terça-feira, 16 de novembro de 2010

Monteiro Lobato, a eugenia e o racismo



O affair em torno ao parecer do Conselho Nacional de Educação, relacionado a elementos racistas no livro "As Caçadas de Pedrinho" de Monteiro Lobato (onde é efetuado um processo de desumanização da personagem Tia Anastácia e uso de uma linguagem considerada degradante, normalizando preconceitos), foi útil para expor o conflito entre concepções de educação, combate ao preconceito e a meu ver, a inabilidade de grande parte da Mídia, defensores do escritor, OAB e ABL em conduzir a discussão de forma produtiva e transparente, sem desqualificar vozes discordantes, sem o recurso fácil à teorias conspiratórias, temor da volta da censura e as infalíveis associações com a Inquisição, o Nazismo e ao "Grande Irmão" de Orwell, sempre zelando por nós. Quem leu o texto árido do parecer com atenção e distância crítica não pode viajar tanto... Apenas é recomendado um olhar crítico quanto a este material.

Muitos se iniciaram no universo da leitura através de Monteiro Lobato e seus personagens. Além de seus méritos como escritor, ele foi um idealista e homem de ação. Ao lado do contador de estórias, existe o polemista, o empreendedor, defensor de nosso desenvolvimento económico e auto suficiência energética, aquele que consolidou entre nós a indústria editorial. Estas facetas construíram um sólido vínculo afetivo. Parece doloroso e inadmissível encontrar algo que macule esta imagem. Ainda mais com o recrudescimento do ideário desenvolvimentista, a reboque do fim das eleições. Desse modo é fácil compreender a reação áspera, porém mal informada, de muitos, frente ao parecer. Todavia, negar que o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo está fora das relações culturais e sociais que estruturam os sujeitos, é ingênuo e pernicioso para o conhecimento de nossa realidade.


Há uma dimensão de classe com relação a este assunto. A maioria dos leitores de Monteiro Lobato é branca e provém de famílias com certo capital cultural. Quando “As caçadas de Pedrinho” e outros livros foram escritos, poucos negros, mestiços e mesmo brancos pobres tinham acesso à escola pública ou particular. O próprio ensino público estava nascendo e era um campo de lutas e discursos políticos, religiosos e pedagógicos muito disputado, e pouco tangível materialmente. Na década de 1960 o ensino seria massificado e atingiria parcelas mais expressivas da população, mas esta parte da história foge do centro desta postagem. Vale observar que boa parte (creio que a esmagadora maioria) destas pessoas não se tornou racista, demonstrando que o leitor, de maneira geral, não aceita ao pé da letra tudo o que lê. Há reinterpretação  e autoconsciência... No entanto, não se deve descuidar da necessária contextualização e crítica desta produção cultural quando for lida em sala de aula.


Monteiro Lobato adotava ideias que, hoje, consideramos racistas. Não obstante, dificilmente este escritor endossaria o recurso às câmaras de gás ou os linchamentos da Ku Klux Klan. Talvez, a maneira do presidente norte-americano Abraham Lincoln (1809-1865), reconhecia o crime que foi a escravidão, porém não acreditava na convivência das etnias e na miscigenação, que seria daninha à sociedade, defendendo então, uma espécie de desenvolvimento em separado, mas Lobato não se aprofundou muito nestas ideias.


E para complicar a situação também simpatizava com aspectos do eugenismo. Defino eugenia como o estudo dos meios capazes de proteger, aumentar e aperfeiçoar os elementos mais saudáveis e vigorosos das populações humanas, ou seja, de salvaguardar as qualidades genéticas das gerações futuras. O conceito de eugenia tornou-se palavrão, de certa forma compreensível, dado as atrocidades cometidas nos séculos XIX, XX, e ainda em curso em diversos pontos do planeta... No entanto, ela não é, necessariamente, sinônimo de racismo; sob certos aspectos, está presente em nossa realidade sem darmos conta. Remeto para um artigo , meio antigo, mas esclarecedor do geneticista Oswaldo Frota-Pessoa (1917-2010).


A questão é sinuosa. Nas primeiras décadas do século XX onde a demanda por "progresso", "regeneração nacional" e "aprimoramento da raça" estava na ordem do dia, no Brasil e na América Latina, a eugenia era a panacéia para debelar estes problemas... Não é difícil encontrar o criador da Emília e do Visconde de Sabugosa entre seus adeptos brasileiros. 

Em 1918 foi fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo (Sesp), a primeira da América Latina, sob inspiração do psiquiatra Renato Kehl, com cerca de 140 associados, entre os quais estavam o fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho, o sanitarista Arthur Neiva, o psiquiatra Franco da Rocha, o educador Fernando de Azevedo e o escritor Monteiro Lobato, que, numa carta à Renato Kehl, declarou o seguinte:


“Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (...) Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha. Lobato.” in História Viva , edição 49 - Novembro 2007 Eugenia, a biologia como farsa, por Pietra Diwan


Esta "poda" poderia ser realizada de diversas maneiras: esterilizações compulsórias de casais, restrições à imigração de certos povos considerados "não-assimiláveis" e proibição de casamentos inter-raciais. Existiam dentre os simpatizantes, aqueles que condenavam o racismo, como o médico e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, diretor do Museu Nacional, que apoiava a miscigenação e achava que o mal do Brasil estava nas doenças e falta de saneamento e não na "raça".


Um trecho revelador da “Barca de Gleyre” descortina este aspecto que muitos gostariam de ver embaixo do tapete:


(...)Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi ?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!... (in A barca de Gleyre. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).
Entretanto, o tom de lamentação do fragmento mostra mais uma atitude resignada frente a um fato consumado do que projeto eugenista com possibilidade de ser posto em prática. Um resmungo. Não dá para ser leviano, as ligações de Monteiro Lobato com as ideias racistas e eugenistas necessitam de estudos rigorosos e em especial desvendando como ele se apropriava delas a sua maneira. É interessante jogar Monteiro Lobato contra Monteiro Lobato. Não era uma persona unidimensional, como podemos ver nos trechos que selecionei abaixo:




"A diferença única é que a História é escrita pelos ocidentais e por isso, torcida a nosso favor. Vem daí considerar-mos como feras aos tártaros de Gêngis Khan e como heróis, com monumentos em toda a parte, aos célebres 'conquistadores brancos'. A verdade, porém, manda dizer que tanto uns como outros nunca passaram de monstros feitos da mesmíssima massa na mesmíssima fôrma."


História do Mundo para as Crianças. 15a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1958 [1933] p.206


"Os grandes povos da Europa consideravam-se os primeiros do mundo porque dominam os fracos. Mas dum ponto de vista mais elevado, o simples fato de ainda serem povos guerreiros, isto é, dos que só conseguem as coisas pela violência, prova que estão muito longe do que constitui a verdadeira civilização." 

"Aquela poesia de Castro Alves, 'Vozes da África', é bem certa... Este continente parece que nasceu maldito. Além dos desertos, além da mosca tsé-tsé que propaga o bacilo da terrivel doença do sono, caiu sobre ele uma desgraça pior do que tudo: a cupidez da civilização européia."

"(...)o célebre 'tráfico de escravos africanos' virou a maior tragédia da História. A crueldade do branco, a cupidez dos civilizados, excedeu a tudo quanto se possa imaginar."


Geografia de Dona Benta. 11a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1962 [1935] pp. 146, 184, 185



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