Ter saúde não é não adoecer. É poder adoecer e se recuperar. Poder sofrer e ultrapassar o sofrimento, engendrando novas formas de lidar com a vida.
Georges Canguilhem
Felizes os que sabem que o sofrimento não é uma coroa
de glórias.
Jorge Luis Borges – fragmento
de um evangelho apócrifo
Pois esta é a ferida da vida: letra morta sempre viva na palavra que se afirma e se nega na entrelinha. Mário Chamie
Que é isto? onde me lançou/ esta tempestade má?
Sá de Miranda - Cantiga III
Entre 14 de abril e 8 de maio do corrente ano, permaneci internado no Hospital do Servidor Público Estadual, no 11º andar, Gastroclínica e Otorrinolaringologia, para tratar de dores abdominais, uma taxa de glicemia altíssima e realizar exames e demais procedimentos. Um ultrassom realizado na semana anterior apontava uma trombose na vei porta do fígado.
Esta história teve início na véspera do carnaval, quando resolvi fazer doação de sangue no Pró-Sangue do Complexo Hospitalar do Mandaqui. No entanto, o teste de anemia marcou 64% de hematócritos, o que significava o contrário da anemia, inviabilizando, ois, a doação. A hematologista da unidade recomendou-me a realização de um hemograma e exames correlacionados. Depois dos resultados, agendaria uma consulta com um colega de sua especialidade. Fiz tudo num laboratório conveniado ao IAMSPE. Dez dias depois os resultados estavam prontos. Curiosamente, o médico responsável pediu a repetição do hemograma. O que acendeu meu sinal de alerta de que este caso seria mais complexo. A alta taxa de glicemia, associada a outros sinais, apontava para algo que eu desconfiava há certo tempo e, que talvez, estivesse recalcando no mais profundo de meu ser.
No início de abril, comecei a sentir fortes dores abdominais, certa fraqueza e indisposição/desânimo. Retornei ao HSPE, onde fiz exames de sangue e o referido ultrassom, além da medicação. A dor cessou por certo tempo. A medicação, Buscopan Composto, escondia o incômodo. No meio da semana seguinte, a dor retornou, recorri a umpronto socorro de meu bairro, onde foi aplicada uma dose de insulina para baixar a glicemia e medicação para aliviar a dor. todavia, a dor não era aplacada de forma alguma. No dia do feriado, 14/04, voltei ao IAMSPE. A taxa de glicemia estava bem alta, e a clínica geral, que também era endocrinologista, ao analisar o ultrassom, recomendou a internação pois a dor seria melhor tratada neste procedimento e precisaria de mais exames e investigar a causa da trombose. Apesar da novidade, não hesitei em autorizar a internação.
Foi minha primeira experiência neste aspecto. A carga de exames foi considerável: desde coletas frequentes de sangue (por vezes mais de dois tubinhos), até os exames mais complexos como Tomografia, Angio Ressonância, Ecocardiograma, Espirometria, radiografias, endoscopia e endoscopia com ligadura e biópsia do fígado.
Como eu suspeitava, fui diagnosticado com diabetes tipo dois. Entretanto, o que intrigava mais os médicos era a trombose na veia porta, pois eu não sou fumante e nem consumo álcool. E na minha família não havia histórico semelhante.
A equipe da hematologia pediu minha autorização para a realização de um exame genético relativo ao gene JAK 2. Dias depois, os resultados do teste esclareciam parte do enigma. Sou portador de Policitemia Vera, doença mieloproliferativa crônica, atestado pela detecção da mutação V617F no gene Janus Kinase (JAK2). Caracterizada pelo aumento do volume dos glóbulos vermelhos. A produção anormal e acentuada de eritrócitos, leucócitos e plaquetas provoca eventos como tromboses e AVC. Há possibilidade muito remota de desenvolvimento de uma leucemia. A evolução da moléstia é benigna e seu quadro é assintomático, porém bastante controlável. Só detectado por meio de exames ou quando alguns destes eventos se manifestam. No meu caso o sinal de alerta foi a trombose na veia porta. Meu tratamento visa retardar e diminuir a produção de eritrócitos por meio de sangrias ou flebotomia (uma doação de sangue, cerca de 400 ml.) e o uso do quimioterápico Hydrea (Hidroxiureia) e o AAS infantil. Quanto à diabetes, tento seguir a dieta e faço uso do medicamento específico. No mais, levar o que chamam de “vida normal”. O triste era se tornar um doador a menos de sanguem meu tipo, B negativo, é relativamente raro.
Fui bem tratado, dentro das condições atuais do sistema público de saúde do Estado de São Paulo. Agradeço aos médicos, enfermeiros e demais funcionários do IAMSPE, e meus familiares e amigos pela atenção. Bem, até aqui narrei os fatos, de forma mais breve e objetiva possível. Agora, divagar um pouco...
Não tenho, caro leitor, nenhuma retórica edificante para oferecer mesmo modo, nenhum exercício de autodepreciação (ainda que possua certa propensão a isso). Sou perfeccionista e rigoroso comigo mesmo. Não vejo problema algum na autocrítica, desde que não se torne paralisante.
Não busco comiseração, não almejo à angelitude ou à irrupção de alguma divindade interior. Desconfio de profetas e profecias. Dispenso filosofias baratas, esoterismos e espiritualidades mercenárias, ou seja, aquelas mais preocupadas com a onipotência de quem as produz, do que com o destino daqueles que as consomem. Doses moderadas de epicurismo, estoicismo, Montaigne e Nietzsche me bastam quando advêm horas obscuras. Literatura fantástica, música erudita e pesada são imprescindíveis. Me abasteço disto nos momentos de desastre. Meu imperfeito racionalismo e ceticismo são o passaporte possível para atravessar paragens do desespero e desviar, o quanto for possível, do sofrimento. Estou me habituando a navegar pelo acaso e acolher os imprevistos. Feridas e fraturas expostas do meu ser não são o preço pago por tudo isto. São contingências que eu apreendo ou ignoro. Minha dor é impartilhável. Só diz respeito a mim. Reivindico apenas minha humanidade, ambivalente, incompleta e imprecisa. Entremeada de defeitos e qualidades. Apenas isso…
O dispositivo hospitalar nos despoja de todo sensação de autossuficiência e independência (que nunca são absolutas). Nunca senti tremenda sensação de fragilidade e dependência de um outro (que não é o imediatamente próximo). As modificações no seu corpo, dores e alívios, progressos e recaídas, perda ou ganho de peso, alterações na pele, seus segredos mais íntimos (ao menos até certo ponto, você pode dissimulá-los), são desvelados, involuntariamente ou não… nudez simbólica e virtual que assinala a condição incerta do ser humano enfermo.
A solidão absoluta era impraticável, pois convivi com quatro companheiros de quarto, cujas histórias era difícil não partilhar, embora minha relativa misantropia conduzisse a busca por isolamento. Que conseguia passeando pelo corredor e pelo saguão, além de ler e ouvir rádio nos bancos desses ambientes.
Todavia, não senti, na maior parte do tempo, que fui tratado como criança ou marionete. Se o hospital é uma instituição total, desconfio de certos construtos althusserianos e foucaltianos a respeito das instituições, que ainda predominam nas análises dos sistemas de saúde. Há uma relação de poder, desigual, imperceptível, mas por que seria apenas um mal? É claro que desejava ou imaginava outras formas de tratamento, porém, entre continuar com a dor aguda e viver sob a sombra do risco de alguma hemorragia ou coisa pior, a internação e a submissão a conceitos, juízos e procedimento que você não domina constituíram. Basta pensar nos despojados de tudo, sobrevivendo ao léu das ruas e construções, cujo modo de vida é hipocritamente romantizado por aqueles que possuem acesso ao que há de melhor no campo da saúde.
Nunca estive tão próximo do sentimento de finitude. Embora, perto da alta, tenha ficado ciente da cronicidade do meu caso, os momentos iniciais foram de imensa interrogação, angustiosa interrogação: seria algum tumor? Necessitaria de intervenção cirúrgica complexa, quais sequelas adviriam de todo o processo. Nem as crises de depressão provocaram tamanho estilhaçamento em meus pensamentos e ações.
A passagem do tempo? Ah, o tempo. O que posso dizer, sem me valer de lugares comuns? Impossível não evocar a noção dos dias intermináveis e quase sempre iguais aos outros. E foram na maioria das vezes. Havia momentos de transgressão, alguns passeios para além do ambulatório, para exames. Creio que aproveitei bem o tempo da memória.Deu para esculpi-lo. Desviar da rotina de quando em quando. Rememorações ora agradáveis ou não, ou ainda aquelas difíceis de valorar. Vislumbres, sonhos. Indecifráveis, inesperados, minuciosos, banais e longínquos. Vastos universos com infinitas ramificações que se perdem. Difícil de contemplar sem a vertigem. Não estava numa condição em que oprimia um alheamento do mundo de fora, algo impossível; como imagino que é a passagem do tempo dos acamados, entubados, sedados e entregues ao coma induzido.
Seria um mentiroso se negasse os momentos de impaciência, ódio até. Haviam dias em que nenhum exame era programado e as visitas do médico bastante breves, enigmáticas… Deslembranças e lembranças intoleráveis que gostaria de cauterizar de minha mente. Vocábulos e pensamentos travados que escapam de seu alcance e desesperadamente tenta recuperar…Quem nunca sentiu raiva de si? Quem nunca pensou em autodestruição?
Meu primo trouxe os diários de classe, pois fui pego no encerramento do 1º bimestre. Completei-os da melhor forma que pude. Alguns livros, cd’s e meu tablet fizeram companhia. Não usufrui da forma que gostaria. Ouvia mais o rádio do celular. Escrevi pouco e não desenhei absolutamente nada. O que fiz de forma mais produtiva foi mergulhar em meus pensamentos. Surgiram as deslembranças e lembranças intoleráveis que aludi acima. Compreendi, entretanto, que esse mundo subterrâneo da existência constituía uma matriz de esperanças longínquas a que me agarrava. Projetos e sonhos, ainda que precariamente esboçados. Esquecer minha ruína financeira, a maldita chuva que estraga minha casa de tempos em tempos, por certos instantes foi um elixir que proporcionava alguma sanidade e margem de manobra. Foi e continua a ser doloroso. Melhor não seria deixar de trazê-lo à luz do dia? Após a alta, surgiu outro Marcelo?
Não tenho resposta fácil. Uma vitória, se posso usar essa palavra, consiste em perceber que você não é uma carta fora do baralho. Existe a possibilidade de reorganizar a vida a partir de outros parâmetros, ao mesmo tempo que certos hábitos insatisfatórios são descartados, valores e características suas, muito preciosos, submersos nos vagalhões da existência são recuperados com outro olhar. Sobrevivi a experiência . Continuar a viver, entretanto, é algo mais complexo. Estou disposto a prosseguir. Seria hipócrita,todavia, em admitir que tudo é uma página virada e não existe a vontade de largar tudo. Recorro à metáfora da guerra, um tanto desgastada, como tantas outras, mas é a que disponho no momento, pois aprecio narrativas épicas clássicas ou na linha do Senhor dos Anéis e Game of Thrones. Se, a partir de agora, enfrento batalhas intensas, pretendo não desertar. Em várias ocasiões será uma guerra sem testemunhas, como foi quando resolvi escrever este texto. Que agora exponho publicamente.
Encerro este texto como iniciei, sob as palavras de Georges Canguilhem:
“(…) A loucura, a dor subjetiva, a morte, o envelhecimento, não são ruídos, desvios, disfunções de uma vida que se extraviou de seu rumo [ao contrário, são, como afirma
o filósofo francês] (…) os signos de uma vida normativa. Uma vida que não se depara
com o intolerável, com o assombro, com o sem sentido, é uma vida
empobrecida, normatizada, incapaz de agir criativamente.”
Fonte da imagem: http://insgid.ru/dobrovolnoe-meditsinskoe-strakhovanie-dms
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