domingo, 6 de maio de 2012

A condenação de Galileu: elementos para um breve dossiê.




O trabalho de Galileu Galilei foi uma ruptura das teorias assentadas da física aristotélica e seu confronto com a Inquisição romana da Igreja Católica Romana costuma ser apresentado como o melhor exemplo de conflito entre religião e ciência na sociedade ocidental.

O caso da condenação de Galileu Galilei pelo Tribunal do Santo Ofício tornou-se emblemático ao tratarmos da relação entre Ciência (ou ciências, no plural) e Religião. O astrônomo e matemático seria um “mártir” do conhecimento e da liberdade de expressão. Estão carregando nas tintas neste interim, pois Galileu não sofreu violência física, fora os constrangimentos jurídicos e burocráticos do processo.

Com o recrudescimento do fundamentalismo religioso e a ascensão do ateísmo militante a figura do sábio incompreendido e perseguido passa a ser reivindicada pelos dois lados. Por um lado, a pessoa de Galileu mostra que a crença religiosa não é incompatível com o trabalho científico (se é que foi algum dia). Por outro lado, há o peso da instituição e da tradição sobre a iniciativa do indivíduo.
Costuma-se evocar também Charles Darwin e Louis Pasteur. Todavia, os dois não sofreram perseguição institucional, mas enfrentaram polêmicas ásperas, entre seus pares e, no caso do naturalista inglês, as conhecidas controvérsias com os religiosos. Quanto ao cientista francês, costumava fazer uma separação preciosa entre os dois âmbitos, o científico e o sagrado. Há questionamentos se Pasteur praticava uma religiosidade católica, tradicional ou à sua maneira, ou ainda, se adotava um deísmo semelhante ao de alguns iluministas.
No geral trata-se de uma guerra cultural alimentada de anacronismos, meias verdades, informações distorcidas. Por um lado, é bobagem achar que todo religioso é uma pessoa sem senso crítico ou momentos de dúvida. Por outro lado, considerar que todo cético e ateísta é o supra-sumo da tolerância e racionalidade. Analisar a complexidade da conjuntura histórica e forças envolvidas esclarece mais do que repetir slogans e lugares comuns.

Negar aspectos conflitivos entre as duas instâncias parece ingenuidade. Há que se demarcar as diferenças entre os objetos e procedimentos dos dois campos. Pode existir momentos de aproximação, quanto aos temas, e certo diálogo (como no campo da bioética). Todavia, na contemporaneidade predomina a diferença e separação. Há quem acredite em uma “idade do Ouro” das relações entre ciência e religião situada antes da Renascença, em Antiguidade idealizada ou num “Oriente” igualmente mitificado. As transformações sociais e culturais da Modernidade configuraram a distinção entre estas esferas. Não vejo mal algum nisto, ou sentimento de “incompletude” (como se o tal homem integral realmente existiu em algum lugar no tempo e espaço, fora de algum discurso de sábios). 

Transcrevo um texto interessante e atualizado que sintetiza a questão, dentro do rigor historiográfico, sem instrumentalizações de ambos os lados.

Recomendo ainda a leitura de dois livros essenciais:

Galileu herético, Pietro Redondi, Companhia das Letras,São Paulo, 1991. Fundamentado na descoberta de um documento inédito esquecido nos arquivos do Santo Ofício, em Roma, o historiador italiano Pietro Redondi reconstrói a história do julgamento de Galileu Galilei  pelo Santo Ofício, no século XVII. Segundo o autor, Galileu não foi condenado por defender, ainda não abertamente, a teoria de Nicolau Copérnico – de que a Terra girava em torno do Sol –, mas por suas idéias de que a matéria não podia ser dividida indefinidamente e os átomos eram imutáveis. Ficava difícil explicar o dogma da Eucaristia, pelo qual o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Jesus Cristo. A denúncia de que Galileu era copernicano seria um expediente usado pelo papa Urbano VII, para protegê-lo de um julgamento muito mais severo.
Galileu: Pelo Copernicanismo e pela Igreja. São Paulo: Loyola, 2008, de Annibale Fantoli (italiano nascido na Líbia, mestre em Filosofia e Teologia, e doutor em Física e Matemática) apresenta uma síntese mais recente das discussões.São duas obras documentalmente muito bem embasadas que esclarecem os diversos aspectos do caso Galileu.

Há um artigo provocador de Paul Feyerabend, intitulado "Galileu e a tirania da verdade" (da década de 1980, publicado na coleção de ensaios Adeus à Razão. São Paulo: Editora Unesp, 2010). Remete um pouco a Michel Foucault, quando este analisa o discurso da sexologia. Existe um excesso de enunciações sobre o comportamento sexual, pretensamente científicas e libertárias, mas que se tornam impositivas e dogmáticas, constituindo um tipo de poder modelador de modos de viver. Do mesmo modo o discurso totalizante de parte dos cientistas ao evocar o domínio / controle total sobre a verdade e demais aspectos da realidade. Torna-se um tipo de religião ou sistema totalizante  que reivindica o monopólio das explicações e verdades. Assim para o filósofo da ciência, o cardeal Bellarmino estava correto ao manter a prudência e resguardar a tradição, enquanto Galileu não apresentou as provas observacionais e matemáticas de forma mais conclusiva, segundo os procedimentos da época. Não simpatizo muio com o anarquismo epistemológico de Feyerabend, mas o texto é muito instigante e altamente recomendável.

Por fim, o físico, filósofo e sacerdote católico espanhol Mariano Artigas escreveu um artigo bem esclarecedor, que pode ser lido aqui.



A condenação de Galileu
David Lindberg

A história da defesa da cosmologia heliocêntrica de Copérnico por Galileu, que o levou a um julgamento e condenação pela intolerante Igreja Católica, tornou-se, para muitos, simbólica de um padrão duradouro da hostilidade cristã em relação às conclusões científicas que sejam inconsistentes com a interpretação literal da Bíblia. Portanto, Galileu passou a ser visto como um mártir em um drama de um luta perene. Contudo, quando os mitos são deixados à parte, encontramos uma verdade muito mais complicada e muitíssimo mais interessante do que os mitos que ela substitui.
Em 1611, Galileu Galilei (1564-1642), professor de matemática na Universidade de Pádua, no Norte da Itália, viajou para Roma a fim de apresentar seu novo telescópio e as descobertas que fizera durante o seu uso. Suas descobertas foram confirmadas e ele foi aclamado por diversos dignatários, incluindo os astrônomos do Colégio dos Jesuítas, em Roma. Contrariamente ao mito, Galileu não encontrou relutância por parte dos membros da Igreja para olharem as novas maravilhas celestiais em seu telescópio.
Algumas das descobertas por meio do telescópio de Galileu contribuíram para a plausibilidade do modelo heliocêntrico, mas houve preocupação com relação à sua compatibilidade com as Escrituras
literalmente interpretadas. Galileu argumentava que a Bíblia não era um livro didático e que não deveria ser interpretada literalmente ao abordar questões científicas. Entretanto, essa atitude exacerbou os problemas de Galileu, pois ao levantar essas discussões, aos olhos da Igreja, tratava-se de um leigo querendo interpretar as Escrituras Sagradas, impensável!
Galileu retornou a Roma, em 1615, para tentar apaziguar os ânimos e os ressentimentos que queimavam em lenta combustão, assim como as manobras contra ele que se davam nos bastidores. Nessa visita houveram possibilidades frequentes de explicar o seu caso, aproveitando os jantares e outros encontros sociais da intelligentsia romana. Passional, arrogante e rápido para apresentar seus argumentos, Galileu indispôs contra ele algumas pessoas cujos favores deveria estar cultivando.
Em 1616, o Tribunal da Santa Inquisição completou sua revisão das acusações feitas contra Galileu e o heliocentrismo. Ele foi intimado à residência do cardeal Roberto Bellarmino (chefe do Tribunal da Santa Inquisição, e o mais poderoso teólogo católico da sua época). Galileu foi informado de que o modelo coperniciano fora considerado falso e contrário às Escrituras Sagradas. Foi aconselhado a abandonar essas teses e proibido de “mantê-las, ensiná-las ou defendê-las” de qualquer maneira ou forma, seja verbalmente ou por escrito.
Os integrantes do tribunal que decidiram o caso argumentaram que nem as observações por meio do telescópio de Galileu nem a habilidade do modelo heliocêntrico de fazer predições astronômicas precisas constituíam prova de que o modelo coperniciano representava a realidade física. Contra o heliocentrismo colocava-se, em primeiro lugar, a tradição da Igreja, da qual o establishment teológico romano não iria abrir mão, sem boa razão. Havia também passagens bíblicas que aparentemente abordavam a questão cosmológica, referindo-se aos movimentos do sol em vez de aos da Terra.
Além disso, havia um argumento filosófico amplamente aceito por astrônomos e membros da hierarquia clerical – que os modelos astronômicos destinavam-se meramente a predizer posições planetárias, sem a pretensão de descrever a realidade física. Não se podia subir aos céus para descobrir o que realmente estava se passando; apenas Deus sabia o mecanismo que estava sob a superfície dos movimentos celestiais. Galileu, entretanto, estava convencido de que era possível provar o contrário por intermédio de sua teoria das marés. Ele argumentava que o movimento das marés poderia ser apenas o resultado do movimento duplo da Terra (que girava sobre o seu próprio eixo, enquanto, ao mesmo tempo, girava em torno do sol), o que fazia com que se movimentasse as águas para frente e para trás em seus leitos.
As autoridades eclesiásticas responderam que, na ausência de uma prova, não havia razão para eles alterarem a interpretação tradicional, do senso comum das Escrituras. A comunidade dos cientistas predominantemente apoiava o modelo geocêntrico, e teria sido algo extraordinário para a Igreja abandonar sua interpretação tradicional, o sendo comum e a opinião da maioria científica para se atirar no sucesso solitário de Galileu. Essa luta não colocou a Igreja contra Galileu e a comunidade científica, mas Galileu e um pequeno grupo de discípulos contra a Igreja e a maior parte da comunidade científica.
Em 1623, foi eleito um novo papa – Urbano VIII. Esse foi um golpe de sorte, pois ele era considerado um moderado com relação à questão do heliocentrismo; além disso, Galileu tinha um passado de relações amistosas com ele. Urbano acreditava que os humanos eram, em princípio, incapazes de alcançar a certeza com relação às matérias cosmológicas, mas permitiu que Galileu examinasse os prós e os contras do heliocentrismo em um livro, desde que não defendesse a sua verdade. Galileu pôs-se a trabalhar em sua obra Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, cujo original foi publicado em 1632. no livro ele apresentou argumentos longos e poderosos a favor do heliocentrismo, indiscutivelmente defendendo-o como verdadeiro. Na página final do livro, Galileu colocou a admoestação do papa sobre o caráter hipotético do heliocentrismo na boca de Simplício, o obtuso personagem ridicularizado por Aristóteles em sua obra Diálogo.
O livro foi um sucesso instantâneo. Urbano descobriu suas palavras na boca de Simplício e ficou convencido de que Galileu tinha traído sua confiança e o ridicularizado. Tal insubordinação não poderia ser relevada, e era inevitável que a máquina da Inquisição fosse acionada contra Galileu.
Ele foi acusado de violar a injunção de 1616, que o proibia de manter ou defender o modelo heliocêntrico; e deveria ficar claro para todos os interessados que ele era culpado. Galileu foi forçado a se retratar. Nos últimos dez anos de sua vida, permaneceu recolhido em casa, sob prisão domiciliar, confortavelmente hospedado em uma casa de campo, bem próxima a Florença, com poucas restrições quanto a quem podia entrar e sair. Nunca foi torturado ou aprisionado – foi simplesmente silenciado.
O que podemos aprender com essa história? O resultado do affair de Galileu foi um evento inesperado, poderosamente influenciado por circunstâncias locais que desrespeitavam atores históricos – medo, inveja, vingança, ganância, preconceito, ambição, personalidade, rivalidade, alianças e contexto político. A personalidade de Galileu avulta-se muito na história. Se ele tivesse aprendido diplomacia, se tivesse andado de forma lenta, se dispusesse a se comprometer e compreendesse o valor da retirada estratégica, é provável que poderia ter empreendido uma significativa campanha sobre o comportamento do heliocentrismo sem ser condenado.
Foi essa uma batalha entre o Cristianismo e a Ciência, um episódio na suposta guerra entre Ciência e Religião – visão que dominava a compreensão do caso Galileu? De fato, cada um dos atores se autodenominava cristão. Cada um deles reconhecia a autoridade da Bíblia e também tinha uma visão cosmológica bem considerada. Bellarmino, na verdade, tinha ensinado astronomia na Universidade de Louvain quando jovem e compreendia totalmente as questões. A batalha se revela não ser entre Ciência e Cristianismo, mas dentro do próprio Cristianismo: entre teorias antagônicas de interpretação bíblica – uma progressiva, a outra tradicional; e dentro da Ciência, entre proponentes das cosmologias competitivas. As frentes de batalha simplesmente não recaíam na linha divisória entre Ciência e Religião.

David Lindberg, professor emérito em História da Ciência no Departamento de História da Ciência, University of Wisconsin-Madison, EUA.

Fonte: HILL, Jonathan História do Cristianismo. São Paulo: Rosari,2008 pp. 244-245


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