As recentes polêmicas envolvendo a divulgação do vídeo "A inocência dos muçulmanos" e seus desdobramentos atualizam questionamentos a respeito da pertinência (ou não) de limites na liberdade de expressão em Estados democráticos. Esta seria absoluta, irrestrita? Paralelamente, o entrelaçamento entre fé e política, em especial do poder econômico e simbólico de grupos religiosos, está na ordem do dia, como no caso das eleições municipais deste ano. Destaco também a questão do ensino religioso nas escolas públicas, com inquestionáveis elementos que comprovam privilégios dados a determinadas confissões, constrangimentos sofridos por alunos e familiares que discordam deste tipo de visão, além de injunções que não são legítimas dentro de um Estado verdadeiramente laico.
Transcrevo abaixo, alguns trechos do capítulo XX do Tratado Teológico Político, do filósofo holandês Baruch de Espinosa (1632-1677), que acredito, possam lançar alguma boa semente para esta discussão.
Publicado em 1670, sem mencionar o nome de seu autor, o Tratado logo foi vítima de censura estatal, por influência do Sínodo calvinista, os Estados Gerais da Holanda declaram a obra "perniciosa", proibindo sua impressão e divulgação.
Para Espinosa a função
da política é garantir a segurança da sociedade, salvaguardando o
direito de natureza e do mesmo modo a autonomia de cada cidadão. Não
se trata, portanto, de um Estado pedagogo/educador, cuja finalidade
seria constituir o sujeito humano, mas apenas preservá-lo; algo que
não é simples. Assim, a perspectiva espinosiana é bastante
distinta de boa parte da perspectiva iluminista (não que seja
impossível dialogar com esta cosmovisão)): a questão politica é
essencial para o desenvolvimento da sociedade e da felicidade
humanas. O progresso científico é secundário e depende da
efetivação da política, nos termos colocados por Espinosa.
Utilizei a tradução de Diogo Pires Aurélio, publicada pela Martins Fontes em 2008, na coleção Paidéia.
"Se fosse tão fácil
mandar nos ânimos como é mandar nas línguas, não haveria nenhum
governo que não estivesse em segurança ou que recorresse è
violência, uma vez que todos os súditos viveriam de acordo com o
desígnio dos governantes e só em função das suas prescrições é que ajuizariam do que era bom ou mau, verdadeiro ou falso, justo ou
iníquo. (…) A vontade de um homem não pode estar completamente
sujeita a jurisdição alheia, porquanto ninguém pode transferir
para outrem, nem ser coagido a tanto, o seu dreito natural ou a sua
faculdade de raciocinar livremente e ajuizar sobre qualquer coisa.
Por conseguinte, todo poder exercido sobre o foro íntimo se tem por
violento, da mesma forma que se considera ultrajar e usurpar o
direito dos seus súditos um soberano que queira prescrever a cada um
o que deve admitir como verdadeiro ou rejeitar como falso, e até as
opiniões em que deve apoiar-se na sua devoção para com Deus:
porque tudo isso pertence ao direito individual e ninguém, mesmo que
quisesse, poderia renunciar-lhe. Bem sei que o discernimento poder
ser influenciado de muitas maneiras, algumas quase inacreditáveis
Claro que reconheço
que tal liberdade traz por vezes certos inconvenientes; mas será que
já houve alguma coisa instituída com tanta sabedoria que daí não
pudesse surgir depois nenhum inconveniente Quem tudo quer fixar na
lei acaba por assanhar os vícios em vez de os corrigir. Aquilo que
não se pode proibir tem necessariamente que se permitir, não
obstante os danos que daí se advêm.
Se se quiser, pois, que
se aprecie a fidelidade e não a bajulação, se se quiser que as
autoridades soberanas mantenham intacto o poder e não sejam
obrigadas a fazer cedências aos revoltosos, terá que
obrigatoriamente de conceder a liberdade de opinião e governar os
homens de modo que, professando embora publicamente opiniões
diversas e até contrárias, vivam apesar disso em concórdia. E não
há dúvida de que essa maneira de governar é a melhor e a que traz
menos inconvenientes porquanto é a que mais se ajusta à natureza
humana. Com efeito, num Estado democrático (que é o que mais se
aproxima do estado de natureza), todos, como dissemos, se comprometem
pelo pacto a sujeitar ao que for comumente decidido os seus atos, mas
não os seus juízos e raciocínios; quer dizer, como é impossível
os homens pensarem todos do mesmo modo, acordaram que teria força de
lei a opinião que obtivesse o maior numero de votos, reservando-se,
entretanto, a autoridade de a revogar quando reconhecessem que havia
outra melhor. Sendo assim, quanto menos liberdade de opinião se
concede aos homens, mais nos afastamos do estado mais parecido com o
de natureza e, por conseguinte, mais violento é o poder.
I - É impossível
tirar aos homens a liberdade de dizerem o que pensam.
II – Esta liberdade
pode ser concedida aos indivíduos sem o prejuízo do direito e da
autoridade dos poderes soberanos, podendo cada um utilizá-la sem
prejuízo ainda desse mesmo direito, desde que daí não retire
pretexto para introduzir alterações na legislação do Estado ou
para fazer algo que vá cotra as leis estabelecidas.
III – A mesma
liberdade não representa nenhuma ameaça em relação à paz, nem
acarreta inconvenientes que não possam facilmente neutralizar-se.
IV – O mesmo se pode
dizer em relação à piedade.
V – As leis
promulgadas sobre matérias de ordem especulativa são de todo
inúteis.
VI – Finalmente, a
liberdade de opinião, não só pode ser concedida sem que a paz do
Estado, a piedade e o direito dos poderes soberanos fiquem
ameaçados, como inclusive o deve ser, se se quiser preservar tudo
isso. Na verdade, onde quer que se tente retirá-la aos homens, onde
quer que as opiniões dos dissidentes sejam levadas a tribunal e não
as intenções, quando só estas é que podem ser pecaminosas, aí,
os castigos que se dão para servirem de exemplo, aos olhos dos
homens de bem, parecem martírios, e aos outros, enfurecem-nos e
induzem-nos mais a ter compaixão, senão mesmo a vingar-se, do que a
ficar com medo. Depois, os bons costumes e a lealdade deterioram-se,
a bajulação e a perfídia são encorajadas e é o triunfo dos
inimigos porque os detentores do poder cederam perante a sua ira e se
tornaram seguidores da doutrina de que eles próprios se têm na
conta de intérpretes. Daí que tenham a ousadia de lhes usurpar o
direito e a autoridade e não corem de vergonha quando se gabam de
ter sido diretamente eleitos por Deus e de que os seus decretos são
divinos, enquanto os da suprema autoridade são simplesmente humanos,
razão pela qual esta se deveria subordinar aos decretos divinos, ou
seja, aos seus. Haverá alguém que possa ignorar que tudo isso vai
totalmente contra os interesses do Estado? Concluímos, portanto,
tal como já tínhamos feito no cap. XVIII, que não há nada melhor
para a segurança do Estado que fazer consistir a piedade e a
religião unicamente na prática da caridade e da justiça e limitar
o direito das autoridades soberanas, tanto em matéria sagrada como
profana, aos atos, deixando a cada um a liberdade de pensar aquilo
que quiser e de dizer aquilo que pensa. "
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