Duas entrevistas que chamaram minha atenção. A primeira, com o secretário estadual de educação de São Paulo, Paulo Renato Souza, na Veja de 28/10/2009. A segunda com o escritor Ferréz, na Caros Amigos, n.151, de Outubro passado.
Podem ser conferidas nestes links:
As duas conversas são bem distintas. Mas num ponto as linhas convergem, na crítica da educação pública.
No tocante a ideologia, o secretário da educação e a equipe da Veja são muito convergentes. Desse modo, conduzida por questões curtas e precisas, a conversa vai fluindo, discorrendo sobre o corporativismo do sindicato, demasiadamente preocupado com aumento salarial, e muito pouco ou, quase nada, com a qualidade do ensino. Paulo Renato lamenta a postura de "diretores com pouca visão moderna de gestão", trabalhando sempre na base do improviso. Certa demonização das parcerias com a iniciativa privada, repulsa à meritocracia e por aí vai até um ponto que considero crucial:
"Às universidades que pretendem formar professores, mas passam ao largo da prática da sala de aula. No lugar de ensinarem didática, as faculdades de pedagogia optam por se dedicar a questões mais teóricas. Acabam se perdendo em debates sobre o sistema capitalista cujo ideário predominante não passa de um marxismo de segunda ou terceira categoria. O que se discute hoje nessas faculdades está muito distante de qualquer ideia que seja cientificamente aceita, mesmo dentro da própria ideologia marxista. É uma situação difícil de mudar. A resistência vem de universidades como USP e Unicamp, as maiores do país.
Muitos professores propagam em sala de aula uma visão pouco objetiva e ideológica do mundo. Alguns não dominam sequer o básico das matérias e outros, ainda que saibam o necessário, ignoram as técnicas para passar o conhecimento adiante. Vê-se nas escolas, inclusive, certa apologia da ausência de métodos de ensino. Uma ideia bastante difundida no Brasil é que o professor deve ter liberdade total para construir o conhecimento junto com seus alunos. É improdutivo e irracional. Qualquer ciência pressupõe um método. No ensino superior, há também inúmeras mostras de como a ideologia pode sobrepor-se à razão."
Observações semelhantes àquelas feitas pela sua antecessora, a socióloga Maria Helena Guimarães, nesta mesma publicação. A ex-secretária havia sugerido o fechamento das faculdades de pedagogia. Evidentemente uma bravata. Ainda que seja um desejo secreto e inconfessável de muitos. Temos aqui uma questão extremamente espinhosa para professores do ensino fundamental e para os pedagogos, acadêmicos ou não. Que a rivalidade política acaba colocando para baixo do tapete.
Existe um hiato entre o curso de licenciatura e a realidade da sala de aula. Por mais que os alunos conheçam a situação institucional da escola, de forma direta ou indireta, em seus cursos, há o implacável choque com a realidade concreta e vivida, que desmancha certezas, por mais idealista que seja o educador iniciante. Falta de materiais, estruturas precárias, indisciplina e desinteresse dos alunos... Dificuldade de expor o conteúdo, em articular metodologias e dinâmicas para as aulas, ou melhor, a própria inexistência destas, alunos praticamente analfabetos, famílias com pouco hábito de leitura...
"Às universidades que pretendem formar professores, mas passam ao largo da prática da sala de aula. No lugar de ensinarem didática, as faculdades de pedagogia optam por se dedicar a questões mais teóricas. Acabam se perdendo em debates sobre o sistema capitalista cujo ideário predominante não passa de um marxismo de segunda ou terceira categoria. O que se discute hoje nessas faculdades está muito distante de qualquer ideia que seja cientificamente aceita, mesmo dentro da própria ideologia marxista. É uma situação difícil de mudar. A resistência vem de universidades como USP e Unicamp, as maiores do país.
Muitos professores propagam em sala de aula uma visão pouco objetiva e ideológica do mundo. Alguns não dominam sequer o básico das matérias e outros, ainda que saibam o necessário, ignoram as técnicas para passar o conhecimento adiante. Vê-se nas escolas, inclusive, certa apologia da ausência de métodos de ensino. Uma ideia bastante difundida no Brasil é que o professor deve ter liberdade total para construir o conhecimento junto com seus alunos. É improdutivo e irracional. Qualquer ciência pressupõe um método. No ensino superior, há também inúmeras mostras de como a ideologia pode sobrepor-se à razão."
Observações semelhantes àquelas feitas pela sua antecessora, a socióloga Maria Helena Guimarães, nesta mesma publicação. A ex-secretária havia sugerido o fechamento das faculdades de pedagogia. Evidentemente uma bravata. Ainda que seja um desejo secreto e inconfessável de muitos. Temos aqui uma questão extremamente espinhosa para professores do ensino fundamental e para os pedagogos, acadêmicos ou não. Que a rivalidade política acaba colocando para baixo do tapete.
Existe um hiato entre o curso de licenciatura e a realidade da sala de aula. Por mais que os alunos conheçam a situação institucional da escola, de forma direta ou indireta, em seus cursos, há o implacável choque com a realidade concreta e vivida, que desmancha certezas, por mais idealista que seja o educador iniciante. Falta de materiais, estruturas precárias, indisciplina e desinteresse dos alunos... Dificuldade de expor o conteúdo, em articular metodologias e dinâmicas para as aulas, ou melhor, a própria inexistência destas, alunos praticamente analfabetos, famílias com pouco hábito de leitura...
Também existe o fantasma da "doutrinação", muito alimentado por esta revista e outras mídias mais à direita. Todavia o corpo docente é muito heterogêneo em se tratando de posição partidária, religião, gostos estéticos. A relação professor-aluno é mais nuançada do que a simples imposição de uma determinada visão de mundo do educador sobre a clientela. Existe reelaboração por parte do corpo discente, novos elementos adicionados, resistências, recusas. Caso exista interesse da parte da criança e do adolescente. Mas a apatia parece ser mais predominante, com a aula girando em monólogos do professor, ou repetidas solicitações por silêncio e atenção ou, ainda, o infame/irritante "dê aula para quem está interessado em aprender" como dizem alguns alunos. Mas o esteriótipo da dita "doutrinação" não vai nos abandonar tão cedo.
Porém suas observações, em poucos parágrafos,numa franqueza brutal, sintetizam toda a complexidade de parte da história da educação brasileira nas últimas décadas. Valem a pena serem conferidas:
"Na escola eu tive bastante dificuldade, porque eu não prestava atenção na aula, mas ao mesmo tempo eu sabia a lição. Então eu tirava boas notas, prestava atenção no professor, e até hoje os professores perguntam como é que pode esse cara nunca prestou atenção, e esse cara sabia as matérias. Eu achava que 20 minutos do que o professor falava eu já entendia, o resto era discurso meio no vazio. Eu repeti a primeira série do primeiro ano no Euclides da Cunha, eu não gostava do ensino, não gostava da escola, não odiava ir para a escola, eu só ia para conversar mesmo e eu achava que não tinha nada a ver o que eu estava aprendendo. Eu não aprendi porcentagem na escola, entendeu? Não me ensinaram porcentagem e no comércio que eu abri eu precisava saber porcentagem. A escola me ensinou pouco, mas eu tive muitas pessoas boas na escola, muitos professores bons, que eram professores que não davam lição nem de matemática e nem de português, mas davam lição de vida. Essas pessoas fizeram a diferença."
"Eu acho que a escola perdeu o foco total de qualquer senso de realidade. Eu acho que a escola e a realidade não têm mais nada a ver e eu acho que uma geração inteira está errando de ir para a escola e os professores serem educados do jeito que são também. Porque os professores também estão ferrados."
"Tipo, eu não sei assim um dia eu acordei e falei agora eu gosto de literatura, sabe? Mas eu lia sempre quadrinhos e gostava de Robert E. Howard que é o autor do Conan e aí eu buscava saber sobre o cara, e a biografia dos autores sempre me interessou mais e então eu comecei a buscar saber mais sobre os caras. Eu sempre tive um ensino paralelo ao da escola, então se eu gostava de Conan eu lia Conan no serviço e ia para escola, tinha que ler Aluísio de Azevedo ou tinha que ler Carlos Drummond de Andrade lá, mas o Carlos Drummond de Andrade lá não me interessava."
Portanto, Ferréz educou-se à revelia da instituição, ainda que esta tenha lhe impingido marcas, ainda que ele as negue, ou recalque. Temos aqui com muita sinceridade, os temas da contradição entre escola e vida, a escola como forma de socialização e não de estudo, o erudito em detrimento do "popular",ou seja, a escola "fora da realidade" do educando, como é conhecido o lugar-comum de parte de pedagogia de esquerda. O autor não é hostil ao professorado, de certa forma são "vítimas do sistema", prefere aqueles que mostram uma face humana distinta da máscara professoral. Contudo esta "amigabilidade" tende a esvaziar o trabalho docente, mais cedo ou mais tarde.
Considero equivocadas estas observações, pois só colocam todo o peso, a responsabilidade do mundo sobre o dispositivo escolar, esquecendo a complexidade e especificidade da tarefa educativa e, consequentemente os seus limites. Sim, a educação tem poderes limitados, se esticarmos demais a corda, ela se rompe e não acontece educação alguma.
A educação deveria provocar um estranhamento frente a realidade imediata. Ensinar a ler e escrever sem disputas pela legitimidade de facções teóricas. Ensinar o que o aluno não vai aprender/encontrar em outros lugares. Transmitir elementos culturais relevantes, do cânone de nossa tradição científica e literária clássica, cristã, racionalista, iluminista e romântica, ainda que causem arrepios em certos setores da elite pedagógica. Mas é isto que nos ensina a pensar. Certamente existem as demandas da sobrevivência, mas a condição humana não é apenas isso.
De qualquer maneira é um material para reflexão. Apesar das divergências, simpatizo mais com o escritor do que com o tecnocrata tucano. E todo aquele que aprecia as aventuras de Conan, o cimério, ganha pontos comigo.
"Eu acho que a escola perdeu o foco total de qualquer senso de realidade. Eu acho que a escola e a realidade não têm mais nada a ver e eu acho que uma geração inteira está errando de ir para a escola e os professores serem educados do jeito que são também. Porque os professores também estão ferrados."
"Tipo, eu não sei assim um dia eu acordei e falei agora eu gosto de literatura, sabe? Mas eu lia sempre quadrinhos e gostava de Robert E. Howard que é o autor do Conan e aí eu buscava saber sobre o cara, e a biografia dos autores sempre me interessou mais e então eu comecei a buscar saber mais sobre os caras. Eu sempre tive um ensino paralelo ao da escola, então se eu gostava de Conan eu lia Conan no serviço e ia para escola, tinha que ler Aluísio de Azevedo ou tinha que ler Carlos Drummond de Andrade lá, mas o Carlos Drummond de Andrade lá não me interessava."
Portanto, Ferréz educou-se à revelia da instituição, ainda que esta tenha lhe impingido marcas, ainda que ele as negue, ou recalque. Temos aqui com muita sinceridade, os temas da contradição entre escola e vida, a escola como forma de socialização e não de estudo, o erudito em detrimento do "popular",ou seja, a escola "fora da realidade" do educando, como é conhecido o lugar-comum de parte de pedagogia de esquerda. O autor não é hostil ao professorado, de certa forma são "vítimas do sistema", prefere aqueles que mostram uma face humana distinta da máscara professoral. Contudo esta "amigabilidade" tende a esvaziar o trabalho docente, mais cedo ou mais tarde.
Considero equivocadas estas observações, pois só colocam todo o peso, a responsabilidade do mundo sobre o dispositivo escolar, esquecendo a complexidade e especificidade da tarefa educativa e, consequentemente os seus limites. Sim, a educação tem poderes limitados, se esticarmos demais a corda, ela se rompe e não acontece educação alguma.
A educação deveria provocar um estranhamento frente a realidade imediata. Ensinar a ler e escrever sem disputas pela legitimidade de facções teóricas. Ensinar o que o aluno não vai aprender/encontrar em outros lugares. Transmitir elementos culturais relevantes, do cânone de nossa tradição científica e literária clássica, cristã, racionalista, iluminista e romântica, ainda que causem arrepios em certos setores da elite pedagógica. Mas é isto que nos ensina a pensar. Certamente existem as demandas da sobrevivência, mas a condição humana não é apenas isso.
De qualquer maneira é um material para reflexão. Apesar das divergências, simpatizo mais com o escritor do que com o tecnocrata tucano. E todo aquele que aprecia as aventuras de Conan, o cimério, ganha pontos comigo.
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