Testemunhos escritos por mulheres na Antiguidade Clássica são extremamente raros. Não que inexistissem mulheres instruídas e cultas. Filósofos como Porfírio e Santo Agostinho mantinham correspondência com mulheres da elite. A filósofa Hipácia lecionava e escrevia tratados. Há a poesia de Safo e outras, em obra bastante fragmentária.
No campo literário, temos a presença de Sulpícia, poeta romana que viveu no século I a. C.
Notadamente rico, no âmbito político e cultural, foi o período compreendido entre o início do século I a. C. e a primeira metade do século I d. C. Crise da República, Principado e início do Império sob a égide de Augusto. Época de poetas como Catulo, Ovídio, Horácio, Virgílio, entre outros. Além da filosofia, jurisprudência e oratória de Cícero, os escritos de arquitetura de Vitrúvio, a história de Júlio César, Salústio e Tito Lívio,a filosofia de Lucrécio...
Naquele tempo a produção poética se desenvolvia em torno de círculos literários, patrocinados por figuras de grande prestígio e próximas do imperador. Destacavam-se Mecenas, protetor de Horácio, Virgílio ou Propércio. Outra figura de prestígio foi Marco Valério Messala Corvino, protetor de Tibulo, Lígdamo e Sulpícia. As produções poéticas destes últimos foram reunidas numa espécie de “cancioneiro”, conhecido como Corpus Tibullianum , por ser Tibulo o poeta de maior renome elencado na obra.
Naquele tempo a produção poética se desenvolvia em torno de círculos literários, patrocinados por figuras de grande prestígio e próximas do imperador. Destacavam-se Mecenas, protetor de Horácio, Virgílio ou Propércio. Outra figura de prestígio foi Marco Valério Messala Corvino, protetor de Tibulo, Lígdamo e Sulpícia. As produções poéticas destes últimos foram reunidas numa espécie de “cancioneiro”, conhecido como Corpus Tibullianum , por ser Tibulo o poeta de maior renome elencado na obra.
Sulpícia é originária deste meio. Entretanto, a respeito de sua vida existem enormes lacunas. Sabemo que era filha de Seruius Sulpicius Rufus e Valéria, irmã de Messala, tendo este, após a morte do cunhado, desempenhado um papel preponderante na educação e formação de Sulpícia.
Este contexto social e cultural, diferente do destino tradicional da mulher romana, pode ter sido fundamental para sua trajetória literária.
Na sociedade romana, as relações entre homem e mulher estavam estruturadas de maneira a proteger e cultivar a autoridade e as prerogativas e privilégios masculinos. Importante lembrar que no direito romano estava atribuído à mulher um sentido de incapacidade estatutária. A mulher era dotada de uma fraqueza de espírito (lmbelicillitas mentis). Além da infirmitas sexus, ou seja, uma leviandade mental ou enfermidade relativa ao seu sexo em relação aos varões (algo como um “homem incompleto”). Em outras palavras, a mulher que é portadora da cidadania romana possui um status jurídico inferior ao do homem (distante da vida publica e das decisões políticas, embora participasse da economia e vida social). Em grande parte era um destino submisso à fecundidade e maternidade. Gerar cidadãos e educá-los, nos primeiros anos, na transmissão dos valores cívicos.
Todavia, este contexto não fornece um panorama abrangente das vidas individuais. Há gradações neste quadro, ainda que a escassez documental não permita muita coisa. Nesse caso, a poesia de Sulpícia é uma voz dissonante neste ambiente masculino.
O amor, para os poetas elegíacos, é um sentimento a ser vivido intensamente. Contraditório, ele provoca dor, mágoa e tristeza, tanto quanto alegria e felicidade. O eu poético de Sulpícia pretente tornar público seu amor por Cerinto.
Sulpícia subverteu a tradição do poema elegíaco romano. Enquanto os poetas falam sobre seus sentimentos, reduzindo o papel da amada (puella) a uma imagem em quem o sujeito poético fantasia suas ideias e desejos; Sulpícia torna o amante (o poeta) uma voz feminina ativa e o ser amado passivo um homem.
A identidade de Cerinto é controversa, alguns estudiosos acreditavam que fosse alguém de status inferior (até mesmo um escravo). Para outros, talvez alguém do mesmo nível de Sulpícia, ou ainda um liberto (que poderia ser alguém de posses). Etimologicamente, Cerinthus é muito sugestivo, vocábulo relacionado às abelhas, ao mel e à cera. Em especial esta última tem importância simbólica importantíssima; pois os versos eram escritos em tabuinhas de cera, o veículo de comunicação entre o poeta e a amada.
III 13=IV 7
Finalmente o amor chegou e seja eu mais conhecida
por tê-lo encoberto por pudor do que por tê-lo revelado a alguém.
Comovida por meus versos Citeréia o trouxe
e o depositou em meu regaço.
Vênus cumpriu suas promessas. Se alguém, ao que se sabe,
não encontrou alegrias, que fale das minhas.
Não gostaria de confiar alguma coisa a tabuinhas seladas
para que ninguém a lesse antes de meu amado;
Alegro-me de meu erro; aborrece-me fingir por minha reputação.
Que se diga que eu fui digna com um homem digno.
III 14 = IV 8
Chega o indesejado aniversário, que deve ser passado tristemente
no campo maçante e sem Cerinto.
O que é mais agradável que a cidade? São as casas de campo convenientes
às moças? E o gélido rio da região de Arécio?
Podes descansar, Messala, excessivamente cuidadoso a meu respeito:
essas viagens, meu tio, muitas vezes não me são oportunas.
Levada para longe, deixo aqui meu coração e meus sentimentos.
Por minha vontade, embora não permitas que eu a tenha.
III 17 = IV 11
Tens, acaso, Cerinto, compaixão de tua amada?
Já que a febre castiga meus membros fatigados?
Eu não desejaria viver a doença tristemente
se não acreditasse que tu também o queres.
De que me adianta vencer a doença se podes suportar
com indiferença o mal que me atormenta?
III 18 = IV 12
Que eu não seja para ti, minha luz, a ardente paixão
que parecia ter sido há poucos dias
se, jovem tola, cometi alguma falta,
da qual eu reconheço, que me arrependo mais
do que te haver deixado só, ontem à noite,
por desejar dissimular meu próprio ardor.
Tradução de Zélia de Almeida Cardoso.
Fonte: Poesia Lírica latina. organização de Maria da Glória Novak e Maria Luíza Neri. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992
Há uma tradução em espanhol do Corpus Tibullianum, intitulado Las elegías del Tíbul,o de Ligdamo y de Sulpicia feita por Joaquin D. Casasus, publicada no México em 1905. Está disponível na Open Library .
Bibliografia:
DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d
FILIPE, Raquel Teixeira "As elegias de Sulpícia: uma voz feminina num mundo de homens." In Ágora. Estudos Clássicos em Debate 4 (2002) 57-78
VEYNE, Paul (org.) História da vida privada, 1 : do império romano ao ano mil. Tradução: Hildegard Feist São Paulo: Companhia das Letras, 1991
6 comentários:
Adorei a oportunidade de ler os versos em português.
Obrigada!
Olá! Gostaria de saber de quem é a tradução dos poemas! Obrigada
Olá Lívia, estes versos de Sulpícia foram traduzidos pela professora Zélia de Almeida Cardoso da FFLCH-USP e fazem parte da antologia Poesia Lírica latina, com organização de Maria da Glória Novak e Maria Luíza Neri, editada pela Martins Fontes.
Adorei esse artigo sobre a Sulpícia. Gostaria de saber mais sobre esse texto. Autoria, se foi publicado e quando, se esse texto aqui do blog é fragmento ou tradução de outro artigo. Estou pesquisando sobre a Sulpícia e aqui senti uma fluidez boa a respeito dela, tão misteriosa e afastada de uma identificação precisa. Meu e-mail é Kamilafcaldas@gmail.com
Desde já agradeço qualquer que seja a resposta.
Olá Kamila Caldaz. Esse escrito é de autoria minha. Utilizei meus conhecimentos de história antiga e material da bibliografia que citei no final, além da tradução de Zélia de Almeida Cardoso. Espero ter ajudado. Dê notícias sobre sua pesquisa. Abraço.
Postar um comentário