O trabalho de Galileu
Galilei foi uma ruptura das teorias assentadas da física
aristotélica e seu confronto com a Inquisição romana da Igreja
Católica Romana costuma ser apresentado como o melhor exemplo de
conflito entre religião e ciência na sociedade ocidental.
O caso da condenação
de Galileu Galilei pelo Tribunal do Santo Ofício tornou-se
emblemático ao tratarmos da relação entre Ciência (ou ciências, no
plural) e Religião. O astrônomo e matemático seria um “mártir”
do conhecimento e da liberdade de expressão. Estão carregando nas
tintas neste interim, pois Galileu não sofreu violência física,
fora os constrangimentos jurídicos e burocráticos do processo.
Com o recrudescimento
do fundamentalismo religioso e a ascensão do ateísmo militante a
figura do sábio incompreendido e perseguido passa a ser reivindicada pelos dois lados. Por um
lado, a pessoa de Galileu mostra que a crença religiosa não é
incompatível com o trabalho científico (se é que foi algum dia).
Por outro lado, há o peso da instituição e da tradição sobre a
iniciativa do indivíduo.
Costuma-se evocar também Charles Darwin e Louis Pasteur. Todavia, os dois não sofreram perseguição institucional, mas enfrentaram polêmicas ásperas, entre seus pares e, no caso do naturalista inglês, as conhecidas controvérsias com os religiosos. Quanto ao cientista francês, costumava fazer uma separação preciosa entre os dois âmbitos, o científico e o sagrado. Há questionamentos se Pasteur praticava uma religiosidade católica, tradicional ou à sua maneira, ou ainda, se adotava um deísmo semelhante ao de alguns iluministas.
No geral trata-se de
uma guerra cultural alimentada de anacronismos, meias verdades,
informações distorcidas. Por um lado, é bobagem achar que todo religioso é uma pessoa sem senso crítico ou momentos de dúvida. Por outro lado, considerar que todo cético e ateísta é o supra-sumo da tolerância e racionalidade. Analisar a complexidade da conjuntura
histórica e forças envolvidas esclarece mais do que repetir slogans e
lugares comuns.
Negar aspectos
conflitivos entre as duas instâncias parece ingenuidade. Há que se
demarcar as diferenças entre os objetos e procedimentos dos dois
campos. Pode existir momentos de aproximação, quanto aos temas,
e certo diálogo (como no campo da bioética). Todavia, na contemporaneidade predomina a diferença
e separação. Há quem acredite em uma “idade do Ouro” das
relações entre ciência e religião situada antes da Renascença,
em Antiguidade idealizada ou num “Oriente” igualmente mitificado.
As transformações sociais e culturais da Modernidade configuraram a
distinção entre estas esferas. Não vejo mal algum nisto, ou
sentimento de “incompletude” (como se o tal homem integral
realmente existiu em algum lugar no tempo e espaço, fora de algum
discurso de sábios).
Transcrevo um texto
interessante e atualizado que sintetiza a questão, dentro do rigor
historiográfico, sem instrumentalizações de ambos os lados.
Recomendo ainda a leitura de
dois livros essenciais:
Galileu herético,
Pietro Redondi, Companhia das Letras,São Paulo, 1991. Fundamentado na descoberta de um documento inédito esquecido nos arquivos do Santo Ofício, em Roma, o historiador italiano Pietro Redondi reconstrói a história do julgamento de Galileu Galilei pelo Santo Ofício, no século XVII. Segundo o autor, Galileu não foi condenado por defender, ainda não abertamente, a teoria de Nicolau Copérnico – de que a Terra girava em torno do Sol –, mas por suas idéias de que a matéria não podia ser dividida indefinidamente e os átomos eram imutáveis. Ficava difícil explicar o dogma da Eucaristia, pelo qual o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Jesus Cristo. A denúncia de que Galileu era copernicano seria um expediente usado pelo papa Urbano VII, para protegê-lo de um julgamento muito mais severo.
Galileu: Pelo Copernicanismo e pela Igreja. São Paulo: Loyola, 2008, de Annibale Fantoli (italiano nascido na Líbia, mestre em Filosofia e Teologia, e doutor em Física e Matemática) apresenta uma síntese mais recente das discussões.São duas obras
documentalmente muito bem embasadas que esclarecem os diversos
aspectos do caso Galileu.
Há um artigo
provocador de Paul Feyerabend, intitulado "Galileu e a tirania da verdade" (da década de 1980, publicado na coleção de ensaios
Adeus à Razão. São Paulo: Editora Unesp, 2010). Remete um pouco a
Michel Foucault, quando este analisa o discurso da sexologia. Existe
um excesso de enunciações sobre o comportamento sexual,
pretensamente científicas e libertárias, mas que se tornam
impositivas e dogmáticas, constituindo um tipo de poder modelador de
modos de viver. Do mesmo modo o discurso totalizante de parte dos
cientistas ao evocar o domínio / controle total sobre a verdade e demais aspectos da realidade.
Torna-se um tipo de religião ou sistema totalizante que reivindica o monopólio das explicações e verdades. Assim para o filósofo da ciência, o
cardeal Bellarmino estava correto ao manter a prudência e resguardar
a tradição, enquanto Galileu não apresentou as provas
observacionais e matemáticas de forma mais conclusiva, segundo os
procedimentos da época. Não simpatizo muio com o anarquismo epistemológico de Feyerabend, mas o texto é muito instigante e altamente recomendável.
Por fim, o físico, filósofo e
sacerdote católico espanhol Mariano Artigas escreveu um artigo bem
esclarecedor, que pode ser lido aqui.
A condenação de Galileu
David Lindberg
A história da defesa
da cosmologia heliocêntrica de Copérnico por Galileu, que o levou a
um julgamento e condenação pela intolerante Igreja Católica,
tornou-se, para muitos, simbólica de um padrão duradouro da
hostilidade cristã em relação às conclusões científicas que
sejam inconsistentes com a interpretação literal da Bíblia.
Portanto, Galileu passou a ser visto como um mártir em um drama de
um luta perene. Contudo, quando os mitos são deixados à parte,
encontramos uma verdade muito mais complicada e muitíssimo mais
interessante do que os mitos que ela substitui.
Em 1611, Galileu
Galilei (1564-1642), professor de matemática na Universidade de
Pádua, no Norte da Itália, viajou para Roma a fim de apresentar seu
novo telescópio e as descobertas que fizera durante o seu uso. Suas
descobertas foram confirmadas e ele foi aclamado por diversos
dignatários, incluindo os astrônomos do Colégio dos Jesuítas, em
Roma. Contrariamente ao mito, Galileu não encontrou relutância por
parte dos membros da Igreja para olharem as novas maravilhas
celestiais em seu telescópio.
Algumas das descobertas
por meio do telescópio de Galileu contribuíram para a
plausibilidade do modelo heliocêntrico, mas houve preocupação com
relação à sua compatibilidade com as Escrituras
literalmente
interpretadas. Galileu argumentava que a Bíblia não era um livro
didático e que não deveria ser interpretada literalmente ao abordar
questões científicas. Entretanto, essa atitude exacerbou os
problemas de Galileu, pois ao levantar essas discussões, aos olhos
da Igreja, tratava-se de um leigo querendo interpretar as Escrituras
Sagradas, impensável!
Galileu retornou a
Roma, em 1615, para tentar apaziguar os ânimos e os ressentimentos
que queimavam em lenta combustão, assim como as manobras contra ele
que se davam nos bastidores. Nessa visita houveram possibilidades
frequentes de explicar o seu caso, aproveitando os jantares e outros
encontros sociais da intelligentsia romana. Passional,
arrogante e rápido para apresentar seus argumentos, Galileu indispôs
contra ele algumas pessoas cujos favores deveria estar cultivando.
Em 1616, o Tribunal da
Santa Inquisição completou sua revisão das acusações feitas
contra Galileu e o heliocentrismo. Ele foi intimado à residência do
cardeal Roberto Bellarmino (chefe do Tribunal da Santa Inquisição,
e o mais poderoso teólogo católico da sua época). Galileu foi
informado de que o modelo coperniciano fora considerado falso e
contrário às Escrituras Sagradas. Foi aconselhado a abandonar essas
teses e proibido de “mantê-las, ensiná-las ou defendê-las” de
qualquer maneira ou forma, seja verbalmente ou por escrito.
Os integrantes do
tribunal que decidiram o caso argumentaram que nem as observações
por meio do telescópio de Galileu nem a habilidade do modelo
heliocêntrico de fazer predições astronômicas precisas
constituíam prova de que o modelo coperniciano representava a
realidade física. Contra o heliocentrismo colocava-se, em primeiro
lugar, a tradição da Igreja, da qual o establishment
teológico romano não iria abrir mão, sem boa razão. Havia também
passagens bíblicas que aparentemente abordavam a questão
cosmológica, referindo-se aos movimentos do sol em vez de aos da
Terra.
Além disso, havia um
argumento filosófico amplamente aceito por astrônomos e membros da
hierarquia clerical – que os modelos astronômicos destinavam-se
meramente a predizer posições planetárias, sem a pretensão de
descrever a realidade física. Não se podia subir aos céus para
descobrir o que realmente estava se passando; apenas Deus sabia o
mecanismo que estava sob a superfície dos movimentos celestiais.
Galileu, entretanto, estava convencido de que era possível provar o
contrário por intermédio de sua teoria das marés. Ele argumentava
que o movimento das marés poderia ser apenas o resultado do
movimento duplo da Terra (que girava sobre o seu próprio eixo,
enquanto, ao mesmo tempo, girava em torno do sol), o que fazia com
que se movimentasse as águas para frente e para trás em seus
leitos.
As autoridades
eclesiásticas responderam que, na ausência de uma prova, não havia
razão para eles alterarem a interpretação tradicional, do senso
comum das Escrituras. A comunidade dos cientistas predominantemente
apoiava o modelo geocêntrico, e teria sido algo extraordinário para
a Igreja abandonar sua interpretação tradicional, o sendo comum e a
opinião da maioria científica para se atirar no sucesso solitário
de Galileu. Essa luta não colocou a Igreja contra Galileu e a
comunidade científica, mas Galileu e um pequeno grupo de discípulos
contra a Igreja e a maior parte da comunidade científica.
Em 1623, foi eleito um
novo papa – Urbano VIII. Esse foi um golpe de sorte, pois ele era
considerado um moderado com relação à questão do heliocentrismo;
além disso, Galileu tinha um passado de relações amistosas com
ele. Urbano acreditava que os humanos eram, em princípio, incapazes
de alcançar a certeza com relação às matérias cosmológicas, mas
permitiu que Galileu examinasse os prós e os contras do
heliocentrismo em um livro, desde que não defendesse a sua verdade.
Galileu pôs-se a trabalhar em sua obra Diálogo sobre os dois
máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, cujo original
foi publicado em 1632. no livro ele apresentou argumentos longos e
poderosos a favor do heliocentrismo, indiscutivelmente defendendo-o
como verdadeiro. Na página final do livro, Galileu colocou a
admoestação do papa sobre o caráter hipotético do heliocentrismo
na boca de Simplício, o obtuso personagem ridicularizado por
Aristóteles em sua obra Diálogo.
O livro foi um sucesso
instantâneo. Urbano descobriu suas palavras na boca de Simplício e
ficou convencido de que Galileu tinha traído sua confiança e o
ridicularizado. Tal insubordinação não poderia ser relevada, e era
inevitável que a máquina da Inquisição fosse acionada contra
Galileu.
Ele foi acusado de
violar a injunção de 1616, que o proibia de manter ou defender o
modelo heliocêntrico; e deveria ficar claro para todos os
interessados que ele era culpado. Galileu foi forçado a se retratar.
Nos últimos dez anos de sua vida, permaneceu recolhido em casa, sob
prisão domiciliar, confortavelmente hospedado em uma casa de campo,
bem próxima a Florença, com poucas restrições quanto a quem podia
entrar e sair. Nunca foi torturado ou aprisionado – foi
simplesmente silenciado.
O que podemos aprender
com essa história? O resultado do affair de Galileu foi um
evento inesperado, poderosamente influenciado por circunstâncias
locais que desrespeitavam atores históricos – medo, inveja,
vingança, ganância, preconceito, ambição, personalidade,
rivalidade, alianças e contexto político. A personalidade de
Galileu avulta-se muito na história. Se ele tivesse aprendido
diplomacia, se tivesse andado de forma lenta, se dispusesse a se
comprometer e compreendesse o valor da retirada estratégica, é
provável que poderia ter empreendido uma significativa campanha
sobre o comportamento do heliocentrismo sem ser condenado.
Foi essa uma batalha
entre o Cristianismo e a Ciência, um episódio na suposta guerra
entre Ciência e Religião – visão que dominava a compreensão do
caso Galileu? De fato, cada um dos atores se autodenominava cristão.
Cada um deles reconhecia a autoridade da Bíblia e também tinha uma
visão cosmológica bem considerada. Bellarmino, na verdade, tinha
ensinado astronomia na Universidade de Louvain quando jovem e
compreendia totalmente as questões. A batalha se revela não ser
entre Ciência e Cristianismo, mas dentro do próprio Cristianismo:
entre teorias antagônicas de interpretação bíblica – uma
progressiva, a outra tradicional; e dentro da Ciência, entre
proponentes das cosmologias competitivas. As frentes de batalha
simplesmente não recaíam na linha divisória entre Ciência e
Religião.
David Lindberg,
professor emérito em História da Ciência no Departamento de
História da Ciência, University of Wisconsin-Madison, EUA.
Fonte: HILL, Jonathan História do Cristianismo. São Paulo: Rosari,2008 pp. 244-245
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