sexta-feira, 28 de julho de 2017

Lorde Kames - Nosso apego a objetos de angústia.



Nosso apego a objetos de angústiai.

Um célebre crítico francêsii que trata de poesia e pintura se dedica a um tópico que outros já examinaram, mas sem sucesso; qual seja, explicar o nosso forte apego por objetos de angústia, imaginários ou reais. “Não é fácil”, diz ele, “explicar o prazer que nos dão a poesia e a pintura, que com frequência lembra a aflição e cujos sintomas são por vezes idênticos aos da mais profunda tristeza. As artes da poesia e da pintura nunca são tão aplaudidas como quando logram produzir a dor. Um misterioso encanto nos vincula a representações dessa natureza, no mesmo instante em que o nosso coração, repleto de angústia, se insurge contra o prazer. Tentarei desfazer esse paradoxo e explicar o fundamento dessa espécie de prazer, tarefa que pode parecer ambiciosa, quando não incauta, pois promete dar conta do que ocorre no peito de cada um, das secretas fontes de sua aprovação e desgosto”. Acompanhemo-lo em sua árdua tarefa. A título de fundamento, ele arrisca a seguinte explicação: “O homem é, por natureza, destinado à atividade; a inatividade do corpo ou da mente traz langor e desgosto, e esse motivo é suficiente para que se recorra a toda sorte de ocupação em busca de alívio. Por instinto, saímos à cata de todo objeto que possa excitar nossas paixões e nos mantenha agitados, e isso a despeito da dor que nos traz, das noites em claro e dos dias perdidos; os homens sofrem mais com a ausência de paixões do que com a agitação que elas ocasionam”. Eis, em suma, a primeira seção. Na seção seguinte, ele desce a exemplos particulares. O primeiro é a compaixão, que faz com que nos atenhamos à miséria e angústia alheia, embora desse modo tomemos parte em seu sofrimento. Esse impulso, observa o autor, depende inteiramente do princípio anterior, pelo qual preferimos uma ocupação, por mais dolorosa que seja, à desocupação. O autor menciona ainda o exemplo das execuções públicas. “Acudimos em multidão ao espetáculo mais horrendo que se poderia contemplar, assistir a um pobre miserável sendo torturado numa roda, queimado vivo ou estripado. Quanto mais angustiante a cena, maior o número de espectadores. É possível antever, mesmo sem a experiência, que as cruéis circunstâncias da execução, que os profundos gemidos e a angústia de nosso semelhante produzirão uma impressão cuja dor só será dissipada após um longo período de tempo. O atrativo da agitação é mais forte que os poderes de reflexão e experiência juntos”. Ele prossegue mencionando o estranho deleite do povo romano com os entretenimentos encenados no anfiteatro: criminosos expostos a feras selvagens, grupos de gladiadores que se abatem uns aos outros, e aproveita a ocasião para fazer a seguinte observação a respeito da nação inglesa: “Os ingleses têm um coração tão terno que mostram humanidade para com os piores criminosos. Não permitem a tortura, alegando que é preferível deixar impune um crime a submeter um inocente aos tormentos que outros países cristãos utilizam para extorquir uma confissão de culpa. Mas este povo tão cioso de seus semelhantes sente um prazer infinito no pugilismo, na tourada e em outros espetáculos selvagens”. E conclui mostrando que o próprio horror à inação é o que leva os homens a se entregarem aos jogos, cartas e dados: “Os tolos e os trapaceiros é que procuram o jogo com a esperança de ganhar. A maioria tem outros motivos. Negligenciam as diversões que requerem destreza e habilidade, e preferem arriscar a fortuna em jogos de azar, que mantêm a mente em contínuo movimento e onde cada lance é decisivo”.
Tal é, em linhas gerais, a explicação de nosso autor. É inegável que ela tem ares verdadeiros; mas as seguintes considerações levam-me a colocá-la em questão. Em primeiro lugar, se a dor da inação é o motivo que nos arrasta aos referidos espetáculos, seria de esperar que estes só fossem frequentados pelos que se sentem mais oprimidos pelo ócio. Mas não é o que acontece; toda sorte de gente acode a eles. Cenas de perigo e angústia exercem um fascínio misterioso, que retira os homens das ocupações mais sérias e opera tanto sobre os ativos como sobre os indolentes. Em segundo lugar, não houvesse em tais espetáculos algo mais que atrai a mente, além da perspectiva de suprimir a dor da inação, a agitação seria o único fundamento para que se preferisse um objeto a outro: quanto mais agitada a mente, mais atraente o objeto. Mas a experiência diz o contrário. Muitos objetos de horror e desgosto agitam a mente de forma tão extrema que mesmo os mais ociosos procuram evitá-los. É o que mostra cabalmente o exemplo que nosso autor encontra em Lívio: “No início, a luta de gladiadores à moda romana mais assustava do que agradava à plateia grega, desabituada a um espetáculo como esse. Mas a frequência das exibições acostumou os olhos do povo, que passou a apreciá-lo; e, com o tempo, difundiu-se entre os jovens a paixão pelas armas.”iii De início, os gregos não se deixavam atrair pelo espetáculo, ao contrário, detestaram-no até que o costume o tornasse mais familiar, menos incômodo, por fim apreciável. Pelo mesmo motivo, um dos entretenimentos prediletos dos ingleses, a rinha de ursos, é considerada repulsiva pelos franceses e por outras nações polidas, como excessivamente selvagem para agradar a pessoas de gosto refinado.
Fosse o homem cujo ser cuja única perspectiva de ação consistisse em obter prazer ou em evitar a dor, como quer a premissa de nosso autor, que vai buscá-la no Sr. Locke,iv essa suposição tornaria difícil, senão impossível, explicar satisfatoriamente por que nos inclinamos a frequentar, de olhos arregalados, entretenimentos inteiramente dolorosos. Mas, se examinarmos com mais atenção a natureza humana, encontraremos numerosos e variados impulsos de ação, independentes de prazer e dor. Sigamos agora essa trilha, e vejamos se não nos leva a uma solução do problema.
Se prestarmos atenção às nossas emoções, não somente às que despertam de objetos externos, descobriremos que são muito diversificadas, fortes ou fracas, distintas ou confusas etc. Não há divisão mais abrangente de nossas emoções do que entre agradáveis e desagradáveis. Mas é desnecessário, e talvez seja vão, indagar pela origem dessa diferença. Tudo o que podemos afirmar é que a constituição de nossa natureza é tal que seu arranjo responde ao sábio e benigno propósito do criador.
Outras circunstâncias a considerar nas emoções é que a afeição entra na composição de algumas, a aversão na de outras. Sentimos afecção por certos objetos, queremos possuí-los e desfrutá-los, outros despertam em nós aversão, e procuramos evitá-los. Objetos agradáveis são os únicos capazes de comover nossa afeição, na nossa aversão só se comove por objetos desagradáveis. Não investigaremos aqui se todo objeto agradável tem por efeito despertar uma afecção. Observo apenas que muitos objetos desagradáveis e mesmo dolorosos não despertam em nós a menor aversão. É verdade que objetos horrorosos, repugnantes ou terríveis despertam aversão, mas muitas paixões e emoções, e mesmo as mais dolorosas, não despertam qualquer aversão. O pesar é uma emoção extremamente dolorosa, que não é, entretanto, acompanhada de qualquer aversão. Pelo contrário, pode ser tão atraente quanto algumas de nossas mais prazeirosas emoções, e é com obstinação que nos apegamos a muitos objetos que o despertam. Exemplo semelhante se encontra na compaixão. Objetos que produzem angústia, embora causem dor, não despertam aversão; pelo contrário, atraem-nos e inspiram-nos o desejo de aliviar a aflição alheia.
Na infância, desejos e apetites são os únicos incitamentos à ação. Ao longo da vida, aprendemos a distinguir, em meio aos objetos que nos cercam, os que produzem prazer dos que produzem dor, e vamos assim adquirindo um incitamento de outra espécie. O amor-próprio é uma poderosa motivação a buscarmos tudo o que possa contribuir para a nossa felicidade. Opera por meio de reflexão e experiência, e todo objeto que pareça acrescentar à nossa felicidade desperta em nós inequívoco desejo de posse. Quando atua o amor-próprio, prazer e dor são os únicos móbiles de ação. Mas nem todos os nossos apetites e paixões são desse gênero. Muitos operam por um impulso direto, sem intervenção da razão, à maneira de instintos animais. E, assim como estes não são influenciados por nenhuma espécie de raciocínio, também a perspectiva de não ser miserável, mas sim feliz, não é inerente ao móbil que nos impulsiona. É verdade que a gratificação de nossas paixões é agradável; também é verdade que, ao dar ensejo a um apetite particular, a perspectiva do prazer pode se tornr um móbil de ação, graças a um ato de reflexão. Mas não se deve confundir tais coisas com o impulso que resulta diretamente do apetite ou paixão, que opera às cegas, como eu disse, à maneira de um instinto, sem qualquer consideração por eventuais consequências.
Confirma a distinção entre ações orientadas por amor-próprio e ações dirigidas por um apetite ou paixão em particular a observação de que se a meta do amor-próprio é sempre a mesma – a nossa felicidade –, os demais apetites e paixões podem ter uma tendência diferente. Isso se torna evidente pela seguinte indução: é agradável a gratificação que temos quando nos vingamos de alguém que odiamos. O caso é outro quando somos ofendidos por um amigo: a amizade me impede de machucá-lo, por mais ofendido que eu esteja. “Não encontro em meu coração um motivo para magoá-lo; procurarei torná-lo ciente do mal que ele me fez”. Mas a sede de vingança que é assim represada pode atacar os órgãos vitais da parte ofendida e ser extravasada na forma de irritação e mau humor, e os vapores só se dissipam com o tempo ou com um pedido de desculpas. Não faltam exemplos de pessoas atingidas por esse humor nefasto, por essa espécie de vingança que se volta contra a parte ofendida e que, em troca de um pedido de desculpas, infligem a si mesmas um grande malefício. Lembremos aqui a jovem que se desilude com o amor, e que, para fomentar ainda mais sua angústia, se atira nos braços do primeiro janota que lhe pede em casamento. Cada um pode observar por si mesmo que a paixão do pesar, quando chega ao auge, afasta para longe tudo o que tende a produzir tranquilidade e conforto. Tomado pelo pesar, o homem se entrega à miséria com uma espécie de simpatia pela pessoa por quem ele padece. “Como poderia ser feliz, se meu companheiro não é?” Tal é a linguagem dessa paixão. O homem que se encontra nessa circunstância é um tormento para si mesmo. Temos assim um fenômeno singular da natureza humana: um apetite pela dor, uma inclinação a tornar-se miserável por contra própria, pior que o suicídio, crime que ao menos põe fim a uma miséria que se tornou insuportável.
Isso nos mostra quão imperfeita é a descrição da natureza humana oferecida pelo Sr. Locke e pelo Abade Dubos, que não reconhecem outro móbil de ação além do que resulta do amor-próprio ou das medidas que tomamos para obter prazer e evitar a dor. Esse sistema exclui muitos apetites e paixões, bem como a afeição ou aversão neles envolvida. E, no entanto, podemos dizer, com alguma probabilidade, que é mais frequente sermos influenciados por esses móbiles do que pelo amor-próprio. Tão variada é a natureza humana, tão complexos os seus poderes de ação, que ela não pode ser contemplada de um único ponto de vista.
Podemos agora retornar ao nosso tópico, uma vez expostos os princípios de ação que lhe dizem respeito. Pode-se inferir do estabelecido que a natureza nos designou para a sociedade e nos uniu intimamente uns aos outros pelo princípio de simpatia, que comunica muitos a alegria ou a tristeza de cada um. Compartilhamos da aflição de nossos semelhantes, padecemos com eles e por eles, e seus infortúnios nos afetam às vezes mais que os nossos próprios. E não admira que ao invés de evitarmos objetos de miséria nos apegamos a eles, o que é tão natural quanto o pesar que sentimos por conta de nossos próprios infortúnios. Admiremos, entrementes, a sábia ordenação da providência: se a nossas afecções sociais estivesse misturado um mínimo de aversão, que fosse por eventuais sofrimentos, estaríamos inclinados, ao perceber um objeto de angústia, a afastá-lo dos olhos e da mente, não a aliviar o sofrimento alheio.
De modo algum pode-se considerar esse princípio como um defeito ou vício; é o cimento da sociedade humana. Não há quem esteja ao abrigo do infortúnio, e a simpatia promove a felicidade e segurança dos homens. A prosperidade e segurança de cada um deve ser preocupação de muitos, o que contribui mais para a felicidade geral do que se cada um só tivesse de depender de si mesmo, como numa ilha deserta, sem poder contar com a consideração e o cuidado dos outros. Mas isso não é tudo. Observando nosso caráter e ações a partir de uma perspectiva reflexiva, não poderemos deixar de aprovar a ternura e simpatia que encontramos em nossa natureza. Deleitamo-nos com nós mesmos em virtude de nossa própria constituição, a consciência de nosso mérito é fonte de satisfação contínua.
Ampliando um pouco a nossa discussão, observaremos que por natureza temos uma grande curiosidade pela história da vida de alguns homens. Julgamos suas ações, aprovamos ou desaprovamos, condenamos ou absolvemos, e a mente, assim ocupada, obtém um maravilhoso deleite. Há mais. Envolvemo-nos profundamente com as preocupações alheias, tomamos partido, compartilhamos alegrias e angústias, preferimos estes, não gostamos daqueles. Esse pendor da mente explica porque histórias, romances e peças são um entretenimento universal que agrada a todos. Trata-se de algo natural ao homem, como criatura sociável, e mais sociáveis são aqueles que mostram essa espécie de curiosidade e preferem entretenimentos como esses.
A tragédia é uma imitação, uma representação de caracteres e ações humanas. É uma história fictícia, que em geral produz impressões mais fortes que as de histórias reais: uma obra de gênio que privilegia incidentes que produzam a impressão mais profunda, conduzindo-os de modo a manter a mente em contínuo suspense e agitação, mais intensos que na vida real. Uma boa tragédia excita cada uma das paixões sociais. Somos tomados de súbita afeição pelos personagens que representa: cativam-nos como amigos queridos, e sentimos esperança e medo como se tivéssemos diante de nós uma história verdadeira.
Ao filósofo ignorante, que desconhece o teatro, pode parecer surpreendente que a imitação tenha um efeito tão grande na mente que a falta de verdade e realidade não seja um empecilho à operação de nossas paixões. Mas, deixando de lado uma explicação material, é evidente que essa aptidão da mente humana a receber impressões de objetos fictícios ou reais contribui para os mais nobres propósitos da vida. Não há nada melhor para aprimorar a mente e torná-la virtuosa do que examinar as ações dos outros, compreender o que impele o virtuoso a aprovar sua conduta e condenar e repelir o vício. Pois a mente, a exemplo do corpo, só se torna forte com o exercício. Se essa espécie de disciplina se confinasse a cenas da vida real, teria pouco proveito para a maioria dos homens, dado que tais cenas são relativamente raras. Mesmo na história, não são muito frequentes. Em composições da arte, por outro lado, quando a ficção tem lugar, somente a falta de gênio pode impedir o exercício da mente pelo qual ela adquire sensibilidade e consolida hábitos virtuosos.
Assim, a tragédia cativa nossas paixões tanto quanto uma história real. Amizade e respeito pela virtude, repulsa ao vício, compaixão, esperança e medo, a série inteira das paixões sociais é despertada e exercitada.
Parece que temos aqui uma boa explicação de nosso gosto pelo teatro; mas, examinando bem a questão, encontraremos dificuldades às quais os princípios acima delineados dificilmente poderiam oferecer uma resposta satisfatória. Não admira que os jovens acudam ao entretenimento teatral. O apreço pela novidade, o desejo de se manter ocupado e a beleza da ação constituem atrativos poderosos, e se uma pessoa, qualquer que seja sua idade, toma a peito os interesses das personagens, a atração se torna tão intensa que o prospecto de aflição e pesar não é suficiente para impedir que ela se envolva. Em geral, a experiência nos torna mais sábios; e pode parecer surpreendente, dado que a angústia é o desfecho infalível de encenações como essas, que pessoas dotadas de juízo mais maduro não prefiram simplesmente evitá-las. Estaria adormecido o amor-próprio, esse princípio tão ativo. Mais natural seria pensar que a experiência nos ensina a nos mantermos afastados do perigo, e que poucas pessoas dotadas de reflexão frequentariam as tragédias mais dramáticas. O contrário, no entanto, é verdade: as tragédias mais dramáticas são as prediletas de pessoas de todas as idades, e em especial das mais impressionáveis, cujos sentimentos são mais delicados. Um homem desse caráter mal se livrou da profunda angústia em que foi lançado na noite anterior por uma bela tragédia, quando decide calmamente, em seus aposentos, sem o menor vestígio de amor-próprio, retornar ao teatro para assistir a outra encenação como essa.
Isso nos leva a uma conjectura das mais curiosas, acerca da natureza humana. Estas especulações oferecem uma prova cabal de que, contrariamente ao que se pensa, o amor-próprio nem sempre intervém para evitar dor e angústia. Ao examinar como isso acontece, descobrimos um admirável artifício da natureza humana para dar plena vazão às afecções sociais. Tendo em vista, como dissemos, que algumas paixões dolorosas são acompanhadas de aversão, e outras de afeição, descobriremos, num exame mais rigoroso, que as paixões dolorosas que na sensação imediata estão isentas de toda aversão, dela também estão livres na reflexão em ato. Ou, para expressar-me de modo mais prosaico, quando refletimos sobre a dor que sofremos em nossa consideração pelos outros, se uma aversão se mistura à reflexão, é devido à dor que sentimos ao considerar o objeto. Que nos seja permitido, para ilustrar esse ponto, comparar a dor que resulta da compaixão com uma dor física qualquer. O corte da pele humana é acompanhado da mesma intensa aversão na sensação imediata ou na reflexão posterior. Mas não sentimos o mesmo quando refletimos sobre as dores intelectuais acima mencionadas. Pelo contrário, quando refletimos sobre o infortúnio de um amigo, por exemplo, a reflexão é acompanhada de intensa satisfação. Aprovamos a nós mesmos quando sofremos com um amigo, sentimos apreço por nossa pessoa por conta desse sofrimento, e suportamos de bom grado a angústia de uma ocorrência como essa, tudo isso sem a menor oposição do amor-próprio.
O escrutínio das paixões dolorosas e livres de aversão nos mostra que elas são todas do gênero social e resultam do nobre princípio de simpatia, que é o cimento da sociedade humana. As paixões que nos causam dor são acompanhadas pelo mesmo apetite de indulgência concomitante às que nos causam prazer. Submetemo-nos resignados a essas paixões dolorosas, e não nos parece que sofrê-las seja uma penúria. Dada a nossa constituição temos a consciência de que há regularidade e ordem nas coisas, de que nosso sofrimento é correto e conveniente. Afecções morais em geral, as dolorosas inclusive, estão inteiramente isentas de aversão, mesmo quando refletimos sobre as angústias mais comuns que nos oprimem. A simpatia, em especial, nos vincula tão fortemente ao objeto de angústia, que chega a sobrepujar o efeito do amor-próprio que dele nos afasta. A simpatia, consequentemente, embora seja uma paixão dolorosa, é atraente: no consolo ao próximo, a gratificação da paixão é um prazer considerável. Essa observação ressalta o brilho próprio das afecções morais, em contraste com as malignas ou egoístas.
Muitas e variadas são as molas de ação da natureza humana, nenhuma é tão admirável quanto a que ora examinamos. A simpatia é o princípio que conecta as pessoas em sociedade por laços mais fortes que os de sangue. E, por mais que a compaixão, que é sua cria, seja uma emoção dolorosa, se fosse acompanhada de aversão, mesmo na reflexão sobre angústia que ocasiona, esse sentimento enfraqueceria gradualmente a paixão e nos curaria de uma grave doença. Mas o criador de nossa natureza não deixou inacabada a sua obra. Deu-nos esse nobre princípio por inteiro e sem contraparte, para que sua operação fosse vigorosa e universal. Longe de termos aversão à dor ocasionada pelo princípio social, refletimos sobre ela com satisfação, e a ela nos submetemos contentes e de bom grado, como se fora um prazer. Por isso, permitimos que a tragédia se apodere da mente, com os muitos encantos que despertam do exercício das paixões sociais, sem qualquer objeção do amor-próprio.
Estivesse nosso autor ciente do princípio de simpatia, ele poderia explicar porque compartilhamos a angústia alheia, sem precisar recorrer a uma razão tão imperfeita como a repulsa à inação. Tampouco seria preciso entrar em questões filosóficas, pois não faltam indícios de que de fato é assim na vida comum. Em toda parte encontramos pessoas de temperamento simpático que optam por dedicar suas vidas ao cuidado dos carentes e doentes, que compartilham de suas aflições e sentem profundamente suas preocupações, tristezas e pesares. Vivem tristes e abatidas, sem outra satisfação que a do dever cumprido.
Se é justa essa explicação, podemos estar certos de que pessoas dotadas de um temperamento caridoso são as que mais apreciam a tragédia, que oferece pleno escopo ao fomento de sua paixão. Os efeitos que a tragédia produz são mesmo admiráveis. As paixões, assim como ganham força ao serem fomentadas, tornam-se fracas na falta de exercício. Pessoas prósperas, que desconhecem a aflição e a miséria, tendem a se tornar insensíveis. A tragédia é um antídoto admirável a essa fraqueza. Ela humaniza o temperamento, pois oferece objetos fictícios dignos de piedade cujo efeito é praticamente o mesmo que o de objetos reais, ou seja, o exercício das paixões. Levados por um impulso natural, mergulhamos nas aflições despertadas pela representação de infortúnios fictícios, e mesmo que nada mais atraia a mente ou lhe acene com satisfação, a piedade é uma paixão capaz de reunir multidões nessas representações.
A curiosidade explica porque as execuções públicas são tão populares. Pessoas dotadas de uma sensibilidade mais refinada se empenham em corrigir um eventual apetite cujo fomento produz dor mas não é acompanhado, na reflexão, do sentimento de mérito próprio. Se execuções públicas entretêm sobretudo o vulgo, é porque este se deixa guiar cegamente pela curiosidade, sem considerar se tais espetáculos contribuem ou não para o seu bem.
O pugilismo, a exemplo da luta de gladiadores, anima-nos e nos inspira com exemplos de coragem e bravura. Entramos no espírito do lutador, e tornamo-nos tão audaciosos e intrépidos quanto ele se mostra diante de nós. Por outro lado, compartilhamos da angústia dos derrotados, pelos quais sentimos uma simpatia proporcional à valentia de sua conduta. Não admira que espetáculos como esses sejam frequentados por pessoas de gosto distinto. Nossa motivação tem aqui o mesmo princípio que produz em nós o desejo de conhecer os feitos de conquistadores e heróis. Observe-se ainda que esses espetáculos têm o notável efeito de ensinar a juventude a ser intrépida e destemida. Portanto, não me parece que os estrangeiros tenham razão em condenar o gosto inglês nesse particular. Espetáculos dessa espécie merecem o estímulo do Estado e devem ser objetos de políticas públicas.
Quanto ao jogo, não concebo qual prazer haveria em manter a mente suspendida, como se fora num cadafalso, tal como fazem os que apostam dinheiro em jogos de azar. Inação e ociosidade são dores mais suportáveis do que essa. Estou convencido de que, no fundo, move o jogador a ganância pelo dinheiro. E não me venham dizer que alguém prefere apostar seu dinheiro em jogos de azar por desprezo aos jogos de habilidade e destreza, pois essa escolha só pode decorrer de algo como impaciência, presunção ou indolência. Uma especulação curiosa quanto ao jogo, é que há nele um prazer que se segue ao bom desempenho e uma dor que se segue ao mau, independentemente do resultado da partida ou da soma de dinheiro envolvida. É evidente que a boa sorte eleva o espírito e a má sorte o deprime, não importa o resultado final. Isso é próprio de nosso interesse pelo jogo como diversão. Deixo a outros que investiguem a qual princípio de nossa natureza pertence esse interesse.
Aproveito esta 3ª edição de meus Ensaios para resolver uma questão que permaneceu em aberto nas edições anteriores. A terra mal produz para o uso do homem o que não requeira o trato da indústria ou da arte; e o homem, que é naturalmente artificioso e industrioso, está pronto a responder o chamado. Se encontrasse tudo ao alcance das mãos, sem que tivesse de pensar ou trabalhar, seria inferior à mais vil das criaturas animais. E, se digo inferior, é porque a mais vil criatura, perfeita em seu gênero, está acima de uma outra corrompida, de não importa qual gênero. O amor-próprio nos incita a trabalharmos em benefício próprio; a benevolência em benefício dos outros. A emulação reforça esses princípios. Encontra-se mesmo entre crianças, que querem vencer, ainda que não saibam o que as incita tanto. Na luta por riqueza, glória e poder, a emulação é uma figura esplêndida, que opera vigorosamente em obras que requerem destreza e não adormece em disputas que dependem do acaso, como jogos de cartas ou de dados. A verdade é que o prazer da vitória sem a perspectiva do lucro é mais fraco. E lamento dizer, mas os riscos extremos aos quais os homens se submetem nos jogos de azar são instigados, senão em todas, no mais das vezes, pela avareza.


i“Our Attachment to Objects of Distress”. In: Essays on the principles of morality and natural religion, ensaio I. 3ª edição. Londres: 1779. Tradução: Daniel Lago Monteiro. (NE)
iiO abade Dubos. [Jean-Baptiste Dubos, Réflexions critiques sur la poésie et la peinture, introdução, cap. 1; livro I. 01 ss. Paris: 1719. Cf. Hume, “Da tragédia”. In: Quatro ensaios. Londres: 1757.] (NA)
iiiTito Lívio, História de Roma, Livro XLI. (NA)
ivLocke, Ensaio sobre o entendimento humano, livro II,cap. XXI, §§ 37-43. 4ª edição. Londres: 1704. (NT)


Bibliografia: Lorde Kames (Henry Home) Nosso apego a objetos de angústia. PIMENTA, Pedro Paulo (org.) O Iluminismo Escocês. São Paulo: Alameda, 2011




Imagens: John Collet , The Female Bruisers, 1770 The British Museum; The Enraged Musician, 1741 - William Hogarth; Engraved print of The Beggar's Opera by William Blake after Hogarth, London, England, c.1729

Nenhum comentário: