terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Ovídio - As Quatro Idades




“Para dominar o tempo e a história e satisfazer as próprias aspirações de felicidade e justiça ou os temores face ao desenrolar ilusório ou inquietante dos acontecimentos, as sociedades humanas imaginaram a existência, no passado e no futuro, de épocas excepcionalmente felizes ou catastróficas e, por vezes, inseriram nessas épocas originais ou derradeiras numa série de idades, segundo uma certa ordem.
O estudo das Idades Míticas constitui uma abordagem peculiar, mas privilegiada das concepções do tempo, da história e das sociedades ideais. A maior partes das religiões concebe uma idade mítica feliz, senão perfeita, no início do universo. A época primitiva – quer o mundo tenha sido criado, ou formado de qualquer outro modo - é imaginada como uma Idade de Ouro. Por vezes, as religiões perspectivam outra idade feliz, no fim dos tempos, quer como o tempo da eternidade, quer como a última época antes do fim dos tempos.
Em alguns casos, particularmente nas grandes religiões e civilizações, as Idades do Ouro inicial ou final estão ligadas por uma série de períodos. A evolução do mundo e da humanidade, ao longo desses séculos, é geralmente uma degradação das condições naturais e morais da vida.”
LE GOFF, Jacques “Idades Míticas.” In História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1994
p. 283

A primeira expressão coerente de uma sucessão de idades míticas encontram-se no poema Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo (meados do século VII a. C.). Hesíodo mesclou dois temas: um mito das quatro idades com nomes de metais, por ordem decrescente de excelência e a lenda de uma Idade dos Heróis, entre a terceira e quarta idades.

Fundamentada nas concepções de Hesíodo, a Idade do Ouro de Ovídio (43 a. C -17/18? d.C.) apresenta as seguintes características: constitui um reino de paz, um regime anárquico sem poder, leis e propriedade privada, uma moral de inocência primitiva, com predominância do arcaísmo tecnológico, o vegetarianismo e a ausência do comércio, das viagens e do conhecimento dos metais preciosos. Ao lado do caráter mítico, toma corpo uma inspiração ética muito acentuada, com profunda difusão no imaginário medieval e renascentista.

A concepção de Ovídio da Idade do Ouro encontra-se no livro I das Metamorfoses [vv. 76-215]:


"De ouro é a primeira idade criada, que, sem nenhum vingador,
espontaneamente, sem lei, cultiva a fé e o bem.
Castigo e medo estavam ausentes e palavras ameaçadoras não
se liam no bronze fixo; nem temia uma turba suplicante
a face de seu juiz; mas sem vingador, estava em segurança.
Para ir ver o orbe peregrino ainda não descera
o pinheiro às límpidas ondas, cortado nos seus montes,
e os mortais não conheciam nenhom litoral além dos seus.
Fossos íngremes ainda não cingiam cidades fortificadas.
Não havia tubos de bronze reto nem cornos de bronze recurvo,
nem capacetes, nem espadas: sem uso do soldado,
as gentes, livres de cuidados, cumpriam mansos ócios.
Também a própria terra, livre de encargos, intacta, quanto
ao rastro e não ferida pelas relhas, por si mesma dava tudo.
E, contente com os alimentos criados sem nenhuma imposição,
colhiam frutos do medronheiro, e morangos das montanhas,
e cornisolos e amoras que se prendiam aos arbustos silvestres,
e glandes caídos das frondosa árvore de Júpiter.
A primavera era eterna e com brisas tépidas, plácidos
zéfiros acariciavam flores nascidas sem semente.
Em pouco tempo, mesmo a terra não arada produzia grãos,
e o campo não amanhado embranquecia-se de pesadas espigas.
Ao mesmo tempo que rios de leite, corriam rios de néctar;
e gotas de louro mel destilavam da árvore azinheira.
Depois que - enviado Saturno aos Tártaros tenebrosos -
estava o mundo sob Júpiter, surgiu a raça de prata
inferior ao ouro, mais preciosa que o fulvo bronze.
Júpiter reduziu a duração da antiga primavera, e
com invernos e verões e outonos desiguais
e, uma primavera curta, regulou em quatro estações o ano.
Então, pela primeira vez, abrasado com os secos ardores,
inflamou-se o ar; e, tocado pelos ventos acumulou-se o gelo.
Então, pela primeira vez, surgiam casas. Antros foram as casas,
e densas moitas, e ramos presos com a embira.
As sementes de Ceres, então, pela primeira vez, foram enterradas
em longos sulcos; e gemeram os novilhos, oprimidos pelo jugo.
Sucedeu-lhe uma terceira raça, de bronze,
mais feroz pelo caráter e mais disposta às horríveis armas;
não criminosa, entretanto. De duro ferro é a última.
Imediatamente; irrompeu na idade do pior filão
tudo o que é sacrílego: fugiram o pudor, a verdade e a fé.
No seu lugar, surgiram a fraude e o dolo
e as insídias e a força e o amor criminoso da posse.
As velas, abria-se aos ventos, nem bem os conhecem ainda,
o navegante; e depois de estarem muito tempo no alto dos montes,
saltaram as proas às correntes desconhecidas.
O solo, antes comum como a luz do sol sobre as brisas,
cauto, um agrimensor marcou-o com limites longos.
Não apenas searas e alimentos necessários ao rico
solo pediam, mas penetrou-se nas entranhas da terra,
e riquezas que escondera e aproximara das
sombras estígias foram extraídas – desencadeadoras de males -.
já o ferro nocivo e o ouro, mais nocivo que o ferro,
haviam surgido; surge a guerra, que luta com um e outro
e, com mão sangrenta, brande armas crepitantes.
Vive-se do roubo. O hóspede não está protegido do hóspede,
nem o sogro, do genro; até a harmonia dos irmãos é rara.
O varão ameaça de morte a esposa; ela, o marido.
Terríveis, as madastras misturam lúricos venenos.
O filho, antes do dia, conspira contra a vida do pai.
Vencida jaz a Piedade; e as terras úmidas de sangue derramado,
abandono-as a Virgem Astréia, último dos seres celestes."

Tradução Maria da Glória Novak
Fonte: NOVAK,Maria da Glória & NERI, Maria Luiza (org.) Poesia Lírica Latina. São Paulo: Martins Fontes, 1992 pp. 221-225


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