terça-feira, 13 de outubro de 2009

Deixa ela entrar (Låt den räte komma in/Let the Right One In), 2008 Direção: Tomas Alfredson









Assisti ontem o filme sueco "Deixa Ela Entrar". Magnífico em vários aspectos. Meu exigente cineasta interior/imaginário tem poucos reparos a fazer. O cinema do país de Victor Sjostrom (1879-1960) e Ingmar Bergman (1918-2007) permanece vigoroso, apresentando material de excelente qualidade.

Deixando de lado as polêmicas a respeito de seu gênero, "terror", "suspense com drama", ou ainda "drama com elementos de terror". Como se este fosse algo indigno para falar de assuntos mais densos. Temos aqui um "filme de formação" sobre as dores de crescimento da adolescência, cujo eixo é a questão da amizade e da vingança. Amizade que enfrenta a diferença e o medo entre as pessoas. O fantástico serve aqui como veículo de exposição das desventuras da condição humana.




Oskar é um garoto de 12 anos e vive com a mãe num conjunto de apartamentos, na periferia de Estocolmo no começo da década de 1980. Os pais são separados. A Suécia está sob um governo de caráter socialista.
A vida familiar do menino é um tanto "largada". A mãe oscila entre certa rigidez e indiferença no trato com o garoto, seguramente relacionada a sua intensa jornada de trabalho. De qualquer forma não está isenta de afeto. O pai é mais carinhoso, ainda que um tanto distante. Vive numa fazenda, onde Oskar vai visitá-lo regularmente. Mas estas visitas também acabam ficando enfadonhas.

Introvertido, leitor de livros policiais e de terror (subentendemos assim, pois Oskar afirma que "lê apenas livros", também gosta de colecionar recortes sobre crimes horrendos) o menino vive sofrendo o que hoje conhecermos por "bullying" por parte de colegas valentões. Nunca revida as agressões, sofrendo calado. Todavia, em seu íntimo maquina vinganças imaginárias, brincando com seu canivete...

A vizinhança anda temerosa com uma série de crimes, onde pessoas são amarradas e tem seu sangue drenado.



Certa noite, brincando solitário no pátio do apartamento, Oskar conhece Eli, garota da mesma idade, que havia se mudado há pouco com Hakan, homem que aparenta ser seu pai, num apartamento ao lado... Ele estranha seu cheiro e o fato dela não sentir frio. Este primeiro contato termina de forma meio rude. Noutra noite, as arestas estão mais aparadas, e Oskar empresta seu cubo mágico e, se surpreende no dia seguinte, por ela tê-lo remontado corretamente. Dessa forma a amizade vai se solidificando. Os diálogos são ternos, simples e bem escritos, apropriados a crianças de 12 anos de idade, em nada soando forçado ou artificial. Oskar passa um tempo extra na escola estudando código morse e entrega para ela uma folha com algumas mensagens. E depois "conversam" entre si, batendo levemente na parede.
Certa hora Eli percebe que Oskar está com o rosto ferido. Ele conta a verdade (algo que sempre esconde da mãe, as agressões dos outros meninos). A nova amiga recomenda, com toda convicção, que ele "revide, com mais força ainda". Dito e feito. Numa excursão da escola, perto de um lago Oskar golpeia seu rival com um pedaço de madeira, sangrando seu ouvido. Por uns tempos não é incomodado.




Entretanto, Oskar acaba descobrindo a natureza inumana de Eli.
Seguindo um costume arcaico para selar a amizade, Oskar, num quarto escuro, fere a mão com o canivete e convida Eli a misturar o seu sangue com o dele. O resultado é desastroso: Eli sai correndo para não concretizar sua pulsão vampírica.
Após este arrebatamento, Oskar vai se recompondo seus sentimentos e a acolhe novamente como amiga. Embora não aceite de todo a necessidade que ela tem de tirar vidas. Implacável, ela pede que ele se coloque no lugar dela por algum tempo. E ele tenta fazer...
Da genealogia de Eli, praticamente nada sabemos. Apenas que ela guarda pequeno tesouro de jóias e objetos antigos. O dinheiro parece ser um mal necessário. Seu modus operandi é sutil. Nunca mostrado explicitamente. Apenas seu rosto belo e impiedoso coberto de sangue


O roteiro não glamouriza, nem deprecia o vampirismo. Apenas atesta sua realidade, desvelando a mecânica vampírica, modo com a qual Eli aprende a sobreviver por séculos e séculos. De certa maneira, os mortos-vivos acabam involuntariamente sendo os "mortais/normais/adultos", pessoas cujas falhas e omissões as fazem olhar para dentro de si, mas sempre de forma hesitante, sem uma atitude mais decisiva. Como se os ataques de Eli adiantassem, como se fossem um golpe de misericórdia, um processo de apodrecimento extremamente lento. Novamente, o fantástico surge como mediador, oferecendo o processo da miséria humana, a incomunicabilidade entre as pessoas, a necessidade de seguirmos em frente, apesar de tudo...

A narrativa elíptica do filme é lenta e segura, colocando os elementos aos poucos, sem sobrecarregar o espectador de informações desnecessárias. Não há necessidade de caninos escancarados. Logo sabemos da sina de Hakan: o responsável pelos assassinatos, servo ( e antigo amante ?), depois de uma discussão com Eli. Os poucos (e eficientes) efeitos digitais são acionados em momentos estratégicos. Assim como sequências sangrentas, também dentro do contexto.
Austeridade escandinava emoldurada por uma fotografia gélida, embaçada, que destaca o inverno agreste, a solidão do bosque, dos apartamentos anônimos, o hospital asséptico, a piscina do desfecho final...

O roteiro, sem nenhum lugar-comum, é de John Ajvide Lindqvist, que adaptou seu próprio livro que, segundo alguns, seria mais sombrio que a versão filmada, que o talentoso diretor Tomas Alfredson transformou numa experiência sensível e assustadora ao mesmo tempo. Os protagonistas mirins, Lina Leandersson e Kåre Hedebrant estão soberbos, em especial a menina, centro do filme.
Hollywood já comprou os direitos autorais. Duvido que irá atingir a excelência cinematográfica do original. Resta torcer para que o estrago não seja grande. Talvez isto anime alguma editora brasileira a traduzir a obra.




Um comentário:

Gisele, Condessa de Lalique, Ly... disse...

Perfeito a tua resenha. Estou adorando o teu blog.