História, Cultura & Memória. "... o que permaneceu incompreendido retorna: como uma alma penada, não tem repouso até que seja encontrada resolução e libertação." Sigmund Freud
sábado, 22 de outubro de 2011
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
Maria Rita Kehl - Três artigos:Escola? Pra que?, Leitura insubstituível e TV na educação?
Aqui estão três artigos escritos pela psicanalista Maria Rita Kehl 1 sobre a temática da educação. Foram publicados na revista Ao Mestre com Carinho, dedicada aos professores da rede pública. Escritos há mais de uma década 2,entre 1998 e 1999, estes textos não perderam a sua pertinência. Versam a respeito da leitura como aventura da descoberta do mundo e de si mesmo e como exercício da imaginação, sobre a necessidade da escola criar uma diferença/distância frente a realidade que se apresenta ao aluno, em especial à televisão, da função da escola em alargar os horizontes culturais dos alunos e não simplesmente agregar o discurso da TV no currículo, empobrecendo a formação do educando. Portanto, a educação deveria possuir uma temporalidade própria, menos imediatista. Não são muito comuns, na imprensa educacional, reflexões mais densas sobre o ato de educar que se posicionam na contracorrente do discurso mais presente hoje, que é psicologizante, prescritivo, com tendência a esvaziar o sentido da escola e do saber mais elaborado, reduzindo quase tudo a uma mera socialização e empobrecimento cultural e simbólico (tudo deveria funcionar a partir do "interesse/realidade" dos alunos, ou em outras palavras: a partir dos interesses e realidades que certas instituições acreditam pertencer ao desejo alunos e professores,mascarando outras visões e vozes. Na verdade sua intenção é o lucro e dividendos políticos).
Estes textos breves e límpidos foram elaborados com base em uma argumentação sólida, sem ironias, clichês e outros subterfúgios.. A escrita refinada e atenta dessa autora já é conhecida pelos leitores que acompanham seus textos sobre psicanálise e questões da sociedade brasileira e global. Os artigos feitos para Ao Mestre com Carinho merecem uma edição em livro.
Escola? Pra que? [Abril de 1998]
Um professor é um cara que passa a vida inteira tentando envolver outros caras em assuntos que não lhes interessam a mínima. Deve ser um sofrimento: como fazer com que crianças de dez anos deixem o vídeogame para examinar o mapa do Brasil? Como envolver adolescentes que só pensam em sexo nas questões da análise sintática? O problema se agrava quando o próprio professor não parece convencido da importância das matérias que ensina. Muitas vezes por ano, imagino, ele se vê confrontado com a indefectível questão – mas para que servem estas coisas que você nos obriga a estudar? Por que eu tenho que aprender coisas que nunca mais vou usar na vida?
Acuado, o professor apela para a ironia: "Estas coisas" servem pra você passar de ano – e basta. É um argumento forte, concordo; mas não vai fazer ninguém se apaixonar pela matemática ou pela geografia.
É como se os professores, pressionados pela lógica de uma educação de resultados – a mesma que rege, hoje, todos os vínculos sociais – tivessem se esquecido do sentido simbólico da profissão que escolheram. Se algum dia o ato de ensinar correspondeu a um belo ideal de vida, é como se as dificuldades da profissão, a desvalorização do saber e as sucessivas desvalorizações salariais, tudo tivesse contribuído para o rebaixamento daquele ideal.
Os alunos não sabem para quê aprendem muitas coisas. Mas é preciso que o professor saiba. Estas coisas distantes do nosso cotidiano, estes saberes abstratos, sem utilidade prática – literatura, história antiga, a vida das plantas, o comportamento dos átomos! – são o acervo de cinco, dez mil anos de civilização. São a medida de nossa humanidade, o melhor que o homem já produziu enquanto não estava ocupado em matar, subjugar, escravizar seu semelhante. Enquanto estava investigando, contemplando, testando humildemente algumas hipóteses, brincando de criar um mundo melhor (poesia!) entre as quatro paredes de um quarto.
Se este parece um privilégio ao alcance de uma minoria de crianças e adolescentes, é porque nosso ensino (ainda!) não foi democratizado como deveria. Pois esta devia ser a condição de ingresso de qualquer cidadão na cultura. O rito de passagem do estado de natureza para a civilização. O que a escola faz por nós é nos apresentar uma pequena amostra dos saberes humanos, com seus acertos e erros, suas pretensões e sua grandeza, e com isto dizer ao adolescente – bem-vindo ao clube! Junte-se a nós na tremenda tarefa de entender o mundo!
O professor faz o convite e apresenta o cardápio do banquete. Cabe ao aluno decidir se quer entrar na festa ou não.
Aos seis anos ganhei de meu avô paterno O Saci, de Monteiro Lobato. Estava começando a me alfabetizar, e o livro me pareceu enorme; seria capaz de atravessar todas aquelas páginas cobertas de palavras de alto a baixo, com raras ilustrações, tão diferentes da minha cartilha Caminho Suave? Encorajada por minha mãe, resolvi começar a leitura. Foi uma surpresa. Como é que eu poderia imaginar que aquelas letras miúdas, agrupadas e alinhadas de um jeito que ainda me parecia misterioso, estariam falando comigo?
E estavam. Estavam me contando uma estória, como só as avós muito pacientes são capazes de contar. Fui percebendo (como? até hoje não consigo explicar; desconfio que ninguém consegue) que as letras formavam palavras, quase todas minhas conhecidas; as palavras se agrupavam em frases, não tão corriqueiras como as que dizíamos em casa, mas bastante compreensíveis. Mas o melhor de tudo é que as frases se encadeavam numa sucessão de acontecimentos, diálogos, situações através das quais eu ia sendo conduzida, suspensa, até o final.
Fiquei com saudades da estória assim que ela acabou. Do ambiente do Sítio do Picapau Amarelo, da mata, de Pedrinho, da Cuca e do próprio moleque Saci. Então, descobri que era fácil matar a saudade. Recomecei o livro, sem a mesma surpresa da primeira vez mas percebendo detalhes que me haviam escapado, entendendo cenas que haviam ficado confusas, etc. Nunca mais parei de ler, principalmente estórias, aventuras, romances. Até hoje prefiro a literatura de ficção a qualquer outro tipo de leitura, mesmo a poesia.
Tenho uma certa pena do que os autores de livros infantis oferecem, hoje, às crianças da geração-televisão. Há um certo pressuposto de que elas não sejam capazes de acompanhar uma estória longa, relativamente complexa. Crianças de sete a dez anos têm se acostumado a uma literatura breve, em linguagem coloquial, com enredos simplificados que elas possam acompanhar sem muito esforço. Freqüentemente são estórias lindas, quase como crônicas, onde o senso de humor se alia ao sentido poético. Outras são comentários irônicos sobre a vida em família, a chatice dos adultos, ciúmes entre irmãos, separações. Ajudam a criança a elaborar sua própria experiência.
Mas o que me preocupa é a brevidade de tudo, como se a literatura infantil estivesse o tempo todo atrás da velocidade da televisão, respondendo a ela, competindo com ela pela atenção da criança. Há autores que apostam cada vez mais pesado em recursos de suspense, crime e violência; outros recorrem ao sobrenatural, buscando pela via do terror a adrenalina (esta droga dos anos noventa) que aparentemente só a tevê e os videogames são capazes de liberar.
Outros ainda, temendo que a criança não suporte acompanhar uma narrativa cheia de peripécias até o fim, introduzem o elemento participativo — "se você acha que o Zezinho vai abrir a porta secreta, pule até a página 20"/ "se você decidiu que a Joana deve beijar o João, vá direto à página 17", etc. Uma espécie de Você decide, bastante divertido, onde se elimina entretanto um elemento fundamental em nossa relação com qualquer obra da cultura: a alteridade. Quando a criança interfere no enredo e decide o desfecho de uma estória ela está reproduzindo a si mesma. Verdade que os termos da escolha já estão dados pelo autor; mas se ela conduz as alternativas, está perdendo a oportunidade de ser conduzida. De se alegrar, surpreender ou frustrar com o que outra pessoa inventou. Mais ainda: quando a literatura se transforma em jogo, revela a própria farsa. A criança-leitor perde assim a oportunidade de acreditar na ficção, deixar-se envolver pela imaginação e enriquecer a sua própria capacidade de inventar.
O mundo, a vida, são vastos demais. O pouquinho que nos é dado viver fica ampliado, multiplicado, no contacto com a literatura. Descobrimos assim, em espelho, que à vastidão da vida corresponde a vastidão ilimitada de nosso mundo interno. Passar horas, dias, semanas pendurada num livro, é uma experiência de natureza radicalmente diferente da que a televisão oferece. É insubstituível. Penso que os autores de literatura infantil deveriam confiar mais na sua praia e desistir de vez de competir com a velocidade, por sinal imbatível, da telinha.
TV na educação? [Agosto de 1999]
O que diferencia a relação com a televisão de outras que a criança possa ter com objetos de prazer é seu caráter de continuidade. Doméstica, acessível e onipresente, a televisão representa para a criança uma fonte constante de emissão de estímulos, fantasias e solicitações. Independente do conteúdo da programação, para a criança que passa a maior parte de seu tempo livre diante da televisão a experiência do vazio, da solidão e da frustração são fantasmas distantes a ser evitados com um simples toque de botão; da telinha, vozes e imagens sedutoras surgem para lhe dizer que ela nunca estará só – muito menos em falta.
Ao mesmo tempo, o ritmo veloz da sucessão de imagens televisivas predispõe à dispersão: se uma unidade narrativa – uma frase, um diálogo, um pensamento, uma imagem complexa – demorar mais do que trinta segundos para concluir e dar lugar a outra, o espectador (e não apenas a criança) deixa de prestar atenção. Se a televisão treina para a velocidade, por outro lado dispensa a necessidade de atenção continuada, de adiamento da satisfação, de se constituir estruturas psicológicas capazes de suportar a demora – fundamentais para o desenvolvimento da capacidade de raciocínio.
A televisão não reprime o pensamento, mas absolutamente não o solicita. Sua estratégia não é repressiva; é sedutora. Pode ser comparada à grande mãe onipotente que não abandona sua criança, nunca; e solicita: volte, eu quero você. Eu tenho um mundo de surpresas para você. "Quem tem Globo tem tudo", certo?
O efeito desta sedução sobre o sujeito, embora excitante, a médio prazo pode se fazer depressivo. Quanto mais a televisão preenche (o tempo, a mente, a fantasia, a vida enfim), maior o vazio deixado pela falta de outras modalidades de experiência. Mais cedo ou mais tarde, para sobreviver, a criança terá necessidade de provar deste caroço duro do real que resiste à realização de desejos. Mas este conhecimento, a televisão não pode lhe oferecer.
Neste sentido, apesar de seu potencial como veículo de informações, sou absolutamente contrária à entrada da televisão nas escolas. A tarefa dos educadores contemporâneos, cada vez mais urgente, é criar espaços de experiência livres do domínio da televisão.
Notas:
1- Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. Entre outras obras, publicou Deslocamentos do Feminino - A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade. Rio de Janeiro:Imago Editora; 1998, Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo:Companhia das Letras, 2002; Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004; A Fratria Órfã. São Paulo: Editora Olho d'Água, 2008; O Tempo e o Cão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
2- Ao mestre com carinho foi editada pelo Grupo Estudo Estratégia e Informação entre abril de 1998 e novembro de 2000. Os artigos que transcrevo nesta postagem são referentes às seguintes edições, respectivamente: ano 1,n°0, abril de 1998, ano 2, n°9, abril de 1999, ano2, n°13, agosto de 1999. Posteriormente ela ganhou uma versão digital e depois tornou-se um site. As edições impressas então disponíveis neste link: http://www.aomestre.com.br/
Notas:
1- Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. Entre outras obras, publicou Deslocamentos do Feminino - A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade. Rio de Janeiro:Imago Editora; 1998, Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo:Companhia das Letras, 2002; Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004; A Fratria Órfã. São Paulo: Editora Olho d'Água, 2008; O Tempo e o Cão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
2- Ao mestre com carinho foi editada pelo Grupo Estudo Estratégia e Informação entre abril de 1998 e novembro de 2000. Os artigos que transcrevo nesta postagem são referentes às seguintes edições, respectivamente: ano 1,n°0, abril de 1998, ano 2, n°9, abril de 1999, ano2, n°13, agosto de 1999. Posteriormente ela ganhou uma versão digital e depois tornou-se um site. As edições impressas então disponíveis neste link: http://www.aomestre.com.br/
domingo, 16 de outubro de 2011
Henrique Oswald, por Quarteto Rubio e José Eduardo Martins.
Henrique Oswald (1852-1931) foi um pianista,compositor, concertista e diplomata brasileiro. Nascido no Rio de Janeiro e filho de suíços,viveu grande parte de sua vida na Europa. Estudou em Florença com Graziani e Buonamici, obtendo o primeiro prêmio do concurso instituído pelo jornal francês Le Fígaro com a peça Il neige, representativa de sua elegante escrita pianística e de um clima “pré-impressionista”. Fez amizade com nomes importantes da música erudita, como Saint-Saëns, Faurè, Milhaud entre outros. Dentre os grandes compositores brasileiros, é um dos autores musicais que não teve a preocupação em proporcionar o “clima local” e nacionalista em suas composições. Fato que gerou críticas duras de parte da crítica extremamente nacionalista, em especial dos modernistas, que lhe atribuíam uma pecha de elitista e europeizado. Contudo, Mário de Andrade reconheceu méritos de sua obra. De qualquer forma essa visão negativa tornou seu nome meio secundarizado no cenário musical brasileiro. A partir da década de 1970, sua obra foi redescoberta, através de pesquisas, gravações e edições de partituras realizadas pelo pianista José Eduardo Martins (autor de Henrique Oswald – Músico de uma Saga Romântica. São Paulo:Edusp-Giordano,1995, livro fundamental para se compreender a vida e a arte deste músico). Este cd de minha coleção que coloco a disposição para download foi editado em 2002 pela revista CONCERTO em co-produção com a Universidade de São Paulo e a VZW De Verenigde Cultuurfabrieken/De Rode Pomp, da Bélgica.
Quarteto em sol maior op. 26 [para piano, violino, viola e violoncelo]
1- Allegro moderato 7:09
2- Andante com moto (tema e variações) 6:37
3- Prestíssimo (scherzo) 2:57
4- Adagio 3:04
5- Molto allegro 10:12
6- Sonata-Fantasia em mi bemol maior op.44 [para piano e violoncelo] 13:23
Concerto para piano e orquestra op. 10
[em redução para piano e quinteto de cordas, realizada pelo autor]
7- Allegro (poco agitato) 16:30
8- Andante 7:41
9- Molto allegro 6:17
José Eduardo Martins (piano)
Quarteto de Cordas Rubio (The Rubio String kwartet)
Dirk Van de Velde
Dirk Van den Hauwe (violinos)
Marc Sonnaert (viola)
Peter Devos (violoncelo)
Pascal Smets (contrabaixo)
Sonata-Fantasia em mi bemol maior op.44
Concerto para piano e orquestra op. 10; Allegro (poco agitato)
sábado, 15 de outubro de 2011
David Hume - Do estudo da história (1741).
Este texto do filósofo escocês David Hume (1711-1776) faz parte dos seus Ensaios Morais, Políticos e Literários. Publicados em 1741-1741, foram revistos várias vezes pelo autor, com alguns sendo adicionados ou removidos (como é o caso deste, que transcrevo nesta postagem) ao longo das reedições. Foram bem recebidos pelo público, um best-seller da época, proporcionando ao filósofo uma vida confortável.
Encontramos aqui um pouco da concepção iluminista de história, o tempo como uma flecha rumo ao progresso, ou seja, maior refinamento nos costumes e instituições políticas. Ecos da célebre formulação de Cícero, da "História como mestra da vida" estão presentes. Assim debruçar-se sobre o passado seria um entretenimento elevado, porém não só relacionado aos fatos mais memoráveis e das ações mais célebres, mas também dos vícios e atrocidades que acompanham a trajetória da humanidade. Nesse caso há uma função pedagógica e moralizante.
Certamente após o historicismo de Ranke, as críticas de Marx, Durkheim, Weber e Simiand à história factual, os novos direcionamentos teóricos e metodológicos propostos pela Escola dos Annales, pelas historiografias italiana e alemã, a "virada linguística" e o pós-modernismo tudo isso parece ingênuo e superficial. Todavia aqui se propõe algo que ficou meio deixado de lado: uma dimensão lúdica, diletante. Ela pode ser uma maneira de proporcionar prazer, sem renunciar à razão e ao espírito crítico."Não existe nada que eu recomendaria com mais convicção às minhas leitoras do que o estudo da história, por ser a ocupação, entre todas as outras, mais adequada não somente ao seu sexo como à sua educação, muito mais instrutiva do que os seus livros de entretenimento habituais e muito mais divertida do que aquelas composições sérias que geralmente se encontram em seus armários. Entre outras verdades importantes, que elas podem aprender com a história, as leitoras podem se informar sobre duas em particular, cujo conhecimento contribuirá bastante para sua serenidade e repouso; Que o nosso sexo, bem como o delas, está longe de ser constituído por criaturas tão perfeitas como elas podem imaginar; e Que o Amor não é a única paixão que governa o mundo masculino, poi ele é freqüentemente sobrepujado pela avareza, pela ambição, pela vaidade e por mil outras paixões. Levando em conta esses dois particulares, se são mal-intencionados os representantes do sexo masculino que recomendam os romances e novelas ao sexo frágil eu não sei; mas devo confessar que sinto alguma tristeza ao vê-las com tanta aversão pela realidade dos fatos e com tamanho apetite pela ilusão. Lembro que, numa ocasião, fui solicitado por uma jovem beleza, por quem eu nutria alguma paixão, a lhe enviar novelas e romances para a sua diversão durante a sua estada no campo; mas eu não era egoísta a ponto de tirar proveito das possibilidades que tal leitura poderia me proporcionar e estava mesmo decidido a não fazer um mau uso das armas envenenadas contra ela. Por isso, eu lhe enviei as Vidas de PLUTARCO,assegurando-lhe, ao mesmo tempo, que não existia uma palavra sequer de verdade naquele livro, do começo ao fim. Ela o leu com muita atenção, até chegar às vidas de ALEXANDRE e CÉSAR, cujos nomes ela ouvira por acidente; e então me devolveu o livro, reprovando-me muito por enganá-la.
Na verdade, podem alegar que o sexo frágil não demonstra tal aversão pela história, tal como representei aqui; desde que se trate de uma história secreta e contenha alguma transação memorável, de forma a excitar a sua curiosidade. Mas como eu não considero que a verdade, que é a base da história, tenha qualquer parentesco com essas anedotas, não posso admitir que isso seja uma prova de sua paixão por aquele estudo. Por mais que essa paixão possa existir, não vejo por que a mesma curiosidade não possa ser direcionada de uma forma mais adequada, levando-as a se interessar pelos relatos daqueles que viveram em épocas passadas, bem como de seus contemporâneos. Que importância tem para CLEORA se FÚLVIA mantém ou não um comércio secreto de Amor com FILANDRO? Não tem ela igual razão para ficar satisfeita, quando lhe informaram (e isto é sussurrado entre os historiadores) que a mulher de CATÃO armara uma intriga com CÉSAR e convencera seu filho, MARCUS BRUTUS, de que o amava como marido, embora na verdade ele fosse seu amante? E não são os amores de MESSALINA e JÚLIA temas narrativos tão interessantes quanto qualquer intriga que esta cidade tenha produzido nos últimos anos?
Mas não sei de onde se tirou a ideia de que eu fui de algum modo contaminado por uma sorte de implicância contra as mulheres: A menos, talvez, que isto proceda do mesmo motivo que faz alguém que, sendo o companheiro favorito de uma mulher, é também objeto de pilhérias e brincadeiras, ainda que bem-intencionadas. De qualquer forma, é agradável nos dirigirmos a alguém que nos é agradável; e presumir, ao mesmo tempo, que nada será levado a mal por alguém que esteja seguro da boa opinião e dos afetos de qualquer um presente. Passarei agora a abordar meu tema mais seriamente, e apontarei as muitas vantagens que resultam do estudo da história; mostrarei também como este é adequado a todas as pessoas, mas particularmente àquelas que se privam dos estudos mais rigorosos, pela fragilidade de sua natureza ou pela fraqueza de sua educação. As vantagens encontradas na história parecem se dividir em três tipos: ela entretém a imaginação, desenvolve a compreensão e fortalece a virtude.
Será que existe, a rigor, um entretenimento mais agradável ao espírito do que ser transportado às mais remotas épocas do mundo e observar a sociedade humana em sua infância, fazendo os primeiros e débeis ensaios em direção às artes e ciências? Do que ver a política dos governos, e a civilidade da conversação se refinarem pouco a pouco, e tudo o que é ornamental à vida humana avançar rumo à sua perfeição? Observar a ascensão, o progresso, o declínio e a extinção final dos impérios mais poderosos; As virtudes, que contribuíram para a sua grandeza, e os vícios, que provocaram a sua ruína? Resumindo, ver toda a raça humana, desde o início dos tempos, passar como numa retrospectiva diante de nossos olhos; aoarecendo em suas cores verdadeiras, sem qualquer daqueles disfarces que, durante o seu tempo de vida, comprometeram o julgamento de tantas pessoas: Pode-se imaginar espetáculo mais magnífico, mais variado e interessante? Que diversão, tanto dos sentidos quanto da imaginação se lhe pode comparar? Aqueles passatempos triviais, que absorvem tanto do nosso tempo, podem ser considerados mais satisfatórios e mais dignos de atrair nossa atenção? Quão pervertido deve estar um gosto capaz de fazer uma escolha de prazer tão equivocada!
Mas a história desenvolve o conhecimento, além de constituir uma diversão agradável; e uma grande parte daquilo que geralmente chamamos de Erudição e que temos em tão alta conta não é senão uma familiaridade com os fatos históricos. Um conhecimento extenso deste tipo pertence aos homens de letras; mas devo julgar uma ignorância imperdoável das pessoas, seja qual for seu sexo ou condição social, que não conheçam a história de seu próprio país, além da história da GRÉCIA e de ROMA. Uma mulher pode se comportar com boas maneiras, até mesmo demonstrar alguma vivacidade e inteligência; mas quando seu espírito é tão pouco estimulado, é impossível que sua conversação possa proporcionar qualquer entretenimento a homens sensatos e reflexivos.
Devo acrescentar que a história não é somente uma região valiosa do conhecimento, mas abre portas para muitas outras regiões, além de fornecer material para a maioria das ciências. E, de fato,se considerarmos a brevidade da vida humana, e o nosso limitado saber mesmo no que se refere ao nosso próprio tempo, devemos estar cientes de que seríamos eternas crianças no nosso conhecimento, se não fosse por essa invenção, que amplia a nossa experiência a todas as épocas passadas, e rumo às nações mais distantes; e que contribui significativamente para o progresso do nosso saber, como se toda a história se tivesse passado efetivamente sobre a nossa observação. De um homem familiarizado com a história pode-se dizer que, de certa forma, ele viveu desde o princípio do mundo e fez contínuas adições ao seu estoque de conhecimento a cada século.
Também existe outra vantagem naquela experiência adquirida por meio da história, acima do que é aprendido com a experiência do mundo, que é a de nos tornar familiarizados com os negócios humanos, sem diminuirmos em qualquer grau os nossos mais delicados sentimentos da virtude: E, para ser franco, eu não conheço qualquer estudo ou ocupação que possa exceder a história neste particular. Os poetas podem pintar a virtude com as cores mais encantadoras; mas, como eles se dedicam inteiramente às paixões, freqüentemente se tornam defensores do vício. Até mesmo os filósofos estão sujeitos a se confundir, nas sutilezas de suas especulações; e temos visto alguns deles chegarem ao ponto de negarem a realidade de todas as distinções morais. Mas julgo ser uma observação digna da atenção dos pensadores especulativos que os historiadores tem sido, quase sem exceção, os verdadeiros amigos da virtude e sempre representaram em cores adequadas, por mais que tenham errado em seus julgamentos de indivíduos particulares. O próprio MAQUIAVEL demonstra um autêntico sentimento de virtude em sua história de FLORENÇA. Quando se fala como um Político, em seus raciocínios gerais, ele considera o envenenamento, o assassinato e o perjúrio como meios lícitos do exercício do poder; mas quando fala como um Historiador, ele demonstra uma indignação tão intensa contra o vício e uma aprovação tão vigorosa da virtude, em muitas passagens, que eu não hesitaria em aplicar a ele aquela obsevação de HORÁCIO: Que, se você perturbar a natureza, ainda que com grande indignação, ela sempre se voltará contra você. Esta atitude dos histriadores a favor da virtude não é difícil de demonstrar. Quando um homem de negócios ingressa na vida e na ação, ele está mais inclinado a considerar as personalidades dos homens em relação aos seus próprios interesses do que pelas suas características em si; e o seu julgamento é, a todo momento, comprometido pela violência de suas paixões. Quando um filósofo contempla personalidades e costumes sem sair de seu gabinete, a visão abstrata geral dos objetos que desenvolve deixa a sua mente tão fria e apática que não sobra espaço para os sentimentos de natureza agirem; e ele mal precebe a diferença entre o vício e a virtude. A história mantém um justo equilíbrio entre esses dois extremos, abordando sempre os objetos de um ponto de vista adequado. Os autores da história, bem como os leitores, estão suficientemente interessados nos personagens e acontecimentos para terem um vívido sentimento de vergonha ou satisfação; e ao mesmo tempo, eles não tem um interesse ou preocupação particular qualquer que corrompa o seu julgamento.
Verœ voces tum demum pectore ab imo Eliciuntur1"
1 - LUCRÉCIO De rerum natura 3.57-58 [...só então as palavras verdadeiras vêm do fundo do coração.]
Fonte: HUME, David Ensaios Morais, Políticos e Literários. introdução à edição brasileira Renato Lessa, editado por e com prefácio e notas de Eugene F. Miller, tradução de Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004 (Liberty Classics) pp. 781-787
Sobre afirmar-se como professor.
Na ocasião de uma feira científico-cultural, realizada em 2007, na escola em que eu lecionava, o coordenador pedagógico sugeriu ao corpo docente o uso de uma camiseta branca com os seguintes dizeres: “Sou mais que professor, sou educador” (ou algo semelhante, e o nome da escola, se acima ou embaixo da frase, não me recordo). Esse slogan já fazia parte do seu discurso enquanto coordenador pedagógico, pontificando a respeito das dimensões “mais amplas, mais profundas” da profissão docente e do ato de ensinar.
Não vesti a tal camisa. Trajei uma preta, em parte porque gosto mais de roupas escuras; em parte porque passava por um momento difícil e estressante, e o slogan e seu ideário causavam-me ojeriza.
Talvez considerasse um discurso infame, mascarando com palavras bonitas e vazias uma realidade mais complexa. Um analgésico que alivia um pouco a dor, mas esconde uma infecção mais aguda e que precisa ser cuidada de forma mais premente. De certa forma continuo pensando assim, mas pretendo articular essa repulsa num discurso mais organizado.
Com a melhor intenção possível, o coordenador pretendia criar um “clima de união”, “solidariedade” entre os professores. Era início do quarto bimestre, ninguém aguentava mais tanta tensão etc.
Segundo o discurso corrente ser educador seria algo mais “amplo”, “adequado” à contemporaneidade da profissão docente, enquanto à palavra professor, cuja função se limitaria a um mero “transmissor de conhecimentos”, aquele que “ensina” determinado conteúdo, e não mais do que isso. Como se fosse demeritório, vergonhoso ensinar a legalidade de uma ciência ou outro saber escolar.
Portanto, há uma positividade concedida à palavra educador, enquanto professor tende a concentrar certa negatividade, uma marca de “insuficiência”, “limitação”, não compatibilidade a sociedade e a escola tal como se configuram hoje. Refiro-me a "sociedade" e "escola" como certos discursos veiculado por algumas instituições e meios (econômicos, políticos, pedagógicos e midiáticos)que pensam como "realmente" a "sociedade" e a "escola" devem "ser" e "funcionar", desconsiderando a complexidade do real.
Não vejo problema algum em me considerar professor. Aparecem algumas manifestações de consideração, o fato de que sou “um sofredor”. Com certeza o pouco prestígio da profissão incomoda enormemente. Todavia, autodenominar-se “educador” não muda muito a situação.
Neste blog me defino como historiador e professor. Isto leva a uma outra historinha: nos meus tempos de graduação na FFLCH – USP, ou mais precisamente na licenciatura em História pela FE da mesma universidade, as aulas de metodologia do ensino eram um desfile de lamentações, em especial daqueles que já lecionavam há algum tempo na rede pública ou particular. Em dado momento alguém afirmava que era historiador e não professor de história. Creio que o (ou a) colega não estava desqualificando a figura do professor, apenas afirmando uma identidade profissional, ainda mais porque a profissão de historiador ainda espera pela sua regulamentação (os projetos de lei que surgiram eram insatisfatórios).
No entanto, tal manifestação não esconde certo mal-estar pela condição atual do trabalho docente; pouco reconhecimento social, indiferença de parte dos alunos e famílias, precariedade de recursos, remuneração injusta, jornadas de trabalho enormes, pouco tempo para se aprimorar culturalmente, situações de violencia... O que é triste, pois o imaginário do professor de história que eu tive na infância e adolescência é forte, ele abriu portas para o conhecimento de outros tempos e realidades, influenciando nas escolhas profissionais de alguns, (em parte é meu caso).
Existe também a imagem do professor de história “dogmático e doutrinador político” (é só falar mal do governo que você ganha boa nota com ele, rssssss). Mas fica para outra ocasião.
Dada à condição neotênica dos seres humanos, ou seja, o nosso inacabamento ao nascer, a infância longa e o processo de desenvolvimento contínuo que continua após o nascimento, a educação e função do educador é algo anterior à invenção das instituições de ensino e configuração da profissão docente. Daí o papel primordial da família na transmissão da cultura. O ato de educar é uma característica humana.
Portanto, de certa forma, todos somos “educadores”. Em certas ocasiões aprendemos e ensinamos formal ou informalmente determinados momentos. No entanto, há uma diferença em afirmar-se professor e ser educador. Não pretendo diabolizar a palavra "educador", apenas atentar para o fato de que ela pode ser um meio que desqualifica o trabalho específico do educador segundo determinados interesses.
O que está em jogo aqui é a especificidade do trabalho do professor. Trata-se de uma escolha profissional, exercida em instituições, com regras, saberes e hierarquias próprias, num contexto de tradições públicas, que compreendem o ensinar a ler e escrever, o ensino de artes, ciências e outras formas de conhecimento que possuem critérios de avaliação e validação. Não é (ou não deveria ser) qualquer coisa.
Etimologicamente, a palavra professor (lat professor, ōris) formou-se a partir do latim profiteri, com o mesmo significado, formada por fateri (confessar), com o prefixo pro- (diante, no sentido de algo, alguém “à vista, diante de todos). A partir de certo momento da história, o professor passou a ser aquele que professava, ou seja, declarava, proclamava publicamente que possuía determinados conhecimentos relativos a certas áreas do saber e que podia transmití-los. Compreender as razões que levam muitos profissionais da educação a se envergonhar desta designação e as injunções políticas e ideológias que alimentam esta situação é a tarefa que continuarei numa futura postagem. Por mim, sem falsos medos e pudores, prefiro ser chamado de professor do que o demasiado vago (e um tanto enganoso) termo educador.
Etimologicamente, a palavra professor (lat professor, ōris) formou-se a partir do latim profiteri, com o mesmo significado, formada por fateri (confessar), com o prefixo pro- (diante, no sentido de algo, alguém “à vista, diante de todos). A partir de certo momento da história, o professor passou a ser aquele que professava, ou seja, declarava, proclamava publicamente que possuía determinados conhecimentos relativos a certas áreas do saber e que podia transmití-los. Compreender as razões que levam muitos profissionais da educação a se envergonhar desta designação e as injunções políticas e ideológias que alimentam esta situação é a tarefa que continuarei numa futura postagem. Por mim, sem falsos medos e pudores, prefiro ser chamado de professor do que o demasiado vago (e um tanto enganoso) termo educador.
Assinar:
Postagens (Atom)