sábado, 25 de julho de 2009

Uma leitura do "Navio de Emigrantes".


A cada vez que é apreciada, vista e revista, a pintura "Navio de Emigrantes" de Lasar Segall (1891-1957) provoca impressões das mais contraditórias. Sentimentos de desalento, fragilidade e melancolia e, ao mesmo tempo um tênue fio de esperança com relação ao futuro dessas vidas tão precárias, que planejam começar tudo de novo em meio à destruição e saudade. Este entrelaçamento de sensações perpassa a mente do espectador.


"Navio de Emigrantes" é constituído por um corte da proa de uma embarcação sobre um fundo verde ondulado representando o mar, e uma sutil linha branca separando os dois espaços. A proa do navio destaca-se por sua significativa forma oval. Elipse protetora e que ao mesmo tempo aprisiona mais de uma centena de pessoas empilhadas ao longo deste espaço, dividido por linhas diagonais. Vigas de poder ambíguo, que delimitam espaços e desconstroem as situações.


O artista evita tonalidades quentes, construindo um colorido triste e silencioso, em tons terra e areia, evocando a proximidade da terra, que ainda não pode ser avistada do navio, numa variedade de marrons, cinzas, ocres e amarelos. Composição sem contrastes violentos, destacando certa luminescência dos rostos rosados e tristes e uns poucos detalhes brancos e tonalidades mais claras nas roupas dos emigrantes (onde predomina a cor de terra) chegando a ensaiar uma tímida luminosidade. Todavia um tom sombrio prevalecerá neste palco de dramaticidade tensa, porém contida.


Nesse cenário estão casais, famílias com crianças pequenas, anciães. uma variedade de tipos e faixas etárias e pessoas solitárias, porém sobressaindo uma presença maior de figuras femininas e maternais, sempre presentes na obra de Lasar Segall. De qualquer formas todos estão tentando se acomodar da melhor maneira possível: ajoelhados, sentados no chão ou em cima de sua bagagem, acocorados, encostados na parede, apoiando-se em seus pertences ou, recostados nas poucas cadeiras que existem, deitados em lonas estendidas no chão, ou em camas improvisadas em cima de caixas... Tudo em meio de cordas, correntes, barris, caixotes e metais num ambiente soturno e insalubre.


Muitos estão em repouso, exaustos, outros debruçados na amurada esquerda do navio. Todos de cabeças baixas, com os olhos fechados, lábios cerrados e ombros caídos; expressões cansadas, combalidas e melancólicas.


Rostos tensos, corpos frágeis e arredondados, guardando uma certa tridimensionalidade escultórica. Apesar de tudo, sempre conservando certa delicadeza e serenidade estóicas; entranhados num sonho interior.


O que estão sonhando? Um mundo melhor, sem miséria, violência, "pogroms" e outras manifestações de intolerância? Um lugar para onde não estariam viajando de maneira forçada, apenas para salvarem suas vidas (tanto no aspecto físico, quanto espiritual), a conhecer um universo estranho, o outro de maneira desigual e humilhante, sem contato entre civilizações de forma igualitária e afetiva, desarmada de constrangimentos? Estariam com saudades de sua terra natal, que provavelmente jamais voltarão a ver? Ou estariam, em seu íntimo, lutando para esquecê-la? Dentro deste útero imenso, que mundo novo estaria sendo gestado e surgiria através de um parto difícil, porém inadiável...


A identidade de emigrantes une e dá coesão a todas estas pessoas. Universaliza, sem padronizar, todas as particularidades culturais e religiosas. Não devem ser vistas apenas como representação de um grupo étnico. Naturalmente a pintura possui caráter autobiográfico. A condição judaica do artista, perseguições políticas e religiosas que ele presenciou e sofreu nas primeiras décadas do século XX. Inspirado em experiência pessoal, anotações de viagens e numa série de gravuras de metal, feitas entre 1928 e 1938 sobre os vários ângulos deste tema e, que serviram de ensaio para esta pintura. Produzida entre 1939 e 1941, início da II Guerra Mundial, evoca um genocídio que já havia começado havia muito tempo e que sempre foi denunciado em sua obra. Entretanto "Navio de Emigrantes" universaliza o tema, sintetizando de forma contundente aspectos da experiência autoritária do começo do século XX.


Os emigrantes não estão coisificados, despersonalizados. Apesar da fragmentação e da ausência de privacidade que as linhas e o espaço impõem estes personagens anônimos possuem subjetividade, sofrem, desejam, sentem frio e fome, dor e alegria. Tentam manter uma sociabilidade possível, mesmo imersos em seu mundo interior, lutando para acordar de um pesadelo que parece interminável e não chegarem derrotados ao seu destino incerto. Um homem toca alaúde, introspectivo, quase sozinho, absorvido pelas melodias de sua terra natal. Entretanto, poucos parecem estar interessados em apreciar sua arte.


A proa do navio também pode evocar a metáfora de uma prisão, com suas grades compostas por enormes vigas de madeira em diagonais que delimitam arbitrariamente os espaços. Paradoxalmente sua forma oval, elíptica, também sugere a ideia de ciclo que se fechou, destino traçado, irremediável, cruzes que todos devem carregar , ou um novo nascimento em meio a esta provação. No canto esquerdo uma jovem (viúva, talvez?) puxa seu filho pequeno pela mão esquerda, enquanto encosta a outra mão em sua face cansada, buscando um apoio imaginário ou algum conhecido que se dispersou pela embarcação, cercada por duas vigas, está quase isolada das outras pessoas do navio por causa do cruzamento destas linhas.


O que dizer dos respiradouros, que apontam para várias direções como se fossem grandes olhos vigilantes e inquiridores. Um labirinto onde tudo remonta à mesma cena, onde quer que a pessoa mire os olhos. Sugere um porão que o artista "elevou" ao convés para dar maior visibilidade à cena.


Dessa forma, a pintura é construída através destes fragmentos, os grupos de emigrantes, arrumados em forma piramidal, denotando certa verticalidade, a exemplo de suas escultural, que se unem num todo maior, em diversos níveis que coexistem. Várias fases e técnicas de sua obra se sobrepõem. Convivem a precisão dos vários estilos de gravura, a tridimensionalidade de sua escultura, a síntese geométrica de sua paisagem, numa linguagem que manteve-se fiel aos seus ideais políticos e estéticos.


Mostrando uma visão crítica da modernidade, embora não pessimista e desesperada, enfatizando os aspectos humanos, a desagregação, a miséria que por vezes ela pode provocar, apesar de seu projeto emancipador, que o autoritarismo e tecnocracia, seus filhos bastardos, interromperam. Uma chama de esperança luta para se manter acesa, sustentando-se num frágil equilíbrio, entre medo e destruição e possibilidades de renascimento e reconstrução.


É um documento que permite várias leituras, para as pessoas de nossa sociedade pós-moderna o "Navio de Emigrantes" coloca questões diferentes das que foram feitas para a sociedade brasileira da década de 1940, embora mantenha alguns pontos de contato, como luta contra o autoritarismo, a censura e a miséria, movimentos pela democracia e justiça social, as formas de percepção e engajamento são diferentes em nossa contemporaneidade fragmentada, contudo igualmente desigual e excludente para com as diferenças , como em outras épocas, frente aos seus persistentes e questionadores errantes.


2 comentários:

Anônimo disse...

Muito Bom. Achei o que precisava

Compartilhando ideias e ideais disse...

muitooo boa sua analise Parabens!!