Um
célebre crítico francêsii
que trata de poesia e pintura se dedica a um tópico que outros já
examinaram, mas sem sucesso; qual seja, explicar o nosso forte apego
por objetos de angústia, imaginários ou reais. “Não é fácil”,
diz ele, “explicar o prazer que nos dão a poesia e a pintura, que
com frequência lembra a aflição e cujos sintomas são por vezes
idênticos aos da mais profunda tristeza. As artes da poesia e da
pintura nunca são tão aplaudidas como quando logram produzir a dor.
Um misterioso encanto nos vincula a representações dessa natureza,
no mesmo instante em que o nosso coração, repleto de angústia, se
insurge contra o prazer. Tentarei desfazer esse paradoxo e explicar o
fundamento dessa espécie de prazer, tarefa que pode parecer
ambiciosa, quando não incauta, pois promete dar conta do que ocorre
no peito de cada um, das secretas fontes de sua aprovação e
desgosto”. Acompanhemo-lo em sua árdua tarefa. A título de
fundamento, ele arrisca a seguinte explicação: “O homem é, por
natureza, destinado à atividade; a inatividade do corpo ou da mente
traz langor e desgosto, e esse motivo é suficiente para que se
recorra a toda sorte de ocupação em busca de alívio. Por instinto,
saímos à cata de todo objeto que possa excitar nossas paixões e
nos mantenha agitados, e isso a despeito da dor que nos traz, das
noites em claro e dos dias perdidos; os homens sofrem mais com a
ausência de paixões do que com a agitação que elas ocasionam”.
Eis, em suma, a primeira seção. Na seção seguinte, ele desce a
exemplos particulares. O primeiro é a compaixão, que faz com que
nos atenhamos à miséria e angústia alheia, embora desse modo
tomemos parte em seu sofrimento. Esse impulso, observa o autor,
depende inteiramente do princípio anterior, pelo qual preferimos uma
ocupação, por mais dolorosa que seja, à desocupação. O autor
menciona ainda o exemplo das execuções públicas. “Acudimos em
multidão ao espetáculo mais horrendo que se poderia contemplar,
assistir a um pobre miserável sendo torturado numa roda, queimado
vivo ou estripado. Quanto mais angustiante a cena, maior o número de
espectadores. É possível antever, mesmo sem a experiência, que as
cruéis circunstâncias da execução, que os profundos gemidos e a
angústia de nosso semelhante produzirão uma impressão cuja dor só
será dissipada após um longo período de tempo. O atrativo da
agitação é mais forte que os poderes de reflexão e experiência
juntos”. Ele prossegue mencionando o estranho deleite do povo
romano com os entretenimentos encenados no anfiteatro: criminosos
expostos a feras selvagens, grupos de gladiadores que se abatem uns
aos outros, e aproveita a ocasião para fazer a seguinte observação
a respeito da nação inglesa: “Os ingleses têm um coração tão
terno que mostram humanidade para com os piores criminosos. Não
permitem a tortura, alegando que é preferível deixar impune um
crime a submeter um inocente aos tormentos que outros países
cristãos utilizam para extorquir uma confissão de culpa. Mas este
povo tão cioso de seus semelhantes sente um prazer infinito no
pugilismo, na tourada e em outros espetáculos selvagens”. E
conclui mostrando que o próprio horror à inação é o que leva os
homens a se entregarem aos jogos, cartas e dados: “Os tolos e os
trapaceiros é que procuram o jogo com a esperança de ganhar. A
maioria tem outros motivos. Negligenciam as diversões que requerem
destreza e habilidade, e preferem arriscar a fortuna em jogos de
azar, que mantêm a mente em contínuo movimento e onde cada lance é
decisivo”.
Tal
é, em linhas gerais, a explicação de nosso autor. É inegável que
ela tem ares verdadeiros; mas as seguintes considerações levam-me a
colocá-la em questão. Em primeiro
lugar, se a dor da
inação é o motivo que nos arrasta aos referidos espetáculos,
seria de esperar que estes só fossem frequentados pelos que se
sentem mais oprimidos pelo ócio. Mas não é o que acontece; toda
sorte de gente acode a eles. Cenas de perigo e angústia exercem um
fascínio misterioso, que retira os homens das ocupações mais
sérias e opera tanto sobre os ativos como sobre os indolentes. Em
segundo lugar,
não houvesse em tais espetáculos algo mais que atrai a mente, além
da perspectiva de suprimir a dor da inação, a agitação seria o
único fundamento para que se preferisse um objeto a outro: quanto
mais agitada a mente, mais atraente o objeto. Mas a experiência diz
o contrário. Muitos objetos de horror e desgosto agitam a mente de
forma tão extrema que mesmo os mais ociosos procuram evitá-los. É
o que mostra cabalmente o exemplo que nosso autor encontra em Lívio:
“No início, a luta de gladiadores à moda romana mais assustava do
que agradava à plateia grega, desabituada a um espetáculo como
esse. Mas a frequência das exibições acostumou os olhos do povo,
que passou a apreciá-lo; e, com o tempo, difundiu-se entre os jovens
a paixão pelas armas.”iii
De início, os gregos não se deixavam atrair pelo espetáculo, ao
contrário, detestaram-no até que o costume o tornasse mais
familiar, menos incômodo, por fim apreciável. Pelo mesmo motivo, um
dos entretenimentos prediletos dos ingleses, a rinha de ursos, é
considerada repulsiva pelos franceses e por outras nações polidas,
como excessivamente selvagem para agradar a pessoas de gosto
refinado.
Fosse
o homem cujo ser cuja única perspectiva de ação consistisse em
obter prazer ou em evitar a dor, como quer a premissa de nosso autor,
que vai buscá-la no Sr. Locke,iv
essa suposição tornaria difícil, senão impossível, explicar
satisfatoriamente por que nos inclinamos a frequentar, de olhos
arregalados, entretenimentos inteiramente dolorosos. Mas, se
examinarmos com mais atenção a natureza humana, encontraremos
numerosos e variados impulsos de ação, independentes de prazer e
dor. Sigamos agora essa trilha, e vejamos se não nos leva a uma
solução do problema.
Se
prestarmos atenção às nossas emoções, não somente às que
despertam de objetos externos, descobriremos que são muito
diversificadas, fortes ou fracas, distintas ou confusas etc. Não há
divisão mais abrangente de nossas emoções do que entre agradáveis
e desagradáveis. Mas é desnecessário, e talvez seja vão, indagar
pela origem dessa diferença. Tudo o que podemos afirmar é que a
constituição de nossa natureza é tal que seu arranjo responde ao
sábio e benigno propósito do criador.
Outras
circunstâncias a considerar nas emoções é que a afeição
entra na composição de algumas, a aversão
na de outras. Sentimos afecção por certos objetos, queremos
possuí-los e desfrutá-los, outros despertam em nós aversão, e
procuramos evitá-los. Objetos agradáveis são os únicos capazes de
comover nossa afeição, na nossa aversão só se comove por objetos
desagradáveis. Não investigaremos aqui se todo objeto agradável
tem por efeito despertar uma afecção. Observo apenas que muitos
objetos desagradáveis e mesmo dolorosos não despertam em nós a
menor aversão. É verdade que objetos horrorosos, repugnantes ou
terríveis despertam aversão, mas muitas paixões e emoções, e
mesmo as mais dolorosas, não despertam qualquer aversão. O pesar é
uma emoção extremamente dolorosa, que não é, entretanto,
acompanhada de qualquer aversão. Pelo contrário, pode ser tão
atraente quanto algumas de nossas mais prazeirosas emoções, e é
com obstinação que nos apegamos a muitos objetos que o despertam.
Exemplo semelhante se encontra na compaixão. Objetos que produzem
angústia, embora causem dor, não despertam aversão; pelo
contrário, atraem-nos e inspiram-nos o desejo de aliviar a aflição
alheia.
Na
infância, desejos e apetites são os únicos incitamentos à ação.
Ao longo da vida, aprendemos a distinguir, em meio aos objetos que
nos cercam, os que produzem prazer dos que produzem dor, e vamos
assim adquirindo um incitamento de outra espécie. O amor-próprio
é uma poderosa motivação a buscarmos tudo o que possa contribuir
para a nossa felicidade. Opera por meio de reflexão e experiência,
e todo objeto que pareça acrescentar à nossa felicidade desperta em
nós inequívoco desejo de posse. Quando atua o amor-próprio, prazer
e dor são os únicos móbiles de ação. Mas nem todos os nossos
apetites e paixões são desse gênero. Muitos operam por um impulso
direto, sem intervenção da razão, à maneira de instintos animais.
E, assim como estes não são influenciados por nenhuma espécie de
raciocínio, também a perspectiva de não ser miserável, mas sim
feliz, não é inerente ao móbil que nos impulsiona. É verdade que
a gratificação de nossas paixões é agradável; também é verdade
que, ao dar ensejo a um apetite particular, a perspectiva do prazer
pode se tornr um móbil de ação, graças a um ato de reflexão. Mas
não se deve confundir tais coisas com o impulso que resulta
diretamente do apetite ou paixão, que opera às cegas, como eu
disse, à maneira de um instinto, sem qualquer consideração por
eventuais consequências.
Confirma
a distinção entre ações orientadas por amor-próprio e ações
dirigidas por um apetite ou paixão em particular a observação de
que se a meta do amor-próprio é sempre a mesma – a nossa
felicidade –, os demais apetites e paixões podem ter uma tendência
diferente. Isso se torna evidente pela seguinte indução: é
agradável a gratificação que temos quando nos vingamos de alguém
que odiamos. O caso é outro quando somos ofendidos por um amigo: a
amizade me impede de machucá-lo, por mais ofendido que eu esteja.
“Não encontro em meu coração um motivo para magoá-lo;
procurarei torná-lo ciente do mal que ele me fez”. Mas a sede de
vingança que é assim represada pode atacar os órgãos vitais da
parte ofendida e ser extravasada na forma de irritação e mau humor,
e os vapores só se dissipam com o tempo ou com um pedido de
desculpas. Não faltam exemplos de pessoas atingidas por esse humor
nefasto, por essa espécie de vingança que se volta contra a parte
ofendida e que, em troca de um pedido de desculpas, infligem a si
mesmas um grande malefício. Lembremos aqui a jovem que se desilude
com o amor, e que, para fomentar ainda mais sua angústia, se atira
nos braços do primeiro janota que lhe pede em casamento. Cada um
pode observar por si mesmo que a paixão do pesar, quando chega ao
auge, afasta para longe tudo o que tende a produzir tranquilidade e
conforto. Tomado pelo pesar, o homem se entrega à miséria com uma
espécie de simpatia pela pessoa por quem ele padece. “Como poderia
ser feliz, se meu companheiro não é?” Tal é a linguagem dessa
paixão. O homem que se encontra nessa circunstância é um tormento
para si mesmo. Temos assim um fenômeno singular da natureza humana:
um apetite pela dor, uma inclinação a tornar-se miserável por
contra própria, pior que o suicídio, crime que ao menos põe fim a
uma miséria que se tornou insuportável.
Isso
nos mostra quão imperfeita é a descrição da natureza humana
oferecida pelo Sr. Locke e pelo Abade Dubos, que não reconhecem
outro móbil de ação além do que resulta do amor-próprio ou das
medidas que tomamos para obter prazer e evitar a dor. Esse sistema
exclui muitos apetites e paixões, bem como a afeição ou aversão
neles envolvida. E, no entanto, podemos dizer, com alguma
probabilidade, que é mais frequente sermos influenciados por esses
móbiles do que pelo amor-próprio. Tão variada é a natureza
humana, tão complexos os seus poderes de ação, que ela não pode
ser contemplada de um único ponto de vista.
Podemos
agora retornar ao nosso tópico, uma vez expostos os princípios de
ação que lhe dizem respeito. Pode-se inferir do estabelecido que a
natureza nos designou para a sociedade e nos uniu intimamente uns aos
outros pelo princípio de simpatia, que comunica muitos a alegria ou
a tristeza de cada um. Compartilhamos da aflição de nossos
semelhantes, padecemos com eles e por eles, e seus infortúnios nos
afetam às vezes mais que os nossos próprios. E não admira que ao
invés de evitarmos objetos de miséria nos apegamos a eles, o que é
tão natural quanto o pesar que sentimos por conta de nossos próprios
infortúnios. Admiremos, entrementes, a sábia ordenação da
providência: se a nossas afecções sociais estivesse misturado um
mínimo de aversão, que fosse por eventuais sofrimentos, estaríamos
inclinados, ao perceber um objeto de angústia, a afastá-lo dos
olhos e da mente, não a aliviar o sofrimento alheio.
De
modo algum pode-se considerar esse princípio como um defeito ou
vício; é o cimento da sociedade humana. Não há quem esteja ao
abrigo do infortúnio, e a simpatia promove a felicidade e segurança
dos homens. A prosperidade e segurança de cada um deve ser
preocupação de muitos, o que contribui mais para a felicidade geral
do que se cada um só tivesse de depender de si mesmo, como numa ilha
deserta, sem poder contar com a consideração e o cuidado dos
outros. Mas isso não é tudo. Observando nosso caráter e ações a
partir de uma perspectiva reflexiva, não poderemos deixar de aprovar
a ternura e simpatia que encontramos em nossa natureza. Deleitamo-nos
com nós mesmos em virtude de nossa própria constituição, a
consciência de nosso mérito é fonte de satisfação contínua.
Ampliando
um pouco a nossa discussão, observaremos que por natureza temos uma
grande curiosidade pela história da vida de alguns homens. Julgamos
suas ações, aprovamos ou desaprovamos, condenamos ou absolvemos, e
a mente, assim ocupada, obtém um maravilhoso deleite. Há mais.
Envolvemo-nos profundamente com as preocupações alheias, tomamos
partido, compartilhamos alegrias e angústias, preferimos estes, não
gostamos daqueles. Esse pendor da mente explica porque histórias,
romances e peças são um entretenimento universal que agrada a
todos. Trata-se de algo natural ao homem, como criatura sociável, e
mais sociáveis são aqueles que mostram essa espécie de curiosidade
e preferem entretenimentos como esses.
A
tragédia é uma imitação, uma representação de caracteres e
ações humanas. É uma história fictícia, que em geral produz
impressões mais fortes que as de histórias reais: uma obra de gênio
que privilegia incidentes que produzam a impressão mais profunda,
conduzindo-os de modo a manter a mente em contínuo suspense e
agitação, mais intensos que na vida real. Uma boa tragédia excita
cada uma das paixões sociais. Somos tomados de súbita afeição
pelos personagens que representa: cativam-nos como amigos queridos, e
sentimos esperança e medo como se tivéssemos diante de nós uma
história verdadeira.
Ao
filósofo ignorante, que desconhece o teatro, pode parecer
surpreendente que a imitação tenha um efeito tão grande na mente
que a falta de verdade e realidade não seja um empecilho à operação
de nossas paixões. Mas, deixando de lado uma explicação material,
é evidente que essa aptidão da mente humana a receber impressões
de objetos fictícios ou reais contribui para os mais nobres
propósitos da vida. Não há nada melhor para aprimorar a mente e
torná-la virtuosa do que examinar as ações dos outros, compreender
o que impele o virtuoso a aprovar sua conduta e condenar e repelir o
vício. Pois a mente, a exemplo do corpo, só se torna forte com o
exercício. Se essa espécie de disciplina se confinasse a cenas da
vida real, teria pouco proveito para a maioria dos homens, dado que
tais cenas são relativamente raras. Mesmo na história, não são
muito frequentes. Em composições da arte, por outro lado, quando a
ficção tem lugar, somente a falta de gênio pode impedir o
exercício da mente pelo qual ela adquire sensibilidade e consolida
hábitos virtuosos.
Assim,
a tragédia cativa nossas paixões tanto quanto uma história real.
Amizade e respeito pela virtude, repulsa ao vício, compaixão,
esperança e medo, a série inteira das paixões sociais é
despertada e exercitada.
Parece
que temos aqui uma boa explicação de nosso gosto pelo teatro; mas,
examinando bem a questão, encontraremos dificuldades às quais os
princípios acima delineados dificilmente poderiam oferecer uma
resposta satisfatória. Não admira que os jovens acudam ao
entretenimento teatral. O apreço pela novidade, o desejo de se
manter ocupado e a beleza da ação constituem atrativos poderosos, e
se uma pessoa, qualquer que seja sua idade, toma a peito os
interesses das personagens, a atração se torna tão intensa que o
prospecto de aflição e pesar não é suficiente para impedir que
ela se envolva. Em geral, a experiência nos torna mais sábios; e
pode parecer surpreendente, dado que a angústia é o desfecho
infalível de encenações como essas, que pessoas dotadas de juízo
mais maduro não prefiram simplesmente evitá-las. Estaria adormecido
o amor-próprio, esse princípio tão ativo. Mais natural seria
pensar que a experiência nos ensina a nos mantermos afastados do
perigo, e que poucas pessoas dotadas de reflexão frequentariam as
tragédias mais dramáticas. O contrário, no entanto, é verdade: as
tragédias mais dramáticas são as prediletas de pessoas de todas as
idades, e em especial das mais impressionáveis, cujos sentimentos
são mais delicados. Um homem desse caráter mal se livrou da
profunda angústia em que foi lançado na noite anterior por uma bela
tragédia, quando decide calmamente, em seus aposentos, sem o menor
vestígio de amor-próprio, retornar ao teatro para assistir a outra
encenação como essa.
Isso
nos leva a uma conjectura das mais curiosas, acerca da natureza
humana. Estas especulações oferecem uma prova cabal de que,
contrariamente ao que se pensa, o amor-próprio nem sempre intervém
para evitar dor e angústia. Ao examinar como isso acontece,
descobrimos um admirável artifício da natureza humana para dar
plena vazão às afecções sociais. Tendo em vista, como dissemos,
que algumas paixões dolorosas são acompanhadas de aversão, e
outras de afeição, descobriremos, num exame mais rigoroso, que as
paixões dolorosas que na sensação imediata estão isentas de toda
aversão, dela também estão livres na reflexão em ato. Ou, para
expressar-me de modo mais prosaico, quando refletimos sobre a dor que
sofremos em nossa consideração pelos outros, se uma aversão se
mistura à reflexão, é devido à dor que sentimos ao considerar o
objeto. Que nos seja permitido, para ilustrar esse ponto, comparar a
dor que resulta da compaixão com uma dor física qualquer. O corte
da pele humana é acompanhado da mesma intensa aversão na sensação
imediata ou na reflexão posterior. Mas não sentimos o mesmo quando
refletimos sobre as dores intelectuais acima mencionadas. Pelo
contrário, quando refletimos sobre o infortúnio de um amigo, por
exemplo, a reflexão é acompanhada de intensa satisfação.
Aprovamos a nós mesmos quando sofremos com um amigo, sentimos apreço
por nossa pessoa por conta desse sofrimento, e suportamos de bom
grado a angústia de uma ocorrência como essa, tudo isso sem a menor
oposição do amor-próprio.
O
escrutínio das paixões dolorosas e livres de aversão nos mostra
que elas são todas do gênero social e resultam do nobre princípio
de simpatia, que é o cimento da sociedade humana. As paixões que
nos causam dor são acompanhadas pelo mesmo apetite de indulgência
concomitante às que nos causam prazer. Submetemo-nos resignados a
essas paixões dolorosas, e não nos parece que sofrê-las seja uma
penúria. Dada a nossa constituição temos a consciência de que há
regularidade e ordem nas coisas, de que nosso sofrimento é correto
e conveniente.
Afecções morais em geral, as dolorosas inclusive, estão
inteiramente isentas de aversão, mesmo quando refletimos sobre as
angústias mais comuns que nos oprimem. A simpatia, em especial, nos
vincula tão fortemente ao objeto de angústia, que chega a
sobrepujar o efeito do amor-próprio que dele nos afasta. A simpatia,
consequentemente, embora seja uma paixão dolorosa, é atraente: no
consolo ao próximo, a gratificação da paixão é um prazer
considerável. Essa observação ressalta o brilho próprio das
afecções morais, em contraste com as malignas ou egoístas.
Muitas
e variadas são as molas de ação da natureza humana, nenhuma é tão
admirável quanto a que ora examinamos. A simpatia é o princípio
que conecta as pessoas em sociedade por laços mais fortes que os de
sangue. E, por mais que a compaixão, que é sua cria, seja uma
emoção dolorosa, se fosse acompanhada de aversão, mesmo na
reflexão sobre angústia que ocasiona, esse sentimento enfraqueceria
gradualmente a paixão e nos curaria de uma grave doença. Mas o
criador de nossa natureza não deixou inacabada a sua obra. Deu-nos
esse nobre princípio por inteiro e sem contraparte, para que sua
operação fosse vigorosa e universal. Longe de termos aversão à
dor ocasionada pelo princípio social, refletimos sobre ela com
satisfação, e a ela nos submetemos contentes e de bom grado, como
se fora um prazer. Por isso, permitimos que a tragédia se apodere da
mente, com os muitos encantos que despertam do exercício das paixões
sociais, sem qualquer objeção do amor-próprio.
Estivesse
nosso autor ciente do princípio de simpatia, ele poderia explicar
porque compartilhamos a angústia alheia, sem precisar recorrer a uma
razão tão imperfeita como a repulsa à inação. Tampouco seria
preciso entrar em questões filosóficas, pois não faltam indícios
de que de fato é assim na vida comum. Em toda parte encontramos
pessoas de temperamento simpático que optam por dedicar suas vidas
ao cuidado dos carentes e doentes, que compartilham de suas aflições
e sentem profundamente suas preocupações, tristezas e pesares.
Vivem tristes e abatidas, sem outra satisfação que a do dever
cumprido.
Se
é justa essa explicação, podemos estar certos de que pessoas
dotadas de um temperamento caridoso são as que mais apreciam a
tragédia, que oferece pleno escopo ao fomento de sua paixão. Os
efeitos que a tragédia produz são mesmo admiráveis. As paixões,
assim como ganham força ao serem fomentadas, tornam-se fracas na
falta de exercício. Pessoas prósperas, que desconhecem a aflição
e a miséria, tendem a se tornar insensíveis. A tragédia é um
antídoto admirável a essa fraqueza. Ela humaniza o temperamento,
pois oferece objetos fictícios dignos de piedade cujo efeito é
praticamente o mesmo que o de objetos reais, ou seja, o exercício
das paixões. Levados por um impulso natural, mergulhamos nas
aflições despertadas pela representação de infortúnios
fictícios, e mesmo que nada mais atraia a mente ou lhe acene com
satisfação, a piedade é uma paixão capaz de reunir multidões
nessas representações.
A
curiosidade explica porque as execuções públicas são tão
populares. Pessoas dotadas de uma sensibilidade mais refinada se
empenham em corrigir um eventual apetite cujo fomento produz dor mas
não é acompanhado, na reflexão, do sentimento de mérito próprio.
Se execuções públicas entretêm sobretudo o vulgo, é porque este
se deixa guiar cegamente pela curiosidade, sem considerar se tais
espetáculos contribuem ou não para o seu bem.
O
pugilismo, a exemplo da luta de gladiadores, anima-nos e nos inspira
com exemplos de coragem e bravura. Entramos no espírito do lutador,
e tornamo-nos tão audaciosos e intrépidos quanto ele se mostra
diante de nós. Por outro lado, compartilhamos da angústia dos
derrotados, pelos quais sentimos uma simpatia proporcional à
valentia de sua conduta. Não admira que espetáculos como esses
sejam frequentados por pessoas de gosto distinto. Nossa motivação
tem aqui o mesmo princípio que produz em nós o desejo de conhecer
os feitos de conquistadores e heróis. Observe-se ainda que esses
espetáculos têm o notável efeito de ensinar a juventude a ser
intrépida e destemida. Portanto, não me parece que os estrangeiros
tenham razão em condenar o gosto inglês nesse particular.
Espetáculos dessa espécie merecem o estímulo do Estado e devem ser
objetos de políticas públicas.
Quanto
ao jogo, não concebo qual prazer haveria em manter a mente
suspendida, como se fora num cadafalso, tal como fazem os que apostam
dinheiro em jogos de azar. Inação e ociosidade são dores mais
suportáveis do que essa. Estou convencido de que, no fundo, move o
jogador a ganância pelo dinheiro. E não me venham dizer que alguém
prefere apostar seu dinheiro em jogos de azar por desprezo aos jogos
de habilidade e destreza, pois essa escolha só pode decorrer de algo
como impaciência, presunção ou indolência. Uma especulação
curiosa quanto ao jogo, é que há nele um prazer que se segue ao bom
desempenho e uma dor que se segue ao mau, independentemente do
resultado da partida ou da soma de dinheiro envolvida. É evidente
que a boa sorte eleva o espírito e a má sorte o deprime, não
importa o resultado final. Isso é próprio de nosso interesse pelo
jogo como diversão. Deixo a outros que investiguem a qual princípio
de nossa natureza pertence esse interesse.
Aproveito
esta 3ª edição de meus Ensaios
para resolver uma questão que permaneceu em aberto nas edições
anteriores. A terra mal produz para o uso do homem o que não
requeira o trato da indústria ou da arte; e o homem, que é
naturalmente artificioso e industrioso, está pronto a responder o
chamado. Se encontrasse tudo ao alcance das mãos, sem que tivesse de
pensar ou trabalhar, seria inferior à mais vil das criaturas
animais. E, se digo inferior,
é porque a mais vil criatura, perfeita em seu gênero, está acima
de uma outra corrompida, de não importa qual gênero. O amor-próprio
nos incita a trabalharmos em benefício próprio; a benevolência em
benefício dos outros. A emulação reforça esses princípios.
Encontra-se mesmo entre crianças, que querem vencer, ainda que não
saibam o que as incita tanto. Na luta por riqueza, glória e poder, a
emulação é uma figura esplêndida, que opera vigorosamente em
obras que requerem destreza e não adormece em disputas que dependem
do acaso, como jogos de cartas ou de dados. A verdade é que o prazer
da vitória sem a perspectiva do lucro é mais fraco. E lamento
dizer, mas os riscos extremos aos quais os homens se submetem nos
jogos de azar são instigados, senão em todas, no mais das vezes,
pela avareza.
i“Our
Attachment to Objects of Distress”. In: Essays on the
principles of morality and natural religion, ensaio I. 3ª
edição. Londres: 1779. Tradução: Daniel Lago Monteiro. (NE)
iiO
abade Dubos. [Jean-Baptiste Dubos, Réflexions critiques sur la
poésie et la peinture, introdução, cap. 1; livro I. 01 ss.
Paris: 1719. Cf. Hume, “Da tragédia”. In: Quatro ensaios.
Londres: 1757.] (NA)
iiiTito
Lívio, História de Roma, Livro XLI. (NA)
ivLocke,
Ensaio sobre o entendimento humano, livro II,cap. XXI, §§
37-43. 4ª edição. Londres: 1704. (NT)
Bibliografia: Lorde Kames (Henry
Home) Nosso apego a objetos de angústia. PIMENTA, Pedro Paulo
(org.) O Iluminismo Escocês. São Paulo: Alameda, 2011
Imagens: John Collet , The Female Bruisers, 1770 The British Museum; The Enraged Musician, 1741 - William Hogarth; Engraved print of The Beggar's Opera by William Blake after Hogarth, London, England, c.1729
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