No início do Consulado de Napoleão Bonaparte, virada do século XVIII para o XIX, um evento curioso chamou a atenção do médico Jean Itard (1774-1838): a descoberta, por um grupo de caçadores, de um menino, com idade entre 10 e 12 anos, de hábitos selvagens, errando pelas florestas de Caune, distrito de Aveyron, sul da França. Mudo, aparentemente surdo, alimentando-se de nozes,castanhas e raízes, isolado de todo convívio humano, e indiferente tanto as pessoas que lhe proporcionam algum afeto ou satisfação de necessidades, como também aos que o maltratam. Talvez, contemporaneamente, seria considerado "autista". O menino selvagem de Aveyron, como ficou popularmente conhecido, depois de várias peripécias, foi finalmente enviado à Paris. Sob os cuidados da Instituição Nacional dos Surdos-Mudos, onde foi confiada a guarda do menino, mediante o pagamento de uma pensão ao médico Itard e a governanta, Madame Guerin.
Itard escreveu dois relatórios, em 1801 e 1806, para prestar contas às autoridades ministeriais de Paris, dos resultados de seu empreendimento pedagógico. Bem escritos e muito detalhistas, estes textos tornam Jean Itard um dos fundadores da Educação Especial.
Contrariando os prognósticos negativos de Philippe
Pinel, que considera o garoto "idiota" (no sentido da psiquiatria da época), portanto, irrecuperável, Jean
Itard acredita que o menino pode ser
educado e "civilizado". O menino recebeu o sugestivo nome de Victor.
Formado nos ideais político-sociais e na
epistême do século XVIII,
Itard tem como fundamentos teóricos a produção filosófica de John
Locke,
Condillac, além da medicina moral dos ingleses. Portanto,uma pedagogia fundamentada na observação e na
experimentação para decidir que caminhos devem ser percorridos na educação do "selvagem", embora
Itard reitere, no primeiro relatório, que adaptou os ensinamentos científicos e filosóficos às condições de educação de uma criança dita "anormal".
A partir das lições destes mestres,
Itard constituiu estratégias de socialização: desenvolver a sensibilidade dos
órgãos dos sentidos (visão,
olfato,
tato, paladar e audição), estimular Victor a participar da vida social, ensinar a falar, ler, escrever. Desenvolver noções de moralidade e justiça e
proporcionar-lhe novos gostos e necessidades.
Entretanto, fazê-lo abandonar a vida primitiva e
interiorizar novos hábitos não é tarefa fácil. Comportando-se mais como cientista do que preceptor,
Itard não parece aprender com os imprevistos. Não parece admitir que pode estar errado em algum ponto. Operando a partir de conclusões de antemão, não pode deixar de mostrar descontentamento, no segundo relatório, texto bem pessimista, frente aos rudimentos de sociabilidade que Victor , já adolescente,"conquistou" (?). Na verdade Victor só assimilou automatismos comportamentais. Assim como suas preocupações com relação ao descomedimento, no tocante à sexualidade, se revelam infundadas. No entanto, a indiferença de Victor quanto a este e outros assuntos, ao mesmo tempo
tranquiliza e decepciona o obcecado cientista.
"(...) o homem é apenas o que o fazemos ser" (p.125). Feita esta constatação, observamos a importância que
Itard, apesar de seu
arcarbouço naturalista, concede às relações de
interdependência entre os indivíduos. Portanto, assim que foi colocado frente aos olhares de curiosos, cientistas ou não, a sociedade assumiu um compromisso com relação a Victor.
Qual é a importância da leitura e análise destes escritos para os dias de hoje?Por que e para que educar? Após a leitura destes relatórios uma das conclusões que podemos formar seria: ele já não estava"educado" daquela maneira, antes do
contato com os adultos? Por que não deixar como estava antes?
O conceito de civilização, em nossa
contemporaneidade, juntamente com seus
correlatos progresso e evolução, tornou-se extremamente "antipático", politicamente
incorreto,
etnocêntrico (como se não existisse sociedade não-
etnocêntrica) para muitos. Contudo a visibilidade crítica de um conceito pode obliterar um complexo de relações de poder e legitimidade dentro dos campos político, científico e pedagógico, encobrindo o que realmente está em jogo: um
projeto de sociedade e de formação dos sujeitos.
Civilizar, dentro da polissemia de significados que o conceito de civilização proporciona pode, na linguagem e procedimentos da jurisprudência, designar um ato de justiça. Tornar-se civil, participar da vida pública. Portanto, o que uma boa educação deveria fazer: ensinar a ler, escrever, contar, interpretar, a se expressar em público, oferecer um repertório científico e cultural ... Provocativamente, civilizar uma pessoa. A meu ver, deixar Victor seguindo sua vida no meio da floresta seria uma monstruosidade. Ele estava adaptado ao meio, mas não era um ser humano pleno, educado, de modo que simpatizo com a iniciativa de Itard, embora com distanciamento crítico, pois cometeu os equívocos acima mencionados.
Existe um grande risco de se
efetuar uma
antropologia caricatural, um positivismo às avessas, cristalizando uma identidade que está na mente do pesquisador, do educador... sem confronto com o vivido, romantizando, assim, as condições de
sobrevivência dos "excluídos", loucos, miseráveis, crianças e adultos, que habitam seus "abrigos" de papelão e tecido estragado
embaixo de viadutos e outros lugares, dos
iletrados e analfabetos funcionais fora da cultura
predominantemente letrada onde é difícil viver sem um grau satisfatório de instrução .
Para empreender uma crítica (no sentido de percepção dos limites de um discurso) ao legado de Jean
Itard podemos, evitando anacronismos, compreender suas práticas dentro de uma configuração social específica. Uma sociedade em bruscas mudanças, desencadeadas pela crise do Antigo Regime e pela Revolução Francesa. A ascensão do indivíduo e seus direitos (dentro dos limites da sociedade de classes). A ideia da escolarização pública e universal e a reorganização da vida familiar. Em resumo uma nova organização dos poderes e conflitos.
Itard foi testemunha e participante de tudo isto. Um processo onde existiram erros e acertos, perdas e ganhos, ainda não devidamente avaliado.
A colonização da educação, em especial de crianças e adolescentes, pela psicologia e seus dogmas (e psicologismos), da frágil tensão entre
autoritarismo e
permissivismo, onde tudo deve ser quantificado e previsível, onde é preciso reinventar a roda a cada mudança de administração, também é uma influência sua (e de outros também), ainda que involuntária. Voltarei a escrever sobre este assunto com mais profundidade em outra
postagem.
Os relatórios de Jean
Itard foram traduzidos e publicados no Brasil pela
Cortez Editora em 2000, sob o título A educação de um selvagem: as experiências pedagógicas de Jean
Itard,
Luci Banks Leite e
Izabel Galvão (
orgs.) precedido de seis ensaios analíticos.
Infelizmente o belo filme de François
Truffaut "O garoto selvagem" , inspirado nos escritos de
Itard, não está disponível em
DVD no Brasil. Salvo engano, há um
DVD de distribuidora portuguesa, com o consequente preço salgado e dificuldade de localizá-lo.