domingo, 8 de agosto de 2010

V S Naipaul - Entre os fiéis e Além da fé.


Vidiadhar Surajprasad Naipaul, ou simplesmente V S Naipaul, é um escritor de nacionalidade britânica, nascido em Trinidad Tobago, filho de pais indianos. Em 2001 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.É uma espécie de agente duplo, intermediário entre o Ocidente e o Oriente. Aprecia muito as longas viagens. Peregrinou, assim, por boa parte da África e da Ásia. Parte de sua obra reinterpreta aspctos do choque cultural entre asiáticos, europeus e africanos, no cenário do neocolonialismo e imperialismo dos seculos XIX e XX , durante e depois do igualmente conflituoso processo de descolonização do século XX. Há também elementos autobiográficos.  É considerado um homem frio, fechado, que, ao mesmo tempo pode ser amigável, sincero e, subitamente, mostrar-se descortês, ácido e cruel. Portanto humano, demasiadamente humano. Naipaul acredita que é preciso sempre decidir pela verdade, ainda que ela doa, provoque feridas. Certamente é um sofrimento estruturante, que nos torna mais fortes e sábios. Sempre li e ouvi  muita coisa, digamos, negativa sobre este autor, acusações de racismo e intolerância, talvez por soltar seus demônios internos, expressar com sinceridade brutal suas opiniões sobre determinada pessoa, povo, país ou assunto. Comecei a lê-lo recentemente. Primeiro, seus dois livros de viagem, Entre os fieis e Além da fé, relatos de viagens feitas entre 1979 e 1980 ao Irã, Paquistão, Indonésia e Malásia. As transformações sociais, políticas e culturais provocadas pelo islamismo são o fio condutor do relato. Em 1995, Naipaul voltou aos mesmos lugares para observar as transformações. Depois passei os olhos em alguns capítulos de Índia: um milhão de motins agora, que são ensaios, relatos de viagem e entrevistas com indianos de várias profissões e posturas ideológicas. O livro sobre a Índia pelo pouco que pude perceber segue a estrutura dos dois primeiros que mencionei acima. Não encontrei mostras de racismo, há um profundo respeito e conhecimento pela história dos países visitados e pelas pessoas que ele entrevista (ou melhor dialoga, escuta). Como escrevi anteriormente, o autor possui uma sinceridade cruel, diz o que pensa, embora sempre de forma meditada, calculando e escolhendo bem as palavras.
Minha motivação para transcrever algumas passagens desses dois livros estão em parte, na repercussão dos casos de Aisha, jovem afegã mutilada no nariz e ouvidos pelo marido após decidir fugir da casa dos sogros por causa dos maus-tratos, e que virou capa da Time da semana retrasada, e, por fim, o da iraniana Sakineh, condenada inicialmente à lapidação, devido à acusação de adultério (a Sharia tem um conceito bastante amplo para o que definimos por adultério) e assassinato (se é real ou plantada, fica difícil de saber, já que dependemos de informações oficiais de Teerã). A hesitante e confusa (oportunista?) atuação do governo Lula e sua diplomacia torna as coisas ainda mais dramáticas.

A outra parte é o fato de que tendo a concordar em grande parte com a posição de Naipaul. Todavia, não considero o islã uma figuração da barbárie. Não existe tal monopólio, somos todos etnocêntricos, e misto de anjo e demônio, e só ter ciência disto e buscar outros caminhos de convivência. A questão não é nos envergonharmos de sermos ocidentais e carregarmos todas os vícios ou romantizar o outro asiático/islâmico, enfeitando ele só de virtudes.
Não conheço pessoalmente nenhum muçulmano ou muçulmana. O que sei é indireto, e portanto, limitado, através de escritos de autores islâmicos, produção das ciências sociais, literatura, internet, jornalismo, etc. embora procure as fontes mais confiáveis e diversificadas. É um movimento sócio-cultural sutil e complexo como o cristianismo, a cultura secular ocidental, ou outras tradições. Digamos que é ambivalente, pode mostrar saber e tolerância, assim como o seu oposto.

Transcrevo parágrafos incisivos, densos, ásperos, não obstante, sempre pertinentes. Particularmente feliz a análise que mostra que o islã é tão ou mais homogeneizador de culturas quanto o Ocidente e o desvelamento da mecânica do fundamentalismo islâmico. Algo asfixiante, como os totalitarismos de esquerda e direita. Creio que ficará difícil para os muçulmanos esclarecidos defenderem sua cultura se o aprofundamento do fundamentalismo prosseguir desta forma.
Estes espaços e povos cutucam meu imaginário a um bom tempo. Quando minha situação material se estabilizar e meu inglês e francês chegarem a um nível decente planejo seguir esta rota, incluindo com certeza a Turquia, e que sabe, se a geopolítica favorecer, talvez o Afeganistão...

Bibliografia: Entre os fiéis:Irã, Paquistão, Malásia. tradução: Cid Knipel Moreira


Além da fé: Indonésia, Irã, Paquistão, Malásia. tradução: Rubens Figueiredo

São Paulo: Companhia das Letras, 1999
(publicados originalmente em inglês nos anos de 1981 e 1998, respectivamente)



"No islã, e principalmente no islã dos fundamentalistas, o precedente é tudo. Os princípios do Profeta - conforme conjeturados a partir do Corão e das tradições autorizadas- são eternamente válidos. Podem ser estendidos de modo a cobrir todas as disciplinas."  pp.217-218

"No esquema fundamentalista, o mundo se deteriora constantemente e constantemente precisa ser recriado. A única função do intelecto é ajudar esta recriação. Ele reinterpreta os textos; restabelece o precedente divino. Por isso, a história deve servir à teologia, a lei é separada da ideia de justiça e a aprendizagem é separada da aprendizagem. A doutrina tem os seus atrativos. Para um estudante da universidade de Karachi, talvez com antecedentes provincianos ou camponeses, a velha fé brota com mais facilidade do que qualquer disciplina acadêmica moderna. Dessa forma, o fundamentalismo se enraiza nas universidades, e negar a educação pode se converter no ato erudito sancionado. Nos tempos da glória muçulmana, o islã se abriu à aprendizagem do mundo. Agora, o fundamentalismo fornece um termostato intelectual regulando baixo. Ele nivela, conforta, protege e conserva. Dessa forma, a fé penetra tudo, e é possível entender o que os fundamentalistas querem dizer que afirmam que o islã é um estilo de vida completo. Mas o que se diz sobre o islã se aplica, talvez até com maior pertinência, a outras religiões - como o hinduísmo ou o budismo, ou outras fés menos tribais- que em uma fase primitiva de suas histórias também eram culturas completas, auto-suficientes e mais ou menos isoladas, com instituições, costumes e crenças que constituíam uma totalidade." p.218

"O desejo fundamentalista islâmico é trabalhar recuando para uma totalidade dessa ordem, para eles uma totalidade doada por Deus, mas apenas com a ferramenta da fé - convicção, práticas religiosas e rituais. É como um desejo - com a supressão ou limitação do intelecto, o senso histórico falsificado - de trabalhar recuando do abstrato para o concreto, e erigir novamente os muros tribais. É buscar a recriação de algo como um estado tribal ou uma cidade-estado que - exceto na fantasia teológica - nunca existiu. O Corão não é o livro de estatutos de uma idade de ouro consolidada; é o registro místico ou oracular de um levante prolongado, espraiando-se do Profeta para a sua tribo e para a Arábia. A Arábia era plena de movimento: o islã, com todos os seus elementos judaico-cristãos, sempre foi mesclado, eclético, em desenvolvimento. Assim que o Profeta tornou segura sua comunidade, procurou subjugar os seus inimigos. Foi durante uma marcha militar no quinto ano da era muçulmana que Aisha passou aquela noite sozinha no deserto." pp.218-219

"O Ocidente, ou a civilização ocidental que ele lidera, é rejeitado emocionalmente. Ele destrói aos poucos; ele ameaça. Mas ao mesmo tempo, ele é necessário, por suas máquinas, mercadorias, medicamentos, aviões de guerra, as remessas de emigrantes, os hospitais que poderiam ter uma cura para a deficiência de cálcio, as universidades que fornecerão os títulos de mestrado em meios de comunicação de massa. Toda a rejeição do Ocidente está na suposição de que sempre existirá lá fora uma civilização viva, criativa, estranhamente neutra, acessível a todos.A rejeição, portanto, não é nenhuma rejeição absoluta. Também é, para a comunidade como um todo, um modo de deixar de se esforçar intelectualmente. É ser parasitário; o parasitismo é um dos frutos não reconhecidos do fundamentalismo." p.219   (Entre os fiéis)

"A derrocada das religiões antigas - religiões ligadas à terra, aos animais e as divindades de determinado lugar ou tribo - sob a força das religiões reveladas é um dos temas contumazes da história. Mesmo quando existem textos, como ocorre no caso do antigo mundo romano-cristão, a transformação é difícil de acompanhar. Existem apenas indícios. Pode-se observar que as religiões da terra são limitadas, oferecem tudo aos deuses e bem pouco aos homens. Se estas religiões conseguem se mostrar atraentes agora é sobretudo por razões estéticas modernas; e mesmo assim é impossível conseguir imaginar uma vida completamente sem elas. As ideias das religiões reveladas - budismo (se é que pode ser incluído na lista, cristianismo, islamismo - são mais amplas, mais humanas, mais ligadas àquilo que os homens encaram como seu sofrimento, e mais ligada a uma visão moral do mundo. Pode ser também que as grandes conversões, de nações ou culturas, como na Indonésia, ocorram quando as pessoas não tem nenhuma ideia sobre si mesmas e não tem meios de compreender ou recuperar seu passado." p.96   (Além da fé...)

"A crueldade do fundamentalismo islâmico consiste em permitir a apenas um povo - os árabes, o povo original do Profeta - ter um passado, lugares sagrados, locais de peregrinação e cultos à terra. Esses lugares sagrados árabes têm de ser necessariamente os lugares sagrados de todos os povos convertidos. Os povos convertidos precisam se despojar de seu passado; nada se exige dos povos convertidos, senão a fé mais pura (se é que algo assim possa ser alcançado), o islã, a submissão. É o imperialismo mais intransigente que existe."    p.96