quinta-feira, 27 de julho de 2017

Resenha do seriado Handmaid's Tale (O Conto da Aia).



Minhas primeiras impressões a respeito do Conto da Aia (Handmaid's Tale) são extremamente positivas, as melhores possíveis. Digo isto com certo sarcasmo, pois, foi bastante desconfortável assistir os primeiros episódios, tal a brutalidade concreta e simbólica que a história e sua competente forma de narrativa nos apresentam. E, se provocou mal-estar é porque a intenção do elenco, diretores, roteiristas e demais envolvidos foi atingida. E congratulo a escritora canadense Margareth Atwood, autora do livro homônimo, publicado em 1984, de onde série foi inspirada, por uma obra que provoca enorme inquietação sobre temas urgentes da contemporaneidade.
Do mesmo modo que Game of Thrones, comecei pela adaptação televisiva e, depois, aos poucos fui lendo a saga de George R.R.Martin. Curiosamente, estou lendo Orys e Crake, romance distópico da mesma autora. É o meu primeiro contato com sua obra.
         Narrada por Offred, outrora June, jovem de 31 anos, que vive na República de Gilead - Estado Teocrático que ocupa o território dos Estados Unidos num futuro próximo. Formada em ciências humanas, June sofre as imposições do novo governo, perde, assim como todas as mulheres, seu emprego e direito à conta bancária, e se vê dramaticamente afastada de sua filha e marido,após uma tentativa malsucedida de fuga para o Canadá. Depois de um treinamento brutal empreendido pela "Tias", June é transformada numa Aia, mulher fértil que deve servir a família dos Comandantes (chefes militares que detém o poder) e, periodicamente, participar de um ritual bizarro, denominado "Cerimônia", que consiste na violação sexual da aia em presença da esposa do Comandante. Inspirado em  Gênesis 30: 1-3, em que Raquel, impossibilitada de gerar filhos para Jacob, como que legitima que seu irado marido se aproveite da serva Bilha, para que Raquel "receba filhos por ela". As mulheres destes militares são estéreis, devido à idade ou transformações ambientais, que ficam subentendidas na trama.
        Portanto, vamos conhecendo aos poucos o mundo fechado da República de Gilead através dos olhos de Offred (em outras palavras, June perdeu seu nome e tornou-se propriedade do Comandante Fred Waterford, aportuguesando: de Fred). Há outros focos narrativos, mas Offred é o centro de todo o desenrolar dos acontecimentos.
        Sagas sobre indivíduos e coletividades submetidos a regimes totalitários contados sob diferentes prismas mobilizam a atenção de todos, especialmente quando bem contadas. Seguindo uma linhagem que engloba Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Nós, de Nós, de Ievgueni Zamiatin, 1984, de George Orwell e, em especial, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, para ficar nos mais emblemáticos, Margaret Atwood imprime seu estilo na literatura de ficção científica, com uma marca implacável como o metal incandescente sob a pele de um animal ou uma pessoa submetida à tortura.
        Vou denominar essa marca de universo da não-palavra. A República de Gilead é um universo da não-palavra porque a palavra – escrita, lida, falada – está sob rígido controle, sufocada a ponto de perder qualquer relevância. Os livros estão banidos. Mesmo a Bíblia (em especial o Antigo Testamento), que seria o fundamento teológico e institucional da República de Gilead; Estado teocrático que, num futuro próximo abrange parte do território dos Estados Unidos após um golpe de estado, dentro de um contexto de crise ambiental severa; é apropriada numa forma extremamente seletiva, enfatizando aspectos do interesse da camada dominante. Frases e passagens descontextualizadas, lidas de forma literal, sem nenhuma hermenêutica, sob a forma de imperativos. Salvo engano, não vemos personagens lendo a Bíblia. Na oração que antecede a bizarra e brutal “Cerimônia”, o Comandante lê uma oração dum livrinho que, tanto pode ser uma Bíblia de bolso ou uma coletânea de passagens que são consideradas adequadas. É uma sociedade onde predomina a comunicação oral, que igualmente está sob um controle tão implacável quanto o mínimo de palavra escrita que é permitido, nesse caso para aqueles que detém o poder, apenas homens.
        Utilizo “palavra” no sentido de linguagem, veículo da interação entre os seres humanos. Ferramenta criadora de cultura e conflito, sentidos, significados, conceitos, caminhos e limites; com toda sua ambivalência e resultados inesperados.
No ambiente estéril do Conto da Aia, com altas taxas de infertilidade e recursos alimentares escassos, a palavra já não é mais criadora, instituidora de cultura. Serve apenas para demarcar fronteiras e hierarquias, absolutas e inegociáveis.
Nos supermercados, os rótulos limitam-se a sinais e símbolos bastante simplificados que indicam o que se está adquirindo. Numa estação do metrô, operários retiram placas e letras afixadas nas paredes de concreto. Serão substituídos por outra linguagem.





      Após uma sucessão de catástrofes globais, que provocaram:

– degradação ambiental e escassez de alimentos, acompanhada por efeitos na saúde (no caso do Conto da Serva, uma repentina perda da fertilidade de vastos contingentes da população, em especial a feminina; além disso, poucos bebês sobrevivem após nascerem, e não apresentam doenças congênitas, que acabam invariavelmente levando a morte)
– crise econômica, falência dos parques industriais e desemprego crescente;
– perda de confiança na política e advento de grupos que defendem soluções autoritárias.

       Nesse caso, os Filhos de Jacob, mediante estratégias inspiradas na CIA, nos totalitarismos de direita e de esquerda. Encarceramento e execução de intelectuais e professores, tal como praticado pelo Kmer Vermelho. Contrainformação e clima de terror permanente, via delações, a maneira orweliana. Momentos de extravasamento de ódio através de linchamentos. Uso da internet apenas pela elite (masculina) governante e militares; ataques terroristas a edifícios símbolos da democracia norte-americana e finalmente, acesso ao poderes que constituem uma religiosa, com a reelaboração de leis e expurgo dos dissidentes. 

Como os Estados Unidos da América foram, em poucos anos, se transformando na República de Gilead? O povo demorou aperceber? E quando tomou consciência da tragédia, já era tarde demais, restando o exílio e a fuga. Questões que ficam em aberto, e mostram como a democracia é uma sistema frágial e precioso, que precisa ser...

      Há hipocrisia e resistência, mercado negro e prazeres proibidos à todos, porém acessiveis a alguns privilegiados.

       As comparações com a recém-instalada era Trump e seus desdobramentos políticos e culturais precisam ser matizasas. Existem analogias possíveis, no tocante ao isolacionismo econômico e xenofobia. Suas piadas grosseiras a respeito das mulheres e acusações de abuso sexual … Entretanto Donald Trump é um hedonista e é pouco provável que esteja interessar em vedar o acesso das mulheres à educação ou proibi-las de trabalhar.

       É inegável a existência de reacionarismo político e religioso dentro do Partido Republicano. E também de certos grupos cristãos à margem da política partidária. Vale lembrar das bizarras figuras de Rick Santorum e Sara Palin, que concorreram como candidatos para a nomeação republicana à presidência dos Estados Unido nas prévias de 2008. O primeiro, católico tradicionalista, com forte teor anti-intelectualista e a segunda, de orientação protestante, seguindo um viés militarista. Mitt Romney e John McCain eram mais razoáveis e bem mais equipados intelectualmente para assuntos de economia e política externa. Romney que é mórmon, sofria certa discriminação por causa de sua fé, vista por alguns como não-cristã. O que dá uma ideia da complexidade do universo religioso estadunidense.

De qualquer forma o que vemos no seriado é uma distopia com forte inspiração no mais extremo fundamentalismo muçulmano, representado pelo Estado Islâmico (ISIS) e o Talibã quando em seu auge. Gostemos ou não, o Islã contemporâneo tem pendores mais totalitários do que o cristianismo ocidental. Basta pesquisar com distanciamento crítico a situação dos cristãos em países islâmicos e a perseguição de muçulmanos mais contestadores em seus próprios Estados.

Embora a República de Gilead seja uma ditadura de inspiração cristã fundamentalista, ao estilo WASP norte-americano, é impossível ignorar as conexões com o extremismo islâmico, sobremaneira sua obsessão em controlar a sexualidade feminina e o papel da mulher na sociedade. Uma das primeiras medidas foi a proibição do trabalho feminino ao ponto das mulheres não poderem mais ter conta bancária. Quem acompanha com atenção a série se lembrará de quando June, acompanhada da amiga Moira, ao adentrarem um Café, não conseguir pagar o lanche com seu cartão de débito, embora o pagamento tenha caído há poucos dias. E ainda são tratadas com grosseria pelo dono do estabelecimento (talvez devido aos trajes esportivos que usavam na ocasião), provável simpatizante da nova ordem que se instituía sorrateiramente. 

Outra medida extremista foi a proibição do acesso à leitura às mulheres, lei que teve a participação da esposa do Comandante Waterford, paradoxalmente uma acadêmica responsável por pesquisas importantes sobre fertilidade e meio ambiente.

Não é coincidência que Margaret Atwood situe a formação de seu Estado fictício na Nova Inglaterra, região da caça às bruxas de Salém e marcada por rígida tradição puritana. O vestuário vermelho das aias remete à indumentária do século XVII, lembrando a pintura holandesa deste tempo e a severa tradição calvinista.

De qualquer forma, as analogias com o Estado Islâmico e o Talibã (quando no seu auge) são mais fortes do que com a tradição cristã, especialmente a Reformada. Um olhar sem preconceitos para com a história do cristianismo mostra que, antes da instrução pública do século XIX, reivindicada pelos revolucionários de 1789, os protestantes defendiam o acesso à leitura e escrita, ainda que básicas, para as camadas populares, incluindo as mulheres, cada indivíduo seria seu sacerdote, dizia Martinho Lutero, daí aprender a ler para ter acesso à sagrada escritura. Vale lembrar que as grandes universidades estadunidenses têm origem na tradição reformada. Do mesmo modo, o Islã não se resume ao fundamentalismo. Em tempos de politicamente correto e desonestidade intelectual é preciso se precaver para certo anticristianismo barato e irresponsável. E tratar a sociedade de forma acrítca. Ou criticá-la sem fundamento teórico e empírico.





Uma série feminista? Sim, no aspecto de valorização dos direitos e dignidade da mulher, pois são as primeiras vítimas de regimes totalitários deste tipo. Mas os homens também são atingidos quando violam as rígidas regras. Há uma cena rápida, quando Offred e sua amiga voltavam do supermercado e presenciam os militares saindo das emblemáticas vans pretas e aprisionam um homem que portava uma maleta. Homossexual? Suspeito de espionagem e traição? Contrabandeava livros e outros materiais proibidos?
        Para além dessa polêmica, o seriado trata da destruição do humano, independente de gênero, etnia, condição social. E demonstra essa barbárie através da ficção de forma brilhante.  

    A construção dos personagens é delicada, sem caricaturização. Todos apresentam a devida complexidade para uma ficção madura, mesmo aqueles mais abjetos. Existe, portanto, uma presença do mal (que entendo como metafísico) e da injustiça, mas sem a necessidade de um maniqueísmo empobrecedor. Só um insano simpatizaria com a ideologia totalitária da República de Gilead, os procedimentos das “Tias” e dos Comandantes e seus subordinados. Todavia, estamos lidando com personagens consistentes, com todas as ambivalências, o que torna o espetáculo mais estimulante. Torcer por June/Offred e as pelas demais aias, pela democracia e Estado de Direito que foram abduzidos não significa apenas alguns momentos de entretenimento pensante, neste caso. Significa defender valores civilizatórios através da arte, sem panfletarismo, algo extremamente difícil. 

    O elenco é irrepreensível, destacando, sem dúvida, a Elizabeth Moss, que compõe com luminosidade uma sofrida e corajosa, na medida do possível, June/Offred que luta contra sua aniquilação (desculpem-me não ter uma expressão mais original, usaria “uma sofrida e resiliente June/Offred”, porém tenho restrições ao uso banal das palavras resiliência/resiliente - implica certo conformismo e transformação da pessoa num objeto maleável, não é por acaso que é um termo importado da física e engenharia, mas fica para outra discussão). Destaco principalmente seu olhar, predominante triste e com alguns lampejos de frágil esperança, que diz quase tudo… Joseph Fiennes, quiçá o ator mais conhecido, encarna um contido e um tanto sinistro Comandante Waterford. Sua consorte,  Serena Joy (Yvonne Strahovski) é uma mulher que recalcou sua carreira intelectual pela causa política e a insana fé. Angustiada pela impossibilidade de ser mãe. Ann Dowd, implacável na temível Tia Lydia, com sua postura imperativa e sufocante, toda vez que aparece. No entanto, também apresenta alguns momentos de ternura quando consola a aia Janine (outra personagem perturbadora, à beira da loucura) excluída de um evento, ao exemplo de outras servas, por causa das mutilações resultantes de castigos físicos, no caso dela, um olho perdido. Seria interessante uma maior exploração da vida interior destes “vilões”. Como viviam antes deste cataclismo civilizatório? O que os levou para esse caminho totalitário? de oprimirem sua humanidade e racionalidade e a infligir tanta dor aos outros. Em suas mentes ainda existe espaço para a dúvida? E por fim, o motorista Nick, soturnamente vivido por Max Minghella, uma espécie de agente de elite do Estado infiltrado no cotidiano de todos, chamado "Olho". 

O desenho de produção evita pirotecnias desnecessárias. Os cenários são despojados e escuros, em especial os interiores; tudo de acordo com o ideário ascético da República de Gilead. Quase tudo se resume ao mínimo necessário, como se demonstrar um traço pessoal fosse pecado (e é, na mente…). Uma possível exceção é o escritório do Comandante Waterford, com uma generosa biblioteca, com tudo aquilo que é negado ao povo, e as mulheres, livros.  As pessoas saem as ruas o mínimo possível, compras e trabalho, com a indumentária que distingue sua posição social. Os sisudos e onipresentes militares e seus veículos escuros são outra conexão com o mundo real, remetendo aos paramilitares do Oriente Médio e América Latina. Em contraste, o mundo pré-ditadura é mais luminoso, vívido; embora sintamos a presença sutil da crise ambiental e, da política e social que se desencadeará em breve.

A 1ª temporada limitou-se a dez capítulos, com um final em aberto, tal como o livro. Para quem leu o romance, esta temporada abrangeu o romance todo, exceto por um apêndice fictício, onde se especula sobre o destino de Offred/June.O que parece ser a base da próxima ou próximas temporadas. Agora fica por conta da imaginação e talento dos roteiristas, embora Margaret Atwood seja consultora da série e possa dar dicas de como continuaria sua história através de outros olhares .  Depois de reconhecer a excelência da produção fico sempre preocupado com uma possível “encheção de linguiça” que estraga tantos projetos interessantes. Todavia,  a equipe parece empenhada em realizar um trabalho de qualidade. Acredito que esteja errado e os passos seguintes sejam surpreendentes. O início foi promissor e constitui ótimo material rico para fruição estética e reflexão.







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