sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Poemas Arcanos de Assis Lima.



Francisco Assis de Souza Lima (natural de Crato-CE) é psiquiatra e pesquisador em cultura popular. Neste tema publicou Conto popular e comunidade narrativa. Poemas Arcanos (Ateliê Editoral, 2008) reune poemas escritos ao longo de mais de trinta anos.


Fogo sem nome.

Fogo que consome
sem que se alcance o rastro.
Fogo sem nome
sem amplexo ou lastro.

Fogo que não expande.
Fogo de bronze
em coivara de aço.
Fogo sem labaredas.

Fogo que não purga,
fogo que não chama,
fogo sem trempe ou tacho.

Deste fogo de instante
e eternidade,
livrai-me.



Uma precisa lembrança do tempo
a Ana Cecília de Sousa Bastos

Colhendo o poema e cada palavra
em lâmina e pétala.
No afiado gume do tempo.
Em cor e dor.
Na precisa lembrança do tempo.
Poema-estação-de águas?
Vestígios do passado sem fim.
Nostalgia do tempo essencial.

Do olhar-paisagem da menina
as cidades vêm a nós:
em silêncio de ouro transportadas.
Em vento sutil, nas ruas, no sol, na chuva, no intenso mar.

Em pedra, ou no ar esculpidos
estão os poemas-ramalhetes
do sentir humano:
e por estes ícones temos entrada no reino do ser.

E um coração
revelando
nos passos da mais-que-amada presença
(ou ausência),
no selo e na voz,
o retrato fiel do amor.

Poemas:
mistério tangível
dos momentos que dançam
em rondó e sarau.
Infinitamente.




Amor aprendiz
a Elizabeth Pessôa

Entregue ao teu amor esfacelado
quiseste a sombra viva do meu corpo
ao sentir que distante, mas exato,
na mesma solidão banhava o rosto.

Assim é que fiel ao teu silêncio
teu olhar me foi céu recosntelado
e entre luas, estrelas e desejos
sem mais nuvem nos demos novo laço.

Aprendiz do amor sem mais cartilha
além desta que a vida mesma traz,
entre erros e acertos repetidos

nosso amor pela dor já se refaz,
e em renovado salto de oferenda
o amor sobre a dor se alça a mais.


Evocação Negreira

I
Neste batente de pedra
hoje lavrado de lua
venho selar meu silêncio.
Em vez de sangue e vagido
quero guardar-me, semente.
Quero fazer com que a pedra
mais dura que sou eu mesmo
lacrada dentro do peito
em mudo sono adormeça.
Neste batente de pedra
que pode ter sido o cepo
do primeiro golpe dado
quero que o grito calado
feito de pedra emudeça.
Que a negra flor da ferida
no breu da noite escureça.
Que a dor, se ainda for viva,
também na pedra embruteça.

II
Minhas certezas são poucas,
são pulsações que nem peço.
Trago uma herança de medo
e a dor de um banzo tão velho
que já não posso, nem quero,
suportar tamanho peso.

Dor de ser, sem poder sê-lo.
Dor sem sustento, sem pão,
dor sem nome, sem desvelo,
dor-semente, mas sem chão.
Dor de todo ser vivente
atado à negra corrente
de uma outra escravidão.

(Nao sei às vezes se chore
ou se bendiga o deus triste
que do outro lado da noite
escureceu minha face).

III
Há um mar entre tudo isto.
Existe o grito e o laço
de um leiloeiro mercante.
Uma corrente nos pés.
Um palco de comerciante.

A âncora lançada ao março
e no mar, tormenta escura,
num calabouço ancorado
era o corpo torturado
pois a alma já não vinha.

IV
Da viagem nunca finda
não se soubera contar.
Do sol a luz não se via
nem belo estava o mar.
Na alma só calmaria
no tempo só agonia
nenhuma estrela a piscar.
Um só sentimento vinha
na promessa do chegar:
o laço-mãe se partira
mas o coração e a sina
permaneciam por lá.

Magoados, brancos hinos
foram tangidos por cá:
lira na mão de meninos
cantando em toques lindos
atrocidades sem par.
Foram cantos de um barqueiro
sentado à beira do mar.
Mas dos navios negreiros
quem poderia contar?
Nem claros peixes nem musas
degredo não vêm salvar.
Nenhum segredo futuro
nem passado por passar.
Quando a ferida está feita
resta somente salgar.

V
Esquecida noutras eras
a língua de meus avós.
Que voz tão minha,
voz de três línguas,
preciso antes de morrer?
Calar, por que já não pude?
Que dor me obriga a viver?


Temas para Lua Cambará

I – Memória

Meu nome está escondido nestas paredes
salgadas pelo suor do escravo sem nome.
Está nestes torrões, amargos, duros,
que o vento amontoou sobre mim.

O tempo me ensinou a ruminar.
Eu rumino o bredo dos séculos que comi.
Rumino como os velhos feiticeiros
a memória das eras antigas.

Minha memória é feitiço que dobra o tempo,
que marca o ponteiro do sol,
que deixa a lua reinar
no sangue moreno da terra.

II – Cio

No tempo de lua cheia
seu cavalo vira rede
rangendo amor na varanda.

Suas esporas são dedos
que pela carne de negros
rebenta amores e manhas.

As rédeas são seus cabelos.
Os seios, melões e mangas.
Sua voz vira gemido
da juriti quando canta.

E juntos, mulher e homem
nesse amor de escravo e ama,
a carne dá-se em banquete
a sede na boca é vinho
e no ventre o vinho é chama.

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