a ser conhecida, apreendida e depois reelaborada, ou deixada de lado, se for o caso – então, sou um elitista…
Existe muita coisa (autores, obras e conceitos) desconhecida, subestimada, mal compreendida, dentro de nossa tradição. Quanto às outras civilizações? Respeitemo-las, porém, antes de iniciar uma grande conversação com o outro, devemos conhecer em profundidade o que nos formou ao longo dos séculos. O que nós somos, para o bem e para o mal. Daí empreendemos um diálogo franco com o outro. Não se dialoga renegando nossa identidade (termo tão instrumentalizado e desgastado). Ou se envergonhando dela. Tanto no que se denomina “Ocidente”, “Oriente”, “África” quanto em outras configurações culturais e territoriais possíveis, existe barbárie e civilização, luz e trevas, sabedoria e ignorância. Não há paraíso em lugar algum.

Terminado este parenteses. Retomo a problematização da “diversidade pedagógica”

A diversidade pedagógica é, portanto, uma diversidade aparente, diria ilusória, no sentido de tentar cumprir sua promessa de dialogicidade sem fronteiras, na plena circulação das ideias, criticidade e conflito, sem limites rígidos, mas sem estofo (quanto à qualidade dos argumentos, conteúdos, honestidade intelectual e mesmo, real interesse de levar a efeito esse projeto). Acrescentaria que é uma diversidade dissimulada, seletiva (talvez hipócrita), pois apenas certas concepções, conceitos, autores e narrativas são considerados os mais legítimos e apropriados para o suposto diálogo.

Predomina certo tato, um “bom tom” em contextos mais refinados ou descolados, ou minimamente polidos, relacionado ao que é legítimo, válido e passível de discussão no campo educativo. Do mesmo modo, existe aquilo (conceitos, ideias, autores etc.) que é categorizado como secundário, irrelevante, “pouco complexo”, ou ainda, “ultrapassado”, “reacionário”, “conservador”, “tradicional”; esses quatro últimos, são adjetivos infalíveis quando se desqualifica qualquer um que pretenda problematizar os pressupostos epistêmicos, políticos, estéticos, éticos da “diversidade pedagógica”. Assim, é mais fácil descartar ou estigmatizar visões divergentes de forma mais elegante e “científica”. Entendo “contextos mais refinados ou descolados” aqueles ambientes tais como Universidades, gabinetes de secretarias de educação, diretorias de ensino e eventos da grande mídia do tipo “Cafés Filosóficos”, cursos, publicações encontros e debates (ou, pelo menos, se pretende debater algo…) promovidos pela Folha de São Paulo, Carta Capital, entre outros veículos de comunicação, ONGs, entidades da iniciativa privada, preocupados com a educação. A “polidez” talvez seja ironia e maldade de minha parte. Quem passou por um curso de licenciatura e tentou questionar determinado pensador e sua obra sabe do que estou falando. Melhor entender “polidez” como dissimulação, desfaçatez, com um pouco de humor britânico.
Em ambientes mais rudes (seja no tom da linguagem ou significando “vamos direto ao assunto sem enrolações”), entretanto, o clima é mais áspero, por vezes brutal, mas não necessariamente. É possível encontrar gente educadíssima. Refiro-me a lugares tais como o chão da luta sindical, da sala dos professores (sob certas circunstâncias, embora seja doloroso reconhecer isto; no entanto, acredito que na maior parte das vezes a sala dos professores tende a ser uma espécie de distanciamento da rotina entre as aulas), das reuniões pedagógicas (aqui, no Estado de São Paulo: PCTP), OT’s e cursos ministrados pelas Diretorias de Ensino (poderia alocar estes dois últimos itens nos “ambientes polidos”). Aqui, o “bem” e o “mal”, o “adequado” e o “inadequado”, (termos irritantes e vagos, apropriados da psicologia comportamental mais rasteira), o “amigo” e o “inimigo” da educação pública e do professorado são nomeados de forma mais direta. Em especial após as jornadas de junho de 2013, a tensão tornou-se mais feroz, quem era colega um dia antes vira desafeto no dia seguinte. Contribuiu em muito o uso intenso das redes sociais…
Os dois ambientes que descrevi acima, de maneira um tanto quanto artificial e subjetiva, são igualmente maniqueístas e classificatórios, diferindo apenas na intensidade dos discursos prescritivos, imperativos e/ou estigmatizadores.
Talvez a diferença marcante entre os dois seja socieconômica, o primeiro, mais elitizado, enquanto o outro engloba a totalidade do professorado (os ATPC’s são obrigatórios e é impossível escapar da convivência na sala dos professores na maior parte do tempo).

O que conta é a subserviência intelectual, adesão acrítica a uma determinada filiação metodológica (diria “teórica”, todavia um verdadeiro trabalho teórico com o necessário rigor é o que menos se encontra) no sentido mais superficial do termo, o de se afilar, aplicar, (como se a relação entre teoria e práxis fosse tão mecanicista assim…) indiscriminadamente e sem nenhuma mediação, as mais variadas concepções pedagógicas (ou psicopedagógicas) disponíveis no mercado das ideias educacionais. Se na concretude e complexidade da sala de aula este aparato ficar aquém dos resultados desejado ou tornar o trabalho ainda mais difícil, a responsabilidade é quase sempre do docente, e não necessariamente do ideário que foi proposto (ou melhor, imposto de cima para baixo).

Além da subserviência intelectual, existe a espinhosa questão da filiação política, ou politização, ideologização, partidarização entre outros… Que a Política (com p maiúsculo mesmo, significando a arte de dialogar e debater para organizar as relações entre os indivíduos, da sociedade civil e o Estado, do gerenciamento de recursos para o bem comum, ou seja, Republicanismo na melhor acepção do termo) é algo imprescindível em tudo o que se relaciona à educação, a política (minúscula em vários aspectos) no seu sentido mais depreciativo torna o ato educativo algo quase irrealizável. A subserviência a uma ideologia política é extremamente valorizada. Seja a partidária, em especial no sentido do “nós contra eles” ou algo mais metafísico, idealizado: “acredito na justiça social”, na “igualdade”, no desenvolvimento do “senso crítico”, no “socialismo” que, de forma alguma foi aquilo praticado na Cortina de Ferro e outros lugares, caso seja um educador de esquerda; um adepto da economia de mercado tem este discurso: “acredito firmemente que a educação (nesse caso sempre a escola) é um instrumento de fundamental importância (senão o único) para a inserção do jovem no mercado de trabalho”. De certo modo produzo uma caricatura. Acredito que a educação tem certo papel na vida econômica. Porém, é preciso especificar este papel, para que ele não inviabilize o que é o principal do dispositivo escolar, a transmissão de um legado cultural e a formação de um sujeito letrado, no sentido mais amplo da palavra. A educação não se limita a instituição escolar, e a tal “inserção no mercado de trabalho” pode ser feitas de forma mais eficiente em outras instâncias. Acredito na “justiça social”, mais é necessário qualificar o que se entende por este conceito, para destruir falsas expectativas e projetos enganosos (e oportunistas). E, novamente, verificar o que a escola pode contribuir para este ideário e o que pode comprometer o que é próprio da escola. Em outras palavras, uma escola pública de qualidade e acessível a todos é uma forma de fazer uma parte da “justiça social”. Outras instituições podem fazer sua parte.
“Senso crítico”? Temos aqui uma expressão que pode ser falaciosa se não for bem compreendida. Se entendermos como discernimento dos elementos de um dado discurso (filosófico, científico, político, religioso, estético, moral…), análise dos seus componentes, seus limites, ideal de autonomia intelectual, capacidade de pensar por conta própria após adquirir uma disciplina intelectual. Se for isso, tudo bem. Entretanto, muitas vezes “senso crítico” significa demonizar aquilo que é diferente e divergente, seguir uma “cartilha ideológica” de antemão, sem nenhuma autonomia, apenas para fazer parte do grupo ou por mesquinharia sectária.
A “diversidade pedagógica” tende a ignorar ou embaralhar estes pressupostos, tornando qualquer análise diálogo mais densos impossíveis.
O que torna a “diversidade pedagógica” um projeto inviável é a incapacidade ( ) que os seus defensores têm em apreender criticamente os limites de seu discurso e sua efetivação possível. Além disso, não sabe lidar com o imprevisto`, com o contraditório e com a divergência. É uma espécie de “cientificismo” que espera sempre estar no controle de tudo e nunca errar, atribuindo seus fracassos àqueles que lhes fazem resistência e questionamento. Desse modo, “Educação para Todos”, educação para a tolerância e diversidade (étnica, de gênero, religiosa, de lugar...), educar para a “Sociedade do Conhecimento”, formação integral, educação para a igualdade ou para equidade (em ambientes menos esquerdistas), educação para o empreendedorismo e para o protagonismo juvenil, entre tantos outras concepções que deveriam ser melhores analisadas, se reduzem a meras cartas de boas intenções que não se desdobram em práticas realmente significativas. Quando não se transformam em slogans repetidos ad infinitum, promessas que nunca serão realizadas. O que realmente ocorre, contra tudo que parte de seus proponentes acredita com ética e honestidade intelectual (uma outra parte, mais atuante, está satisfeita com a dissimulação e engodo) é uma socialização, uma adaptação ao existente – certo índice de alfabetização, ainda que insatisfatório, certas competências e habilidades exigidas pelo mercado de trabalho, embora por si só não garantam uma colocação –, mas não um processo educativo, uma formação cultural que mereça este nome.
Se desejamos/lutamos pela formação de um sujeito letrado e autoconsciente – com pleno domínio do ler, escrever, contar e apto a interpretar elementos de suportes diversos (escritos, sonoros, visuais…); que tenha conhecido e se apropriado de parte significativa do patrimônio cultural da humanidade, os caminhos para se chegar a este fim são variados (não inumeráveis, mas não apenas um).não existem professores, salas de aula, escolas ideais, experiências idênticas. Existem várias formas de educar, sem que estas entrem em conflito umas com as outras, ou uma seja privilegiada em detrimento das demais. Vários afluentes deságuam num rio. Teorias e metodologias, tomadas sem nenhum critério desembocam em lugar algum. 

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