O culto
da “cultura popular” não passa, no mais das vezes, de uma
inversão verbal e inconsequente, portanto falsamente revolucionária,
do racismo de classe que reduz as práticas populares à barbárie ou
à vulgaridade. A exemplo do que sucede com certas comemorações da
feminilidade que apenas reforçam ainda mais o domínio masculino,
essa maneira um tanto confortável de respeitar o “povo”,
contribuindo,
sob a aparência de exaltá-lo, para encerrá-lo ou enfurná-lo no
que ele é, ao converter a privação em escolha ou em realização
eletiva, acaba proporcionando todas as benesses de uma ostentação
de generosidade subversiva e paradoxal, deixando as coisas como
estão, ou seja, uns com sua cultura (ou língua) realmente cultivada
e capaz de absorver sua própria subversão elegante, outros com sua
cultura ou língua destituídas de qualquer valor social ou sujeitas
a brutais desvalorizações (como o broken english a que se
refere Labov), esses últimos ficticiamente reabilitados por uma
espécie de foice fazendo as vezes de escrita teórica.
Isto
significa que as “políticas culturais” em prol dos mais
destituídos estão condenadas a oscilar entre duas formas de
hipocrisia (como se pode constatar hoje pelo tratamento dispensado às
minorias étnicas, sobretudo aos imigrantes): de um lado, em nome de
um respeito ao mesmo tempo condescendente e inconsequente
particularidades e particularismos “culturais” ferozmente
impostos e vivenciados, que acabam assim constituídos em escolhas –
refiro-me, por exemplo, ao manejo por parte de certo conservadorismo
do “respeito pela diferença” ou a essa invenção inimitável de
certos especialistas americanos dos guetos que vem a ser a noção de
“cultura da pobreza” – , os destituídos são acorrentados a
seu estado e impedidos de terem acesso aos meios reais de levar a
cabo suas possibilidades mutiladas; de outro lado, impõe-se
universalmente (como a instituição escolar hoje) as mesmas
exigências sem qualquer preocupação de também distribuir
universalmente os meios de satisfazê-las, contribuindo desse modo
para legitimar a desigualdade que muitos se contentam em registrar e
ratificar, exercendo, de lambujem, e primeiro na escola, a vilência
simbólica associada aos efeitos da desigualdade real em meio à
igualdade formal. (Eis uma constatação de fato bastante
desesperadora quando se sabe que, ao menos nos Estados modernos, está
completamente fora de cogitação a possibilidade de que os dominados
se reapropriem eles mesmos de algo próximo a uma cultura própria no
intuito de enobrecê-la, por conta do efeito exercido pelas forças
de imposição cultural, e de desaculturação, a começar pela
instituição escolar que se mostra bastante eficiente na tarefa de
destruir as tradições culturais marginais – com elaboração dos
meios de comunicação de massa – sem ser capaz de franquear
amplamente o acesso à cultura central).
BOURDIEU,
Pierre Meditações Pascalianas. Tradução: Sérgio Micelo. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007 pp. 93-94
Em suma,
a “cultura popular” é um saco de gatos. As próprias categorias
empregadas para pensá-la, as questões que lhe são colocadas são
inadequadas. Em vez de falar sobre a “cultura popular” em geral,
darei o exemplo daquilo que é chamado de “linguagem popular”.
Aqueles que se insurgem contra os efeitos de dominação exercidos
através do emprego da língua legítima costumam chegar a uma
espécie de inversão da relação de forças simbólicas e acreditam
agir bem ao consagrar como tal a língua dominada – por exemplo, em
sua forma mais autônoma, isto é, a gíria. Essa passagem do a favor
para o contra, que também se observa em matéria de cultura quando
se fala em “cultura popular”, ainda é um efeito da dominação.
De fato, é paradoxal definir a língua dominada em relação à
língua dominante. Efetivamente não há outra definição de língua
legítima, senão que ela é uma recusa da língua dominada, com a
qual ela institui uma relação que é a relação da cultura com a
natureza: não é por acaso que se fala de palavras “cruas” e
“língua verde”. Aquilo que é chamado de “língua popular”
são modos de falar que, do ponto de vista da língua dominante,
aparecem como naturais, selvagens, bárbaros, vulgares. E aqueles que
por uma preocupação de reabilitação, falam de língua ou de
cultura popular são vítimas da lógica que leva os grupos
estigmatizados a reivindicar o estigma como razão de sua identidade.
Forma distinta da língua “vulgar” - aos próprios olhos de
alguns dos dominantes – a gíria é produto de uma busca de
distinção, porém dominada, e condenada, por essa razão, a
produzir efeitos paradoxais, que não podem ser compreendidos quando
se quer encerrá-los na alternativa da resistência ou da submissão
que comanda a reflexão sobre “língua popular”.
Quando a busca dominada de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo mesmo em nome do que eles são dominados e constituídos como vulgares, deve-se falar de resistência? Em outros termos, se, para resistir, não tenho outro recurso a não ser reivindicar aquilo em nome do que eu sou dominado, isso é resistência? Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se esforçam em perder aquilo que os marca como “vulgares” e por se apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão? Acho que essa é uma contradição insolúvel: é uma contradição que está inscrita na própria lógica da dominação simbólica, mas as pessoas que falam de “cultura popular” não querem admiti-la. A resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora. Tal é o paradoxo dos dominados, e não há escapatória. De fato, e mais complicado ainda, mas creio que isso já é suficiente para embaralhar um pouco as categorias simples, em particular a oposição entre resistência e submissão, com as quais se costuma pensar essas questões. A resistência situa-se em terrenos muito diferentes do terreno da cultura em sentido estrito – onde ela nunca é obra dos mais despossuídos, o que testemunham todas as formas de contra-cultura, que, como eu poderia mostrar, supõe sempre um determinado capital cultural. E ela adquire as formas mais inesperadas, a ponto de permanecer quase invisível para um olho cultivado.
Quando a busca dominada de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo mesmo em nome do que eles são dominados e constituídos como vulgares, deve-se falar de resistência? Em outros termos, se, para resistir, não tenho outro recurso a não ser reivindicar aquilo em nome do que eu sou dominado, isso é resistência? Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se esforçam em perder aquilo que os marca como “vulgares” e por se apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão? Acho que essa é uma contradição insolúvel: é uma contradição que está inscrita na própria lógica da dominação simbólica, mas as pessoas que falam de “cultura popular” não querem admiti-la. A resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora. Tal é o paradoxo dos dominados, e não há escapatória. De fato, e mais complicado ainda, mas creio que isso já é suficiente para embaralhar um pouco as categorias simples, em particular a oposição entre resistência e submissão, com as quais se costuma pensar essas questões. A resistência situa-se em terrenos muito diferentes do terreno da cultura em sentido estrito – onde ela nunca é obra dos mais despossuídos, o que testemunham todas as formas de contra-cultura, que, como eu poderia mostrar, supõe sempre um determinado capital cultural. E ela adquire as formas mais inesperadas, a ponto de permanecer quase invisível para um olho cultivado.
BOURDIEU,
Pierre Coisas ditas. Tradução: Cássia R. da Silveira e Denise
Moreno Pegorim; revisão técnica: Paula Montero. São Paul:
Brasiliense, 1990 pp. 186-187
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