segunda-feira, 18 de abril de 2011

Sobre a ideologia das aptidões naturais.



Sou um historiador. Várias circunstâncias (conscientes ou não) contribuíram para que eu decidisse seguir este caminho.  Gostar de ler, pesquisar, conhecer culturas e ideias políticas diferentes, a estante de meu tio, com vários livros sobre história (havia um quantidade razoável de volumes sobre psicologia, do meu primo, que eu também gostava de ler), carisma de professores da escola, uma entrevista numa revista... Todavia a força inspiradora da musa Clio foi soberana e existe um psicólogo a menos no mundo. Entrementes, apreciava (e continuo apreciando) a Biologia e o mesmo acontece com as artes plásticas (notadamente o desenho). Já me pensei como cineasta ou crítico de cinema quando tinha 13-14 anos.
Nessa escolha há um peso decisivo de meu livre-arbítrio. Não há um gene do historiador, do psicólogo, do biólogo ou qualquer outra profissão. Formas mais sutis, inconscientes, podem ter seu peso importante, assim como a pressão familiar. Do modo geral é uma mestiçagem entre influências externas (que podem ser persuasivas ou arbitrárias), uma escolha calculada diante de certas contingências (se quiserem chamar de destino, tudo bem) e um desejo de ser o que se quer ser.

Existe a questão (para muitos, quase uma certeza) da aptidão natural para este ou aquela profissão, do dom para as artes e dados ofícios, da tendência e da vocação, no geral termos com significados próximos. Não acredito muito nisto. Como gosto de ficar contra corrente e afrontar o senso comum vai aqui uma provocação: O artigo da socióloga francesa Noëlle Bisseret foi decisivo para firmar meu ceticismo neste ponto. Apesar de meio antigo, início dos anos 1970, é leitura fundamental para quem opera com educação e ciências sociais.

O texto de Noëlle Bisseret analisa uma estrutura de longa duração. O conceito de “aptidão” possui várias camadas de sentido. Do divino ao humano, do individual ao social, do geral ao particular e, finalmente ao biológico, presente na psicologia diferencial, foco central da análise da autora. Fonte de preocupações de ordem epistemológica e política. O século XIX é o centro do texto. Período decisivo, resultado de fraturas conceituais advindas dos séculos anteriores e provocador de outras descontinuidades. Sempre interdependentes de configurações sociais e políticas.
Analisando discursos de várias correntes científicas e dicionários de diferentes épocas, a autora mostra como o conceito de aptidão se transformou em um ideologia [compreendida como discurso social, historicamente construído, consciente e inconscientemente, cf.,p.67] que encobre e justifica as desigualdades sociais, não apenas no senso comum, mas principalmente através da racionalidade e legalidade de determinados conhecimentos científicos.


O termo “aptidão” tem uma origem jurídica, em especial no século XV, significando “habilidade para exercer uma profissão, para receber um legado” (p.33). Passando para uma linguagem filosófica adquire o sentido de “tendência natural para alguma coisa”. Na configuração social do Antigo Regime a noção de “aptidão” está inserida numa concepção teológica. Faz parte da vontade divina que uma pessoa possa ter aptidão para as artes, determinados ofícios, para a vida política, e também certas deficiências, consequências do pecado. Sendo miserável ou nobre, sua posição na sociedade já estava estabelecida por Deus de antemão.

Contudo, a partir da segunda metade do século XVIII, a situação muda radicalmente. A concepção teocentrista passa a ser questionada e, depois, desdenhada, cedendo lugar a uma postura naturalista. Nas palavras de Bisseret: “A relação dos homens com o mundo é modificada por esse domínio progressivo sobre a natureza: eles não esperam mais que Deus intervenha, por meio de milagres, no curso dos acontecimentos. O mundo físico e humano obedece a leis próprias, que a ciência deve descobrir. (…) As diferenças entre grupos humanos ou entre indivíduos são percebidas como contingentes e relativas ao meio físico ou social” [pp.34-35]

Essas ideias representam , além do desenvolvimento das ciências, uma mudança nas relações sociais, com o advento do individualismo e dos ideais de liberdade e igualdade. Fazendo parte, assim, da afirmação da burguesia como classe social, a palavra aptidão recebe outro sentido. Se ainda persistem certas “tendências naturais” que condicionam o destino dos indivíduos, estas podem ser modificadas pela educação, “(...)outrora 'dom divino' é agora considerada como resultado, sempre suscetível de mudança, do meio e da educação; mas ela também se tornou um valor em nome do qual se pode pretender certas funções sociais” [pp.35-37]


Com a Revolução Francesa ganham corpo projetos de estabelecimento de instituições escolares para todos. No século XIX, com a instrução pública obrigatória passa a existir certo ideal de minorar as desigualdades sociais através de uma base educacional comum . “Entretanto se as desigualdades reais subsistem nos fatos, o princípio da igualdade tornou-se um valor universalmente adotado. Substituindo formalmente a ideia de nascimento por direito divino, as noções de igualdade, de mérito, de aptidão, de competência e de responsabilidade individual tornaram-se elementos de uma ideologia global a qual o 'Povo' também adere.” [p. 37]

Dessa forma, o século XIX é atravessado por dois grupos em permanente conflito, a burguesia, detentora do poder, e o proletariado com a elaboração de vários projetos e ideologias revolucionárias. Dentro das discussões sobre a reforma do ensino, ainda muito elitizado, do dilema entre formação humanística ou científica, a problemática das aptidões ganha no significado, tornando-se “um dado imutável, permanente, hereditário, que determina o destino de um indivíduo; a aptidão perdeu o sentido de característica aleatória que, no século XVIII lhe conferia a ideia de liberdade humana e, antes do século XVIII, a ideia de liberdade divina.” [p.41]
Em meio a repressão aos movimentos revolucionários de 1848, a consolidação da Segunda Revolução Industrial, expansão do sistema bancário e financeiro, crescimento do comércio e dos meios de transporte e comunicação, a sociedade francesa e européiareflete esta complexidade com a rígida delimitação entre um ensino primário reservado às camadas populares, destinando os meninos a formação profissional, operária ou militar. E para as meninas, uma formação adequada à sua “natureza”, ou seja, o lar e as “atividades femininas”; enquanto o secundário, com caráter propedêutico, estava reservado às crianças da burguesia. “O sistema educacional, portanto, conserva ativamente as superioridades e privilégios da classe detentora do poder.” [p.43]


A partir do advento da Teoria da Evolução de Charles Darwin e sua apropriação por Gobineau na França, e Frances Galton, criador da eugenia e da psicologia diferencial, na Inglaterra, e outros pensadores racistas e eugenistas “as desigualdades sociais não são mais relativas a uma ordem social criada pelos homens, mas dependem de uma nova ordem transcendental, de natureza biológica, irredutível e determinante. (…) A dominação de uns por outros é, portanto natural, inevitável e legítima.” [p.43] Desse modo a educação deve ser adequada às diferentes classes sociais, segundo suas aptidões e necessidades, não sendo conveniente aos humildes uma formação mais sofisticada como a transmitida às crianças burguesas.

Com as teorias e procedimentos de Alfred Binet, que possuía um pensamento político mais a esquerda, certa noção de justiça social, de reorganização da sociedade, especialmente no tocante a relação patrão-operário, à maneira de Durkheim, a psicologia tende a se afirmar como uma ciência, fundamentando-se nos testes de medição de inteligência. Desconhecendo ou negando os determinantes sociais e ideológicos do saber científico, os psicólogos acreditavam estar contribuindo para uma reorganização da sociedade do final do século XIX, fundamentando a política escolar e a política de emprego. Todavia , existe um paradoxo, se num primeiro momento incentivou educadores liberais a reivindicarem o fim das distinções de origem social para o acesso ao ensino secundário e superior, “a ciência dos testes permite que duas exigências dificilmente conciliáveis se tornem compatíveis: de um lado a necessidade de oferecer a todos, oportunidades iguais e, de outro, a necessidade de manter as desigualdades de posição profissional e social.” [p.52]


Esse paradigma se consolida no século XX, não obstante as críticas e a existência de outros saberes relacionados ao psiquismo, como a psicanálise, as correntes culturalistas, a fenomenologia, a Gestalt, que não trabalham com o conceito de aptidão (ou pelo menos não lhe atribuem um peso tão imenso e categórico). O organicismo do século XIX, ainda predomina segundo novas reelaborações, colocando em segundo plano a menção a fatores do “meio” (sociais, culturais, políticos, ideológicos). Desse modo, a intenção da psicologia diferencial em dar um suporte científico, preciso e quantificável, ao conceito de aptidão consegue se firmar, ainda hoje, não obstante suas ambiguidades, como “um dos suportes de interpretação simbólica total que a sociedade se dá de sua ordenação e de seus próprios conflitos.” [p.67] A escola é um lugar de destaque destes procedimentos. Selecionando e orientando as crianças das classes pobres, que teriam aptidões menos “complexas”, embora mais “práticas” para determinados fins. Suas oportunidades de escolha e transformação já estariam circunscritas sob as bençãos da “diversidades de dons, talentos e vocações”. Naturalizando assim as relações entre os indivíduos, suas desigualdades sociais e conflitos de poder. Transformando em “fato” biológico (hereditário, neurológico...) o que é de campo de ação da prática política.

O texto de Bisseret é uma ótima introdução ao tema. Não tenho grandes reparos a fazer. Sobre o estado atual da arte mais recente não é difícil encontrar material. Este é o ponto de partida. Só faltou menção à psicologia genética de Jean Piaget. Como ela se encaixaria nisto tudo?

Bibliografia:
BISSERET, Noëlle “A ideologia das aptidões naturais.” tradução: Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Lúcia de Souza B. Pupo Tavares. In DURAND, José Carlos (org.) Educação e hegemonia de classes. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 pp.31-67

Um comentário:

Cine Clube Ybitu Katu disse...

Olá Marcelo! Nós do Cine Clube Ybitu Katu vimos o seu comentário mno post referente a crítica de A Palavra e ficamos muito felizes. Realmente, este filme é sensacional. Os textos do seu blog são maravilhosos! Parabéns! E obrigado por linkar o nosso blog no seu.
Um grande abraço!