sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Ódio ou arte? Em torno de uma charge de Glenn Mccoy.



A charge do cartunista norte-americano Glenn Mccoy lembra uma provocativa instalação de arte contemporânea; em especial A fonte, de Marcel Duchamp (1882-1968). Trata-se, como se pode observar acima, de um espaço ocupado por dois vasos sanitários, lado a lado. No da esquerda, um exemplar do Corão está mergulhado quase até a metade. Acima, encontra-se a inscrição “Crime de ódio”, feita na parede, de forma que remete a um grafite, com a tinta ainda escorrendo, dada a urgência com que foi escrita. No da direita, uma Bíblia Sagrada se encontra na mesma situação. Acima, dentro de uma bela moldura, está escrito “Arte”, em caracteres trabalhados, com serifas.

 Muitas perguntas e reflexões podem ser feitas a partir da leitura desta imagem. Qual a finalidade dela? Qual é a intenção do ilustrador? A quem se destina? Por que, se são situações semelhantes, numa está marcado ódio e na outra assinalado arte? Neste caso, quem define o que é “ódio” e o que é “arte”? Se um cartunista muçulmano fizesse algo semelhante, invertendo os sinais, como seria tratado? Ou ainda, este iconoclasta, dentro de seu país, teria a liberdade de satirizar sua religião? Receberia apoio dos “bem pensantes” caso fosse cerceado e perseguido? Enfim, quais são os limites da liberdade de expressão? 

 Por que afirmar, tão categoricamente, que a imagem da esquerda evoca “ódio”? Sentimento este que vai além da esfera religiosa envolvida; abarca a dimensão da etnicidade, política, modos de vida. Lembrando que as duas tradições religiosas tem origens comuns, embora constituam cosmovisões distintas, que se formaram ao longo dos séculos, com desdobramentos específicos e povos destas duas tradições travaram  relações interculturais (ainda que não necessariamente cordiais e pacíficas). Seria desnecessário lembrar, que a palavra revelada2 tem importância capital em ambas, com as devidas particularidades. Como é sabido, encontramos muçulmanos vivendo entre nós, aqui no chamado Ocidente, seja pela via da imigração e, ao mesmo tempo, ocidentais (sejam de origem cristã, agnóstica e outras) que abraçam a fé islâmica de livre vontade, enquanto africanos e asiáticos, criados no Islã, aderem às várias ramificações do Cristianismo com igual fervor.

 Complicando a minha reflexão: por que aparenta uma certa “naturalidade”, para muitos, acreditar que o Corão mergulhado na latrina representa uma odiosa expressão de “islamofobia”, enquanto a Bíblia no mesmo suporte é vista como algo irreverente, de saudável atividade criativa, exemplo da liberdade de expressão que existe em boa parte do Ocidente. E não uma manifestação de “cristianofobia”? Cristãos de extrema direita reclamam de “cristianofobia” (termo tão vago e abrangente quanto “islamofobia”, por hora não vou discutir seu significado) enquanto manisfestam, mal dissimuladamente, um desprezo pelo diferente e mesmo, pelas regras do discurso democrático (recorrendo as mais variadas teorias conspiratórias). Fundamentalistas muçulmanos agem de maneira análoga. 

 Vale ressaltar que o Islã, tal como o Cristianismo, não é um bloco monolítico. Em tese, há várias maneiras de ser muçulmano. Várias escolas de interpretação da lei. Todavia, determinados grupos parecem monopolizar esta tradição, cerceando vozes divergentes1. A mídia do nosso lado do mundo também contribui para a criação de estereótipos, apresentando os muçulmanos como intolerantes, extremistas, numa desumanização típica das táticas de guerra. Porém, criticar representações caricatas, não equivale a virar costas a problemas graves nestas sociedades. Não é pecado criticar o Islã, ou qualquer religião, filosofia, corrente estética.... O crítico deve assumir responsabilidade por suas considerações (e é preferível que tenha conhecimento de causa dos assuntos sobre os quais discorre). Se o tom de sua intervenção é irônico, seco, duro ou suave, ao meu ver é algo secundário.  

 A imagem do vaso sanitário carrega um simbolismo forte, relacionado processos fisiológicos, como a defecação. No sentido figurado remete à falta de asseio, acúmulo de sujeira, imundície, lodo, sentimentos de repulsa... Algo semelhante ao saco / lata de lixo. Lembrar da célebre expressão “Lata de Lixo da História”. O ato de puxar / acionar a descarga também tem seu valor metafórico: algo como se livrar de coisas indesejáveis, asquerosas, segredos, sentimentos, memórias. Objetos que não servem mais ou cuja presença é incômoda e deletéria. Igualmente comum é o expediente que os contraventores utilizam: queimar/picotar documentos comprometedores, atirá-los na privada e dar descarga... Na defecação, eliminamos produtos que não servem mais ao corpo (e que podem ser prejudiciais à saúde, se acumulados). 

Pode-se fazer uma leitura diferente. Nesse caso, a Bíblia representa não necessariamente os diversos livros que a compõem, mas as muitas ramificações do Cristianismo com suas doutrinas específicas, cujos dogmas já não servem mais vida das pessoas, tornaram-se asfixiante. Daí a necessidade de ser descartada... Neste caso, estamos evacuando elementos ignóbeis e vis do cristianismo, tais como a intolerância, o exclusivismo, a arrogância, o recurso à violência, seja física ou simbólica, o sexismo, o moralismo. 
Todavia, para muitos, a imagem é bastante explicita. O que vai na latrina é o livro sagrado propriamente dito, sem maiores sutilezas, e com tudo que é valioso para a fé destas pessoas.

 Por outro lado, o Islã seria todo bondade e tolerância. O Corão nunca é lido equivocadamente, a favorecer o interesse de certas facções, distorcido a ponto de instilar o ódio, preconceito e tirania. Não possui passagens cuja interpretação carrega ambiguidades; assim como se fez (e ainda se faz) na Cristandade. No entanto, existem cristãos esclarecidos e ponderados. Dispostos ao diálogo com o outro. Aceitam criticamente alguns valores da Modernidade, enquanto criticam outros de forma coerente e fundamentada. Que reconhecem os equívocos que sua religião pode promover e os valores nobres que acompanham a trajetória do pensamento cristão. Estes não tem o direito a se indignar com a forma que a Bíblia foi representada na imagem? Não seria igualmente um tipo de “crime de ódio”? 

 Como se pode notar, há diversos níveis de interpretação. E que a imagem dos livros sagrados na latrina não são necessariamente algo literal. Mas nem todos possuem (ou estão interessados em utilizá-las, quando não é conveniente) estas sutilezas interpretativas. Logo, a profusão de mal-entendidos. Mal-entendidos estes, que são gerados por estereótipos: todo cristão seria intolerante, inculto, defensor de uma postura anti-intelectualista, não possui dúvidas no tocante a sua fé, extremista em termos de comportamento e moralidade... Do mesmo modo toda a história do Cristianismo se resumiria em arbitrariedade e obscurantismo (perseguição aos hereges, Cruzadas, Inquisição, repressão sexual, Index Librorum Prohibitorum ).

 Não se trata de negar eventos que consideramos equivocados, dentro de uma perspectiva histórica, na trajetória da Cristandade. O problema está na perspectiva em preto e branco, seletiva, que ignora (deliberadamente?) a complexidade da história. Para ser justo, temos que pesar os dois monoteísmos na balança. Ambos possuem facetas de luz e sombre (e muitas gradações de cinza). A tonalidade apenas negativa sobre o Cristianismo mascara certa complacência frente ao Islã, que também perpetrou (e ainda promove, por meio de alguns autodenominados representantes) elementos de barbárie, assim como alguns cristãos em nome de sua fé. Não há inocência em lado algum.

 Há quem qualifique esta imagem de “racista”. Entretanto, a questão do racismo parece mais um elemento retórico que não se sustenta, pois existem cristãos e muçulmanos de quase todas as etnias possíveis. O que existe é um conflito em torno de valores éticos e culturais; além da questão do estatuto do indivíduo em cada cultura. No Ocidente, na maioria dos casos, há a afirmação da autonomia do sujeito (que não é absoluta e divorciada das relações intersubjetivas), sua liberdade de escolha, direitos e deveres. Nas sociedades islâmicas a questão é colocada de outra maneira: a liberdade do indivíduo é delimitada pelos valores da comunidade e leis religiosas.

Existe a questão da má consciência ocidental. As feridas deixadas pelo imperialismo, neocolonialismo, eurocentrismo, darwinismo social, eugenia são de difícil cicatrização (e algumas marcas nunca serão removidas) tanto nas próprias sociedades do Ocidente, como na África, Ásia e Oceania. Todavia, a forma de gerenciar esta culpa pode ser equivocada, gerando um autodesprezo frente a própria cultura ocidental, como se nosso legado se resumisse apenas num desfile de barbárie. Só invertemos o lado da moeda. A degradação de nós mesmos e a idealização da alteridade, esta dotada de todas as virtudes, e eventuais defeitos são relevados. 

 Há um elemento muito pouco abordado em meios laicos e na grande imprensa; que é sobre a situação das minorias cristãs em países de religião predominantemente muçulmana. Vejo um grande mal-estar do ocidente secular e progressista em torno deste assunto, que não está fundamentado em boatos ou teses conspiratórias,mas na realidade, tocando o nervo delicado do relativismo cultural, direitos humanos e soberania das nações. Finalmente há o fator 11/09/2001, acontecimento que não pode ser olvidado. Apresentou o enigma Islã3 para o mundo de forma definitiva. Sua diversidade de situações, legado religioso, filosófico, científico, artístico e literário, assim como a inegável presença do fundamentalismo religioso, do Talibã ao rígido e implacável Wahabismo saudita. Dados como o exclusivismo religioso (igualmente rígido e totalizante quanto seus congêneres cristão e judaico), a questão feminina (apartheid de gêneros, crimes de honra, desigualdade e ausência de direitos), tratamento dispensado aos homossexuais, minorias religiosas etc. Os recorrentes morticínios de cristãos na Nigéria estão longe de serem casos pontuais. Todavia, como o tema fica quase restrito à mídia cristã (e setores conservadores, que nem sempre estão preocupados com estas pessoas, mas muitas vezes apenas para provocar a esquerda e obter ganhos políticos).

 A guisa de conclusão: a charge4 é uma forma crítica a um padrão duplo, da extrema sensibilidade do politicamente correto frente ao Islã, ainda que, em nome dessa civilização se cometam as mesmas coisas que são tidas como condenáveis, caso praticadas por cristãos de diversas denominações (os já referidos acima, intolerância, sexismo, exclusivismo, desrespeito aos direitos civis...). Todavia, a noção de tolerância absoluta minimiza esses fatos.  Novamente entra a questão das diferenças entre Ocidente e Oriente no tocante a liberdades de expressão e temas correlacionados. Porém, um item é inegociável: A liberdade de crítica e expressão não pode ser policiada. No caso da propagação de preconceitos e difamações existem medidas legais. Os limites entre humor e agressão são tênues, mas não servem para justificar retrocessos em nome do respeito ao outro. Uma comunidade dialógica pode criar certos consensos, valores universalizáveis; afinal o ser humano é um só, seja em qualquer canto da Terra. Ele ou ela sentem dor tanto na África, quanto na Europa, Américas, Ásia … No entanto respeito mútuo sem conflitos, sem manifestação livre de divergências, ponderações ou concordâncias (totais, parciais...) não existe. É uma utopia (bem autoritária, pois sufoca a expressão individual). O que se pode é gerenciar estas tensões sem que exista possibilidade de recurso à violência. 

 As religiões não são estruturas inertes feitas por paredes de templos e páginas de livros, mas criadas por seres humanos e suas relações no palco da história. Somos livres para criticar, aceitar, debater racionalmente. 

 Notas: 

 1. Ouvi algo mais ou menos assim, da escritora iraniana Azar Nafisi, na ocasião de uma palestra na Bienal do Livro de São Paulo, em 2010. 
 2.O Catolicismo se apoia na tríade Tradição, Revelação e Magistério, onde há ampla margem para discussão, o livro portanto não é determinante. Quanto ao Sola Scriptura dos reformados, o conflito ainda é maior, pois a Bíblia é considerada a única fonte da verdade, inquestionável (no sentido de que tudo é verídico e deve ser acatado), ainda que deva ser devidamente interpretada (todavia, a interpretação é uma espécie de questionamento, de forma que existem interpretações mais abalizadas que outras, pode-se falar em interpretação oficial e autorizada das instituições/igrejas). No caso do Corão, este é a fonte da Sharia, ou seja, a lei de Deus, matriz da vida muçulmana.   Vale destacar um outro elemento: no ocidente a religião tornou-se algo relacionado a vida particular do indivíduo, não obstante a atuação grupos mais tradicionalistas e fundamentalistas, e oportunismo de alguns políticos, o poder das religiões em ditarem normas para a sociedade de forma mais abrangente é bastante limitado. No Islã o quadro é bastante diferente: o peso da Lei, que não nos esqueçamos, foi ditada à Muhammad (e há diferenças nodais entre revelada e ditada, a revelação do Antigo Testamento comporta uma dimensão histórica, enquanto o Islã é extremamente legalista na aplicação do que consideram leis divinas).    
 3. Para mim o Islã é um enigma no sentido de algo de difícil apreensão. Certos conceitos permanecem fluídos e obscuros. Ambíguos, por mais que se afirme o contrário; também ligado à questão do relativismo cultural, que abordarei numa próxima postagem, dedicada ao véu. 
 4. Ao que parece esta charge não é tão popular quanto a do cartunista dinamarquês Kurt Westergaard que, em setembro de 2005, publicou charge com o profeta Muhammad utilizando turbante em forma de bomba. Foi condenado à morte por extremistas muçulmanos. Até hoje continua sob proteção policial, tornando-se uma espécie de prisioneiro em seu próprio país. Ao que parece, não compreenderam o significado iconológico da caricatura, que não é um ataque direto à pessoa do profeta, mas sim uma reflexão em torno do que se faz com suas palavras. Vale ressaltar que a representação do rosto do profeta é proibida pelo Corão, mesmo que de forma não ofensiva. Todavia há correntes que afirmam que representar sua figura não é ilícita. Fato que não é difícil de verificar, pesquisando a iconografia islâmica. De modo que a questão da representação ou não do profeta acaba dependendo da interpretação do Corão que se faz... Uma reflexão interessante pode ser encontrada em: http://www.icarabe.org/noticias/charges-de-muhammad-desencadeiam-protestos-que-expoem-situacao

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