"Em nossos dias, como
nos dele, muitos jovens são levados ao extremismo político, às
vezes por condições realmente terríveis, mas também por uma
necessidade de dar sentido à sua vida. E, como a falta de sentido
costuma ser acompanhada de uma sensação de culpa, eles às vezes
respondem a uma ideologia de polarização intensa, em que recuperam
o senso de direção, assim como uma sensação de pureza, ao se
alinhar numa oposição implacável às forças das trevas. Quanto
mais implacável, e até mesmo violenta, a oposição, tanto mais a
polaridade é apresentada como absoluta e tanto maior a sensação de
distanciamento do mal e, por isso, de pureza. Os Demônios, de
Dostoiévski, é um dos grandes documentos dos tempos modernos,
porque põe a nu a forma pela qual um ideologia de liberdade e amor
universal pode mascarar um ódio ardente, dirigido para fora contra
um mundo regenerado e gerando destruição e despotismo.
(…) Há outras
consequências da benevolência obrigatória, que Nietzsche não
explorou. A ameaça da sensação da falta de valor também pode
levar à projeção do mal no lado de fora; o mal, o fracasso, é
identificado agora com algum outro povo ou grupo. Minha consciência
está limpa porque me oponho a eles, mas o que posso fazer? Eles são
o obstáculo à beneficência universal; precisam ser liquidados.
Isto se torna particularmente virulento nos extremos do espectro
político, de uma forma que Dostoiévski explorou com uma
profundidade sem paralelo.
(…) A meu ver, de
todos esses exemplos emerge uma verdade geral: os mais elevados
ideais e aspirações espirituais também ameaçam impor as cargas
mais esmagadoras à humanidade. As grandes visões espirituais da
história também foram cálices envenenados, causas de miséria
indescritível, e até de selvageria. Desde os primórdios da
história humana, a religião, nosso vínculo com o mais elevado,
esteve repetidas vezes associada a sacrifício e até mutilações,
como se algo em nós tivesse de ser destruído ou imolado, forma pela
qual se quiséssemos agradar aos deuses (…) O que precisamos é de
um humanismo sóbrio, secular e científico."
As
Fontes Do Self: A Construção da Identidade Moderna. tradução
de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1997 pp.658,659,661
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