quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Soylent Green (1973), direção: Richard Fleischer





Um dos momentos emblemáticos do filme Soylent Green (EUA, 1973, direção de Richard Fleischer) acontece em um confronto entre a multidão e a polícia nas ruas da New York de 2022. O povo é reprimido com auxílio de enormes escavadeiras. Assim temos a inusitada cena de pessoas sendo colhidas pelas pás e colocadas para dentro dos veículos igual a sacos de lixo ou simplesmente sendo arremessadas para longe a fim de desobstruir as ruas.

A massa é representada por figurantes cobertos de poeira, alguns usando máscaras cirúrgicas, toucados e lenços nos cabelos, roupas largas acizentadas ou esverdeadas. Olhares distantes, tristes e indignados. Algo análogo aos prisioneiros dos campos de concentração. Ou funcionários de limpeza que mal damos conta da existência.





De que trata Soylent Green?

Na segunda década do século XXI a paisagem da Terra está extremamente modificada. O calor é impiedoso e contínuo. A luta pela sobrevivência é estenuante. O verde é raríssimo nas grandes cidades e o que restou dos campos é protegido militarmente como se fosse um tesouro. Boa parte da vida animal está quase extinta. Sendo assim, o consumo de carne é um privilégio e a maioria da população é compulsoriamente vegetariana. Todavia, legumes, verduras e frutas não estão acessíveis a todos. Por exemplo, um frasco com frutas custa cerca de 150 dólares. O povo é alimentado através de tabletes verdes industrializados em larga escala chamados de Soylent Green (algo como as nossas barrinhas de cerais). Oficialmente somos informados que sua composição consta de algas marinhas e plancton dos oceanos.

O filme segue mostrando a rotina do policial/ detetive Robert Thorn na superpopulosa New York de 2022. É um caos de mais de 40 milhões de habitantes, onde o desemprego atinge metade deste contigente. Há graves problemas de abastecimento de água. Os sem teto dormem amontoados nos cantos. Funerais não existem mais. Os mortos são levados em veículos semelhantes a caminhões de lixo.





Thorn possui certo senso do seu dever. É a única coisa que lhe sobrou numa sociedade esgarçada. Procurar outra colocação ou constituir uma família parece uma insanidade neste contexto. Portanto tenta fazer seu trabalho da melhor forma possível, dentro da estrutura precária e corrupta. Ainda tem alto grau de malandragem e jogo de cintura para sobreviver.

O policial é incubido de investigar o assassinato de um homem rico, William R. Simonson (Joseph Cotten), ligado à corporação que produz o Soylent Green, em seu luxuoso apartamento. Todavia, ele parece ter aceitado deliberadamente sua morte, após um breve e enigmático diálogo com o seu executor. Assim a missão de Thorn começa sem muitas pistas. Shirl (Leigh Taylor-Young), a namorada (ou melhor, espécie de concubina e secretária) de Simonson não se encontrava no momento. O mesmo acontece com o guarda-costas do morto.

Então, o misterioso petisco esconde um segredo terrível. Já não tarda muito a vida de Robert Thorn estar sob ameaça.

Com o tempo aparece um laço de afeição entre Thorn e a belíssima Shirl. Seu status social é curioso. Depende das graças de cada novo ocupante do sofisticado apartamento, geralmente executivos, políticos e empresários. Tem que agradá-los (em vários sentidos) para não correr o risco de ficar na rua. Considerá-la um tipo de prostituta é algo um tanto redutor. É uma personagem que durante o filme todo não apresenta nenhuma explosão de violência. Aparentemente tenta manter o sangue frio e certa racionalidade, calculando suas chances de se dar bem neste ambiente áspero.  Em dado momento o detetive Thorn pergunta a ela como consegue manter a serenidade em meio a esta situação no fio da navalha em que vive...

Thorn divide seu apartamento com o idoso Sol Roth, homem de vasta cultura e enorme carga de sofrimento. Ex-músico e professor universitário Sol constitui a alma do filme, pois é como um guardião da memória. Conheceu e saboreou parte do mundo antes da catástrofe social e ambiental. Seus diálogos espirituosos com Thorn são excelentes. De partir o coração é a cena em que Thorn aparece com um pedaço de carne (e outras coisas) que havia surrupiado numa investigação e o oferece a Sol, que depois prepara um jantar como há muito não fazia.
Este personagem é o ponto de convergência em torno do mistério do filme, pois ao tomar conhecimento do segredo do Soylent Green decide que sua estadia na Terra está encerrada, mas incube Thorn de divulgar a verdade para todos.

Num momento decisivo, Sol parte para uma instituição governamental chamada Casa, que pratica uma forma de eutanásia. Após o medicamento ser aplicado, diluído numa bebida, Sol vai para uma sala onde é envolvido por projeções em alta definição com cenas do mundo que havia conhecido e que não existe mais. Incube Thorn de desvendar e revelar a humanidade o mistério que envolve Soylent Green.

A figura de Sol Roth é ainda mais poderosa porque o veterano ator Edward G. Robinson interpretou-o em precárias condições de saúde. Poucos dias depois das filmagens morreria de câncer.




Quanto a presença de traquitanas futuristas, há em Soylent Green um grande despojamento. Não existe grandes acréscimos nos armamentos e comunicações. Os telefones são bastante convencionais, bem como revólvers e metralhadoras. Os veículos também seguem esta economia.
Talvez escritores e roteiristas do começo da década de 1970 não imaginassem a revolução nas telecomunicações e informática que acontecereia nas décadas seguintes, em especial o salto entre o final do século XX e o início do XXI (e que permanece até hoje). Algo recorrente em muitas produções. Assim, não há nada que lembre minimamente um PC, celular, Notebook, Ipod, Smart Phones e Tablets. Se a criatividade humana não alçava grandes voos ou é uma opção estética, fica em aberto a questão.

Acredito que esta “pobreza” tecnológica seja intencional em Soylent Green, pois há um enorme abismo entre as classes. Não nos é mostrado muito do modo de vida dos poderosos, onde deve existir maior refinamento.
Quiçá a brutalidade e precariedade da vida em 2022 tenha atrofiado a inventividade dos cientistas e técnicos do futuro, onde questões básicas de sobrevivência sejam mais preementes do que o saber mais desinteressado e a ciência aplicada em campos menos imediatos.

O filme é uma adaptação, bastante livre segundo os críticos, de um romance de Harry Harrison, chamado Make Room! Make Room!(de 1966). No livro há uma exploração maior do tema do crescimento populacional. O roteiro do fime salienta mais a crise alimentar e a questão do suicídio assistido, além do direcionamento policial da trama. Não li o romance, embora exista tradução em português de Portugal, com o título de À beira do fim (nome que o filme recebeu em terras lusitanas), pelo Editorial Caminho. Analisando o filme em si mesmo, pareceu-me um roteiro bem construído.

Charlton Heston, em ótima forma e grande carisma, compõe um Robert Thorn cínico e humano (quando necessário). Com o fim dos grandes épicos, o ator protagonizou alguns clássicos da ficção científica de teor mais apocalítico e com grande carga de crítica social (em especial o pacifismo e a questão ambiental), como o Planeta dos Macacos (Planet of the Apes, 1968,Franklin Schaffner) e A Última Esperança da Terra (The Omega Man, 1971, de Boris Sagal). A direção de Richard Fleischer (1916-2006) é bastante segura e o filme não merece reparo algum. Grande representante do cinema de gênero, o artesão Fleischer mereceria maior destaque e reconhecimento. Longe de ser um "autor", proporcionou grandes momentos na história do cinema. Seu trabalho anterior foi um ótimo drama policial, Os Novos Centuriões (The New Centurions, de 1971). Talvez o asfalto violento da Los Angeles deste filme tenha servido como balão ensaio para o clima desesperançado da distopia de Soylent Green.

Ficha técnica:

Título original: (Soylent Green) [br: No Mundo de 2020 / pt: À Beira do Fim]
Lançamento: 1973 (EUA)
Duração: 97 min.
Direção: Richard Fleischer
Roteiro: Stanley R. Greenberg
Edição: Samuel E. Beetley
Fotografia: Richard H. Kline
Música: Fred Myrow
Produção: Walter Seltzer, Russel Thacher
Distribuição: Metro-Goldwyn-Mayer

Elenco principal:

Charlton Heston(Detetive Robert Thorn)
Leigh Taylor-Young (Shirl)
Chuck Connors (Tab Fielding)
Joseph Cotten (William R. Simonson)
Brock Peters (Tenente Hatcher)
Paula Kelly (Martha Phillips)
Edward G. Robinson (Sol Roth)
Stephen Young (Gilbert)
Mike Henry (Sargento Kulozik)



2 comentários:

Anônimo disse...

Grande review, eu também amo este filme, embora seja o filme mais perturbador jamais feito e, na verdade eu nunca consegui assistir ele inteiro.

Eu li o livro no qual o filme é baseado, todavia, "Make room, make room!", de harry Harrisson.

Sobre a ausência de tecnologia no filme, isto deveria ser óbvio, os combustíveis fósseis a muito estão praticamente exauridos, produção em massa com certeza não funciona mais, o alto índice de desemprego também torna inviável a produção de bens de consumo para as faixas mais pobres da população

Some isto ao fato de ninguém mais possuir energia elétrica, exceto os muito ricos (veja o que sol tem de fazer para alimentar sua geladeira.

Em um futuro como este, nossa ciência talvez permanecesse intacta, mas, com certeza perderíamos os confortos que hoje possuímos.

Não precisamos ir longe para um vislumbre deste mundo, todavia, tente bangladesh, o Haiti ou as favelas da Índia.

MARCELO disse...

Caro anônimo

Muito obrigado pelo comentário. Você destacou detalhes que me passaram despercebidos, como a falta de combustíveis fósseis e do racionamento de eletricidade. De fato, o desemprego e miséria colossais de 2022 atrofiaram a produção e o consumo de bens industrializados para a maioria da população.

Abraço, Marcelo.