sábado, 30 de abril de 2011

Resenha do livro A Perfectibilidade do Homem, de John Passmore





Publicado em 1970, A Perfectibilidade do Homem, do filósofo australiano John Passmore (The Perfectibility of Man , tradução de Jesualdo Correia, Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, coleção Liberty Classics) constitui mais um espécime de obras fundamentais do pensamento contemporâneo que é tardiamente editada no Brasil.
Passmore (1914-2004) formou-se na tradição empirista da filosofia analítica anglo-saxã e é autor de vasta obra dedicada ao debate público de problemas políticos e filosóficos, questão ambiental, pensamento de David Hume, história da filosofia contemporânea e à educação em geral. Neste último ítem vale mencionar The philosophy of teaching London: Duckworth and Co , 1980, ainda inédito em português, embora sempre citado por professores dedicados como livro essencial para discussão de teorias e práticas educacionais. É possível encontrar aqui e ali algum capítulo desta obra traduzida para fins didáticos.
A presente obra aqui resenhada trata do tema da perfeição humana e seus desdobramentos conceituais e práticos. Percorre 3 mil anos de história intelectual da humanidade, englobando teologia, filosofia, religiões ocidentais e orientais, ideais políticos e sociais, ciências biológicas, literatura e teatro.
Escrita com elegância e preocupação com o rigor conceitual (nenhum termo ou conceito fica sem um esclarecimento, ainda que breve) Passmore traça a genealogia e principais linhas de força do ideal perfectibilista, seja religioso ou profano.

A palavra perfeição possui uma variedade de acepções. O autor observa três fundamentais:

Primeiro, temos a perfeição técnica, fundamentada no talento e destreza (inatos ou aprendidos, ou uma amálgama de ambos), que consiste em ser competente num determinado ofício, cargo, trabalho, projeto. Esse é o conceito genérico de perfeição, presente no senso comum, contudo isento de qualquer conotação moral ou metafísica (afinal um indivíduo pode ser um exímio golpista, perfeito demagogo, falsificador e por aí vai...).
O segundo tipo é a perfeição obedecente (ou vocacional), sintetizada por teólogos cristãos como Lutero. Trata-se da obediência a Deus e seu projeto para o homem. Dessa forma o cristão deve usar sua vocação para servir aos seus semelhantes. Esta concepção engloba a perfeição técnica, mas ela é apenas o meio para se atingir a finalidade.
Por fim, a terceira espécie de perfeição é a perfeição teleológica. Seu patrono é Aristóteles, a partir do conceito de eudemonia (“felicidade” ou “bem-estar”). Consta do princípio de que alguma coisa deve alcançar sua “finalidade natural”. Para o Estagirita o ser humano é perfectível, se e apenas se for capaz de atingir o bem estar. Posteriormente, São Tomás de Aquino aprimorou o conceito de perfeição teleológica, com a “perfeição” de cada coisa, onde tudo move-se por natureza própria em direção a uma condição particular, onde poderá repousar. Acrescentou também o peso decisivo da graça de Deus, pois os homens não alçam à perfeição por seus talentos e habilidades. Desse modo o conceito de perfeição natural pressupõe que toda e qualquer coisa, incluindo os seres humanos, possuem uma finalidade natural, na qual pode-se alcançar a satisfação perfeita. Cada elemento detém potenciais não realizados. A perfectibilidade consistiria na concretização destas potencialidades.

Os conceitos de perfeição obedecente e teleológica estão fortemente entrelaçados e imiscuídos na mentalidade religiosa ou secular, filosófica, estética, social... como algo “natural”, indubitável. Todavia, Passmore endereça críticas sólidas a estas visões. Sobre as contradições da noção de “finalidade natural”, ele observa  que são as relações entre os seres humanos em sociedade, construídas historicamente, que definem quem desempenhará tal ou qual atividade ou papel circunscrito. Pois “a tese de Aristóteles só é plausível numa sociedade relativamente simples, na qual homens e mulheres possuem responsabilidades determinadas e estáveis. Numa tal sociedade, novos tipos de atividades, ou não surgem ou surgem muito raramente. Em sociedades que se modificam rapidamente, a teoria da 'finalidade natural' é frequentemente invocada pelos conservadores como uma arma polêmica.” Afinal: “(...) não é a Natureza que decide se a mulher trabalhará na indústria, na agricultura ou em casa, (…) As chamadas 'finalidades naturais' deveriam, em verdade, ser mais apropriadamente descritas como finalidades 'convencionais'.” 2

Feitas estas conceituações e críticas, John Passmore dedica-se a tecer genealogias do ideal perfectibilista no pensamento grego, no cristianismo primitivo, na patrística e na escolástica, na teologia reformada, nos cristãos heréticos, comparando com dados do budismo e hinduísmo.
Até o século XVI existem duas concepções clássicas e conflitantes de perfeição. A de Pelágio, segundo a qual o homem poderia se aperfeiçoar por meio do livre-arbítrio. E a de Santo Agostinho, onde os seres humanos só alcançariam a perfeição através da infusão da graça de Deus.
No contexto do Renascimento e da Revolução Científica do século XVII é gestado um terceiro caminho, de natureza secular: os seres humanos poderiam se tornar perfeitos por meio da intervenção deliberada dos seus semelhantes.
Humanistas como Pomponazzi e empiristas como John Locke passaram a defender que a perfeição de caráter (não a divina) poderia ser atingida pela via da educação.
Vale ressaltar que o perfectibilismo religioso não desapareceu, mas foi ficando em segundo plano na Modernidade.

Esta terceira categoria clássica de perfeição é hegemônica na Modernidade e possui vários desdobramentos. Não está isenta de influências metafísicas e mística. Conquanto seja predominantemente secular.
Desse modo, nos séculos XVIII e XIX formam-se três grupos de pensadores perfectibilistas, ambos creditavam a perfeição humana através da ação social e do desenvolvimento do progresso científico:
os Governamentalistas, que acreditam que o Governo, ou melhor, a Legislação seja o principal agente da perfeição. Neste grupo estão os iluministas, como Condilar, Helvétius, e os utilitaristas como Jeremy Bentham e John Stuat Mill.
Os Anarquistas, como Proudhon, que defendem a destruição do Estado e na criação de uma outra forma de sociedade através do da crença no progresso destruidor.
Os geneticistas, como Galton e Specer, recomendando a eugenia (tanto as variantes positiva e negativa) como forma de aprimorar fisicamente os seres humanos.
Num equivalente à Cidade de Deus de Santo Agostinho, os iluministas criaram (ou acreditaram ter inventado) um Repúblicas das Letras, devotada à verdade e ao aprimoramento da humanidade através da educação financiada e controlada pelo Estado e com os professores sendo selecionados pelos filósofos iluministas. Com a crise do Antigo Regime os iluministas apostaram na nova classe que estava se empoderando, a burguesia mercantil e industrial, que constituiria o novo grupo dirigente da sociedade seria um catalizador de mudanças (do mesmo modo que os socialistas utópicos, que achavam possível convergência de interesses entre operários e empresários esclarecidos). Ingenuamente os reformadores ilustrados acreditavam numa aliança natural entre os novos governantes e o espírito do iluminismo. Ainda que pairasse um temor de certos “interesses sinistros”.

Entretanto, existiam vozes dissonantes. Rousseau e Holbach temiam que interesses escusos pervertessem este projeto, que teria efeitos opostos na sociedade. E desconfiavam da classe mercantil e industrial, preferindo a agricultura e a vida no campo como base da sociabilidade.

“Seja como for, o grande problema permanece: quem fará o controle? Como Rousseau já havia assinalado e tal como todos nós podemos cada vez mais reconhecer, os homens podem ser degradados pelos mesmos meios que poderiam ser usados para elevá-los. Pressuponhamos que condicionamentos, educação e controles genéticos sejam tão efetivos quanto os seus proponentes afirmam. Nesse caso os homens podem ser condicionados a serem indiferentes ao sofrimento, eles podem ser criados de modo a se conformarem, como os hilotas, aos comandos de seus mestres.
Se tivermos que ver na ideia do aperfeiçoamento pela ação social base para esperança no futuro, e não desespero precisaremos então dispor de uma boa razão para acreditar que os mecanismos de aperfeiçoamento serão utilizados nos interesses da liberdade e não nos interesses da autoridade absoluta. Sem essa base para a esperança, a pergunta de Marx 'quem educará os educadores' poderá ser estendida para 'quem reformará os reformadores', e permanecer sem resposta. Uma coisa é dizer que os mecanismos para aperfeiçoar os homens encontram-se agora à nossa disposição, mas é outra inteiramente diferente dizer que esses mecanismos serão de fato utilizados para aperfeiçoar os homens. É isso o que afirmavam os anarquistas. Mas eles mesmos dependiam daquilo que só podemos ver como mitos: o mito da bondade natural do homem, o mito do renascimento. A perfeição já não pode mais ser esperada da destruição das instituições sociais existentes – não mais do que a extensão e o fortalecimento delas. As cadeias que os homens carregam foram-lhes impostas por eles mesmos; elimine-as e eles chorarão a perda da segurança.” 3 

O discurso da entronização das ciências (ou da ciência no singular e C maiúsculo) como instrumento da felicidade e fim de todos os males tem sua gênese neste período. E ainda encontra eco entre nós.

“Então, no século XVIII, começou a se desenvolver uma longa corrente de inferência: o homem havia sido até aquela época uma mera criança em termos de conhecimentos e, consequentemente, de virtude; encontrava-se agora, por fim, em posição de determinar, como um resultado da ciência, como a natureza humana se desenvolve e qual é a melhor coisa a ser feita pelo sere humano; o novo conhecimento podia ser expressado numa forma inteligível a todos os homens; uma vez sabendo o que deveriam fazer, os homens atuariam em concordância e aprimorariam assim suas condições morais, políticas e físicas. Desde que os 'interesses sinistros' não impedissem a comunicação do conhecimento, o desenvolvimento da ciência estava destinado a levar consigo o aprimoramento constante da condição humana a um grau que seria, como o próprio crescimento da ciência, ilimitado.” p. 428

Simultaneamente, uma nova concepção de perfeição se estruturava. O progresso por desenvolvimento natural. Suas raízes são antigas. Remontam aos tempos de Hesíodo, que nos mostra a teoria das três idades (ouro,bronze e ferro), Os Trabalhos e os Dias. Porém um personagem teve um peso decisivo, o abade cistercense e místico católico Joaquim de Flora (ou Joaquim de Fiore).
Desejoso de achar um fio condutor para a história, capaz de manter acesa a a esperança na existência de um plano redentor, criou uma concepção tripartite da história ,correspondentes às três pessoas da Santíssima Trindade. A história seria, portanto, o desdobramento gradual de um plano divino.

De imensa influência nos séculos vindouros, tanto para pensadores religiosos/ místicos quanto para os seculares e materialistas, iluministas como Leibniz e Kant, e românticos como Herder, Lessing, Fichte e Hegel, que a despiram de seu conteúdo religioso, ainda que predomine uma aura mítico-vitalista. Augusto Comte, Engels e Marx também se apropriaram destas ideias de forma mais laica e “científica”.

Assim há uma tendência em abandonar a religião substituindo-a pela crença na Providência, o desenvolvimento da autoconsciência do Espírito, fundamentada em “leis” imanentes que determinam o curso inevitável do progresso do homem. É uma trajetória dialética, entremeada de conflitos e sínteses. Mesclando elementos platônicos, cristianismo, misticismo alemão este tipo de visão provoca um deslocamento da ênfase na perfeição individual para a perfectibilidade no plano da espécie humana. Há o auto sacrifício, o abandono dos interesses individuais a uma realização da liberdade do espírito no Estado. Existe a tentação de se encontrar um substituto para Deus na figura de um “líder inspirado”.
Todavia há uma contrapartida cética e muito crítica frente a estes projetos. São os distópicos.
No século XVIII, Rousseau manifestava suas objeções e temores quanto à marcha irresistível rumo ao progresso. No século seguinte, Baudelaire, Th. Gautier e V. Hugo apontavam seu ceticismo onde todos viam luzes e felicidade. Não só no mundo das letras isto acontecia. Políticos de peso com Lord Balfour e Benjamin Disraeli (que, num insigth inspirado, observava que não devíamos “confundir conforto com civilização”).
A sangrenta trajetória do século XX ampliou esta percepção entre o que se pregava e o que era praticado. 1a. Guerra Mundial, regime nazista, coletivismo soviético, expurgos stalinistas, Guerra Civil Espanhola, Holocausto...

H.G. Wells que era um entusiasta da perfectibilidade humana via progresso científico (a evolução é impessoal e o homem se submeteria à máquina, e aos seus donos) até 1905, foi-se tornando mais cauteloso.
Os romances distópicos, em especial, “1984”, de George Orwell, “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley e “Nós” de E. Zamiatin mostravam como perfeição e liberdade são antagônicas.

Contudo, os distópicos não eram reacionários. Estavam pois, preocupados com um provável processo de desumanização da sociedade que estas utopias administradas, orientadas pela ciência poderiam instaurar. Não desdenhavam da necessidade de reformas sociais, melhorias nas condições de vida de largas parcelas da população, mas questionavam os meios para estes fins. Métodos que levariam para um caminho totalitário. Era um ataque focado na identificação da perfeição com a perfeição técnica, na sociedade como uma máquina perfeita, harmoniosa, onde cada um ocupa seu lugar.

Por fim, o autor aborda o perfectibilismo do pensamento místico e religioso contemporâneo, centrado fundamentalmente em Pierre Teilhard de Chardin e Norman Brown.
O jesuíta, teólogo, filósofo e cientista francês teve o mérito de sintetizar todas as concepções de perfeição que surgiram ao longo da história, no seu complexo conceito de Panenteísmo cósmico.
Já o classicista norte-americano Norman Brown com sua práxis contracultural, erótico/dionisíaca, anti-racionalista e anti-freudiana teve poderosa influência nas transformações comportamentais e políticas que se operaram a partir de 1960, entre artistas, juventude universitária e intelectuais, ao lado figuras do porte de Allen Ginsberg,  Alan Watts, Timothy Leary.

Nesse ponto do livro, John Passmore está escrevendo a respeito (e de certa forma contra) de seu tempo. No calor dos acontecimentos faz observações pertinentes sobre a nova configuração da sociedade capitalista. De certa forma, prenuncia algumas ideias de Christopher Lasch.

Segundo Passmore, a rebelião dos anos 1960 tomou um rumo equivocado e de mão única “retomando o velho ideal perfectibilista e em última análise tirânico, de uma unidade total em lugar do ideal, certamente mais complexo, de uma pluralidade de comunidades intersecionáveis.(...) se as comunidades podem ser estimulantes, encorajadoras, elas também podem ser sufocantes, desencorajadoras (…) Um homem pode nascer numa comunidade que não lhe seja adequada da qual tem que se libertar para desfrutar dos objetos de seu amor. (…) Uma das grandes virtudes da democracia, enquanto continue a ser uma rede de comunidades, é a de que será sempre possível deixar uma comunidade e ingressar em outra, com regras diferentes, hábitos diferentes e devotada a buscas diferentes.” 4 

Desse modo existe o risco de um essencialismo comunitário, aprisionando as pessoas e grupos em identidades fechadas e incomunicáveis. E submentendo o indivíduo num coletivismo asfixiante.
Outras formas de tirania despontam nesse contexto. A busca pelo prazer despreocupado, “puro” (sem mediações afetivas, necessidade de espera e “negociação” mais amplas). A ideia de que o trabalho é apenas dura labuta, e não pode se tornar uma fonte de gratificação prazeiroza. A rejeição da liberdade e da responsabilidade em favor de um ideal místico de “unidade” e/ou “sentimento comunitário de vida”. O hedonismo de cunho libertário transfigurou-se numa mercadoria, gerando novas formas de ansiedade (onde manuais de orientação sexual, elaborados por “especialistas”, transformam em técnica a ser aplicada o que era mais “espontâneo”, imprevisto e experencial na relação entre os sexos).

Ao meu ver, Passmore defende uma tensão construtiva entre momentos de ludicidade/brincadeira e as necessidades mais disciplinadas do trabalho, do cuidado e preocupação com o futuro na formação dos seres humanos. Aprender com a frustração e com as contigências é tão importante quanto experiências mais descontraídas.

É um trabalho ao mesmo tempo formativo e enciclopédico. Extremamente preocupado com a clareza de exposição e de precisão, e o recurso sistemático a argumentos e análises. Assim, não estamos diante de um autor que procura simplificar a questão e fornecer explicações e saídas fáceis. Portanto, Passmore não acredita que este sentimento pela perfeição possa ser deletado da mente humana. Ele não é irracional em si mesmo. 


O que se pode fazer é adicionar uma dose de prudência e ceticismo em projetos que sonham em ser infalíveis,"(…) sabemos por experiência própria, como professores ou pais, que os seres humanos podem individualmente se tornar melhores se nos ocuparmos deles, e que, para uma criança ou para um aluno, pode significar um completo desespero se abdicarmos das responsabilidades que lhe devemos. Sabemos, também, que no passado os homens fizeram avanços nas ciências, nas artes, no afeto. É quase certo que os homens sejam capazes de muito mais do que conseguiram até aqui. Mas aquilo que eles realizam, tal como sugeri, será uma conseqüência de permanecerem seres humanos ansiosos, apaixonados, descontentes. Tentar, na busca pela perfeição, alçar o homem acima desse nível é provocar um desastre; não existe nível acima, mas apenas abaixo. “Ser um homem”, escreveu Sartre, “significa estender-se em direção a ser Deus.” É por essa razão que ele também descreve o homem como uma “paixão inútil”. O homem será certamente uma “paixão inútil” se sua paixão for a de ser Deus. Mas suas paixões não serão inúteis se elas o ajudarem a se tornar um pouco mais humano, um pouco mais civilizado.” 5

Esta obra altamente recomendável pode ser adquirida neste link.

Notas:
1. p. 28
2. ibid.
3. p.387
4. p. 636
5.p. 667

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Sobre a ideologia das aptidões naturais.



Sou um historiador. Várias circunstâncias (conscientes ou não) contribuíram para que eu decidisse seguir este caminho.  Gostar de ler, pesquisar, conhecer culturas e ideias políticas diferentes, a estante de meu tio, com vários livros sobre história (havia um quantidade razoável de volumes sobre psicologia, do meu primo, que eu também gostava de ler), carisma de professores da escola, uma entrevista numa revista... Todavia a força inspiradora da musa Clio foi soberana e existe um psicólogo a menos no mundo. Entrementes, apreciava (e continuo apreciando) a Biologia e o mesmo acontece com as artes plásticas (notadamente o desenho). Já me pensei como cineasta ou crítico de cinema quando tinha 13-14 anos.
Nessa escolha há um peso decisivo de meu livre-arbítrio. Não há um gene do historiador, do psicólogo, do biólogo ou qualquer outra profissão. Formas mais sutis, inconscientes, podem ter seu peso importante, assim como a pressão familiar. Do modo geral é uma mestiçagem entre influências externas (que podem ser persuasivas ou arbitrárias), uma escolha calculada diante de certas contingências (se quiserem chamar de destino, tudo bem) e um desejo de ser o que se quer ser.

Existe a questão (para muitos, quase uma certeza) da aptidão natural para este ou aquela profissão, do dom para as artes e dados ofícios, da tendência e da vocação, no geral termos com significados próximos. Não acredito muito nisto. Como gosto de ficar contra corrente e afrontar o senso comum vai aqui uma provocação: O artigo da socióloga francesa Noëlle Bisseret foi decisivo para firmar meu ceticismo neste ponto. Apesar de meio antigo, início dos anos 1970, é leitura fundamental para quem opera com educação e ciências sociais.

O texto de Noëlle Bisseret analisa uma estrutura de longa duração. O conceito de “aptidão” possui várias camadas de sentido. Do divino ao humano, do individual ao social, do geral ao particular e, finalmente ao biológico, presente na psicologia diferencial, foco central da análise da autora. Fonte de preocupações de ordem epistemológica e política. O século XIX é o centro do texto. Período decisivo, resultado de fraturas conceituais advindas dos séculos anteriores e provocador de outras descontinuidades. Sempre interdependentes de configurações sociais e políticas.
Analisando discursos de várias correntes científicas e dicionários de diferentes épocas, a autora mostra como o conceito de aptidão se transformou em um ideologia [compreendida como discurso social, historicamente construído, consciente e inconscientemente, cf.,p.67] que encobre e justifica as desigualdades sociais, não apenas no senso comum, mas principalmente através da racionalidade e legalidade de determinados conhecimentos científicos.


O termo “aptidão” tem uma origem jurídica, em especial no século XV, significando “habilidade para exercer uma profissão, para receber um legado” (p.33). Passando para uma linguagem filosófica adquire o sentido de “tendência natural para alguma coisa”. Na configuração social do Antigo Regime a noção de “aptidão” está inserida numa concepção teológica. Faz parte da vontade divina que uma pessoa possa ter aptidão para as artes, determinados ofícios, para a vida política, e também certas deficiências, consequências do pecado. Sendo miserável ou nobre, sua posição na sociedade já estava estabelecida por Deus de antemão.

Contudo, a partir da segunda metade do século XVIII, a situação muda radicalmente. A concepção teocentrista passa a ser questionada e, depois, desdenhada, cedendo lugar a uma postura naturalista. Nas palavras de Bisseret: “A relação dos homens com o mundo é modificada por esse domínio progressivo sobre a natureza: eles não esperam mais que Deus intervenha, por meio de milagres, no curso dos acontecimentos. O mundo físico e humano obedece a leis próprias, que a ciência deve descobrir. (…) As diferenças entre grupos humanos ou entre indivíduos são percebidas como contingentes e relativas ao meio físico ou social” [pp.34-35]

Essas ideias representam , além do desenvolvimento das ciências, uma mudança nas relações sociais, com o advento do individualismo e dos ideais de liberdade e igualdade. Fazendo parte, assim, da afirmação da burguesia como classe social, a palavra aptidão recebe outro sentido. Se ainda persistem certas “tendências naturais” que condicionam o destino dos indivíduos, estas podem ser modificadas pela educação, “(...)outrora 'dom divino' é agora considerada como resultado, sempre suscetível de mudança, do meio e da educação; mas ela também se tornou um valor em nome do qual se pode pretender certas funções sociais” [pp.35-37]


Com a Revolução Francesa ganham corpo projetos de estabelecimento de instituições escolares para todos. No século XIX, com a instrução pública obrigatória passa a existir certo ideal de minorar as desigualdades sociais através de uma base educacional comum . “Entretanto se as desigualdades reais subsistem nos fatos, o princípio da igualdade tornou-se um valor universalmente adotado. Substituindo formalmente a ideia de nascimento por direito divino, as noções de igualdade, de mérito, de aptidão, de competência e de responsabilidade individual tornaram-se elementos de uma ideologia global a qual o 'Povo' também adere.” [p. 37]

Dessa forma, o século XIX é atravessado por dois grupos em permanente conflito, a burguesia, detentora do poder, e o proletariado com a elaboração de vários projetos e ideologias revolucionárias. Dentro das discussões sobre a reforma do ensino, ainda muito elitizado, do dilema entre formação humanística ou científica, a problemática das aptidões ganha no significado, tornando-se “um dado imutável, permanente, hereditário, que determina o destino de um indivíduo; a aptidão perdeu o sentido de característica aleatória que, no século XVIII lhe conferia a ideia de liberdade humana e, antes do século XVIII, a ideia de liberdade divina.” [p.41]
Em meio a repressão aos movimentos revolucionários de 1848, a consolidação da Segunda Revolução Industrial, expansão do sistema bancário e financeiro, crescimento do comércio e dos meios de transporte e comunicação, a sociedade francesa e européiareflete esta complexidade com a rígida delimitação entre um ensino primário reservado às camadas populares, destinando os meninos a formação profissional, operária ou militar. E para as meninas, uma formação adequada à sua “natureza”, ou seja, o lar e as “atividades femininas”; enquanto o secundário, com caráter propedêutico, estava reservado às crianças da burguesia. “O sistema educacional, portanto, conserva ativamente as superioridades e privilégios da classe detentora do poder.” [p.43]


A partir do advento da Teoria da Evolução de Charles Darwin e sua apropriação por Gobineau na França, e Frances Galton, criador da eugenia e da psicologia diferencial, na Inglaterra, e outros pensadores racistas e eugenistas “as desigualdades sociais não são mais relativas a uma ordem social criada pelos homens, mas dependem de uma nova ordem transcendental, de natureza biológica, irredutível e determinante. (…) A dominação de uns por outros é, portanto natural, inevitável e legítima.” [p.43] Desse modo a educação deve ser adequada às diferentes classes sociais, segundo suas aptidões e necessidades, não sendo conveniente aos humildes uma formação mais sofisticada como a transmitida às crianças burguesas.

Com as teorias e procedimentos de Alfred Binet, que possuía um pensamento político mais a esquerda, certa noção de justiça social, de reorganização da sociedade, especialmente no tocante a relação patrão-operário, à maneira de Durkheim, a psicologia tende a se afirmar como uma ciência, fundamentando-se nos testes de medição de inteligência. Desconhecendo ou negando os determinantes sociais e ideológicos do saber científico, os psicólogos acreditavam estar contribuindo para uma reorganização da sociedade do final do século XIX, fundamentando a política escolar e a política de emprego. Todavia , existe um paradoxo, se num primeiro momento incentivou educadores liberais a reivindicarem o fim das distinções de origem social para o acesso ao ensino secundário e superior, “a ciência dos testes permite que duas exigências dificilmente conciliáveis se tornem compatíveis: de um lado a necessidade de oferecer a todos, oportunidades iguais e, de outro, a necessidade de manter as desigualdades de posição profissional e social.” [p.52]


Esse paradigma se consolida no século XX, não obstante as críticas e a existência de outros saberes relacionados ao psiquismo, como a psicanálise, as correntes culturalistas, a fenomenologia, a Gestalt, que não trabalham com o conceito de aptidão (ou pelo menos não lhe atribuem um peso tão imenso e categórico). O organicismo do século XIX, ainda predomina segundo novas reelaborações, colocando em segundo plano a menção a fatores do “meio” (sociais, culturais, políticos, ideológicos). Desse modo, a intenção da psicologia diferencial em dar um suporte científico, preciso e quantificável, ao conceito de aptidão consegue se firmar, ainda hoje, não obstante suas ambiguidades, como “um dos suportes de interpretação simbólica total que a sociedade se dá de sua ordenação e de seus próprios conflitos.” [p.67] A escola é um lugar de destaque destes procedimentos. Selecionando e orientando as crianças das classes pobres, que teriam aptidões menos “complexas”, embora mais “práticas” para determinados fins. Suas oportunidades de escolha e transformação já estariam circunscritas sob as bençãos da “diversidades de dons, talentos e vocações”. Naturalizando assim as relações entre os indivíduos, suas desigualdades sociais e conflitos de poder. Transformando em “fato” biológico (hereditário, neurológico...) o que é de campo de ação da prática política.

O texto de Bisseret é uma ótima introdução ao tema. Não tenho grandes reparos a fazer. Sobre o estado atual da arte mais recente não é difícil encontrar material. Este é o ponto de partida. Só faltou menção à psicologia genética de Jean Piaget. Como ela se encaixaria nisto tudo?

Bibliografia:
BISSERET, Noëlle “A ideologia das aptidões naturais.” tradução: Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Lúcia de Souza B. Pupo Tavares. In DURAND, José Carlos (org.) Educação e hegemonia de classes. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 pp.31-67