terça-feira, 24 de julho de 2012

Michel de Pracontal - A impossível unicidade do saber...




O francês Michel de Pracontal (nascido em 1954) é mestre em Matemática e doutor em Ciências da Informação sobre divulgação científica. Jornalista científico, é autor de, entre outros livros, Les mystères de la memoire del'eau (La Découverte, 1990), La guerre du tabac (Fayard, 1998) e o mais recente, Kaluchua - Cultures, techniques et traditions des sociétés animales  (Le Seuil, 2010), sobre uma possível existência de “cultura animal”, em especial entre os primatas, caracterizada pela transmissão de informações para gerações sucessivas, sem passar pela genética. Tema ainda sujeito a muitas pesquisas e discussões dentro da comunidade científica. Este último merece uma edição brasileira.
Seu único livro traduzido para o português é A impostura científica em dez lições (tradução: Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 2004). Originalmente publicado em 2001 (é a revisão de uma obra de 1986, agora enriquecida com novos conhecimentos). Por impostura científica podemos englobar um domínio muito amplo, que passa pelo charlatanismo, divulgação de meias-verdades, desonestidade intelectual, falta de ética ou mesmo teses enunciadas por pesquisadores sérios, mas que empírica e teoricamente são frágeis, embora sejam muito sedutoras para parte da academia, público e mídia. A mídia, aliás, tem seu quinhão de responsabilidade na promoção de muitas imposturas. Abrange também as chamadas pseudo-ciências, tipo astrologia, ufologia, parapsicologia...
Trata-se de um autor cético, mas de uma tradição diferente do ceticismo anglo-saxão que tem grande popularidade entre nós (cf. Daniel Dennet, Richard Dawkins, Sam Harris e o falecido Christopher Hitchens outros). De firme acento popperiano, não é um cientificista extremo. Reconhece o valor de saberes que não necessariamente se pautam pela mesma metodologia das ciências naturais, como a psicanálise e as ciências humanas.
Transcrevo uma parte do capítulo 7, mais precisamente os itens "A impossível unicidade do saber"; "O homem é a finalidade do universo?" e "O paradigma do umbigo". Pracontal discute a questão da pretensa "unicidade do conhecimento" (denominada por alguns de "holismo") de forma bastante apurada e incisiva. A complexidade das ciências e demais saberes a partir da modernidade tornam ilusória e prejudicial ao conhecimento a insistência nesta improvável "unidade". 



A impossível unicidade do saber.

O holograma cósmico é um mito moderno que reatualiza o pensamento holístico, visão do universo concebido como um Todo harmonioso cujas partes são interdependentes, à imagem de um organismo. O taoismo, tal como o descreve Joseph Needham, é um pensamento holístico. O Unus Mundi, ele também, procede de uma concepção holística, e mais geralmente o holismo se encontra, com algumas variantes, em inúmeras mitologias tradicionais, se não em todas, pois é a maneira mais “natural” de pensar o cosmos, o berço de toda cosmologia. A época moderna nos arrancou da doçura desse berço e nos jogou brutalmente num universo em pedaços, onde não existe relação harmoniosa entre o todo e as partes. Nossa cosmologia é a do Big Bang, da grande explosão, e certamente não é indiferente que o período histórico em que nos encontramos tenha começado por outra explosão, a de Hiroshima.

Essa situação tem pesadas consequências sobre a maneira como o homem contemporâneo pensa sua relação com o universo. Aumentando nosso poder sobre a natureza, a ciência e a tecnologia também tornaram mais complexas nossas relações com ela. Os mitos e as religiões não permitiam domesticar energia do átomo, pousar na Lua ou realizar um transplante de coração, mas proporcionavam a “paz dos sentidos”. Hoje, o “império dos sentidos” explodiu. Dele resulta uma perturbação da qual os gurus de plantão e os impostores de toda espécie tiram proveito. Mas observam-se também tentativas de restaurar o Unus Mundi, ou em todo caso uma forma de unidade do mundo, que não são puros engodos intelectuais, mesmo que continuem sendo ilusórias.
Eu classificaria nessa categoria intermediaria a concepção de Teilhard de Chardin, segundo a qual a última grande etapa da evolução, a “noogênese”, corresponderia a uma espiritualização progressiva da matéria da qual o homem seria a chave e que convergiria para um “ponto ômega”. Ou ainda, a “hipótese Gaia” de James Lovelock, segundo a qual a Terra é um “superorganismo”, um “ser vivo” macroscópico, de cuja vida participam plantas e animais 19 (Gaia ou Ge é uma divindade grega que personifica a Terra). Nos dois casos, trata-se de metáforas evocativas, não de mecanismos que se podem observar e verificar experimentalmente.

A ideia de Lovelock é sedutora e fornece um poderoso suporte imaginário para representar os sistemas ecológicos e suas inter-relações. Não é de admirar que essa ideia conheça uma grande voga no momento em que todos se preocupam com o efeito estufa e a mudança global do clima. Mas tomar a hipótese Gaia ao pé da letra leva a uma representação errônea. A Terra não é um organismo no sentido biológico: ela não se reproduz e não foi “gerada” por organismos da mesma espécie que ela. Contudo, as diferentes formas de vida não são tão interdependentes como sugere a metáfora organicista de Lovelock. As extinções maciças que balizaram a história da vida sobre a Terra não impediram, a cada vez, que novas espécies se desenvolvessem em novos sistemas ecológicos. Mesmo que toda a vida desaparecesse de repente da superfície do globo, este último não deixaria de existir. E poderíamos até imaginar que a vida aparecesse uma segunda vez, sem relação com a primeira.

Claro que a Terra não é um simples cenário no qual os seres vivos evoluem. O desenvolvimento da vida provocou modificações da atmosfera e do clima e mudou em parte a figura da Terra, bem antes que as atividades humanas acrescentassem seus efeitos. É bem verdade que a vida apareceu no planeta quando este já existia havia um bilhão de anos, sem o mínimo vegetal ou animal. O fato de que a vida tenha sido possível se explica pelas condições físico-químicas que então reinavam. E se ela se manteve depois é, como diria La Palice, porque não foi destruída. Não é necessário procurar outra hipótese, salvo se, por razões que dizem respeito de fato à metafísica e à crença, alguém não conseguiu satisfazer-se com o caráter contingente e arriscado da existência dos seres vivos.

Detenhamo-nos sobre outro empreendimento notável, o do célebre naturalista americano Edward O. Wilson, pai da sociobiologia (ver Lição 3). No seu último livro, A unicidade do saber 20 se faz o paladino de uma unificação intelectual que reuniria todos os ramos do saber. Ele a chama “consiliência”, ressuscitando um velho termo inglês que significa uma “espécie de salto do saber, ligado pelos fatos e a teoria empírica, acima das diferentes disciplinas e visando criar uma base comum de explicação”. Talvez escaldado pelas polêmicas sobre a sociobiologia, Wilson começa por recuar para saltar melhor: “O fato de acreditar na consiliência para além das ciências e através dos grandes ramos do saber não pertence mais à ciência”. Escreve ele:

É uma visão metafísica do mundo, e ainda por cima minoritária, partilhada apenas por um pequeno número de cientistas e filósofos. Não se pode demonstrá-la pelo prisma de princípios lógicos fundamentais ou então apoiando-se sobre um conjunto determinado de testes empíricos, pelo menos não sobre aqueles de que dispomos hoje. A extrapolação dos sucessos anteriores das ciências da natureza parece confirmar essa visão.

Tomando essas precauções retóricas, Wilson se lança alegremente na extrapolação anunciada. Convencido de que as ciências da natureza se tornaram “conscilientes”, ele julga poder anunciar o renascimento da velha ideia da unidade íntima do saber. Segundo o naturalista, vamos ver surgir uma nova maneira de compreender a natureza humana, baseada nas ciências do cérebro, na ecologia e na biologia em geral. Para Wilson, os comportamentos humanos se transmitem pela cultura, ela própria criada pelo espírito humano, produto de nosso cérebro geneticamente determinado. De modo que os genes e a cultura estão indissoluvelmente ligados. Wilson crê particularmente que será possível formular “regras epigenéticas” que explicarão um grande número de traços do comportamento e da cultura – e que então a fronteira entre ciências sociais e ciências naturais desaparecerá. Ele toma como exemplo o “efeito Westermarck”, nome de um antropólogo finlandês que demonstrou que, quando duas pessoas compartilharam sua intimidade durante o início de sua vida, uma inibição sexual se instala entre elas. Wilson julga que esse efeito, que ele considera biológico, demonstra que o tabu do incesto não é uma construção cultura, mas um comportamento inato.
“A teoria social ortodoxa afirma que a moral consiste em grande parte em obrigações e deveres convencionais construídos pela moda e pelos costumes”, escreve Wilson. “A concepção oposta, defendida por Westermarck nos seus escritos sobre a ética, quer que os conceitos morais derivem de emoções inatas.” É claro que é essa concepção que o nosso autor compartilha.
Sem retomar o eterno debate sobre o inato e o adquirido, observemos que o discurso de Wilson é sustentado por um princípio metafísico unitário: o naturalista rejeita a priori a ideia de que possam existir várias ordens de realidade, várias classes de fenômenos heterogêneos. Ele não aceita que as teorias que explicam o funcionamento de nossos órgãos não tenham relação direta com as teorias da sociedade e da cultura, da mesma maneira que as teorias do átomo não nos dizem nada de interessante sobre o estilo Luís XVI ou a pintura da Renascença italiana. Para conservar a unidade, Wilson prefere explicar o incesto a partir do efeito Westermarck, o que é tão grosseiro e esquemático quanto pretender descrever um afresco de Michelangelo alando apenas dos materiais e dos colorantes utilizados. Wilson reduz a cultura ao biológico, enquanto sua demonstração, como ele próprio confessa é frágil.
O naturalista não efetua esta redução por necessidade de método, mas por um ato de fé: Wilson crê, de maneira quase religiosa, na ideia de um saber unificado. Sugere, aliás, que “a ciência é a religião libertada”. Ele impõe assim à ciência os antolhos de uma concepção globalizante que não aceita os cortes entres os ramos do saber. Evidentemente, é mais confortável evoluir num universo mental onde se está seguro de que as teorias são coerentes entre si e onde é garantido que o mundo tem um sentido. Essa, aliás, é a principal motivação que incita os homens a recorrer à “hipótese Deus”, tanto em ciência como em outra área. Mas a realidade é que nossas teorias são descrições fragmentárias, que elas não se ligam todas entre si e que não temos nenhuma garantia de que o mundo tenha um sentido, já que somos nós mesmos que produzimos esse sentido.

A posição de Trinh Xuan Thuan, o físico de A doença secreta, oferece uma variante interessante em comparação com a de Wilson. O físico reivindica sua fé num Deus organizador: “A cosmologia moderna nos ensinou que o Universo foi regulado com uma precisão extrema para que a consciência (baseada na bioquímica do carbono) apareça”, escreve ele. “Essa regulagem pode ser atribuída tanto ao acaso como a um Grande Arquiteto. Eu apostei na segunda hipótese.” E mais adiante: “Se as leis físicas diferem um mínimo daquilo que são, não estaremos mais aqui para falar disso! Essa regulagem de extrema precisão será um fato do puro acaso ou resulta da vontade de um ser supremo?”. Se o nosso físico crê então num plano divino, ele duvida que possamos conhecê-lo totalmente:

Não podendo escapar à nossa finitude, só poderemos estudar uma infinita parte desse vasto universo que é inteiramente interconectado. À custa de prodigiosos esforços de imaginação e criatividade, homens de gênio descobrirão cada vez mais conexões e a ciência progredirá. Mas jamais serão reveladas todas as conexões... A melodia permanecerá para sempre secreta.

Assim, ao contrário de Wilson que crê na possibilidade de um saber total, Trinh Xuan Thuan crê num Criador, mas duvida que possamos aceder ao saber total. Seu ceticismo se opõe ao grande sonho de uma teoria unitária, procurado por Einstein e seus sucessores. Os físicos chamaram “teoria de tudo” esse grandioso edifício que invocam com fervor. A teoria das supercordas (ver Lição 1) que se desenvolveu a partir dos anos 1970 parece ser um bom candidato para realizar essa unificação. Pelo menos no papel, já que nenhuma demonstração experimental validou a teoria das supercordas. Além disso, é preciso um entendimento sobre o sentido da palavra “tudo”: o objetivo dos físicos é reunir as duas teorias mestras da física, a relatividade e a teoria quântica, a fim de descrever o conjunto dos fenômenos elementares. Mas as limitações expostas se aplicam também às supercordas tanto quanto as teorias anteriores, elas não podem explicar precisamente por que o babirussa tem a forma de um babirussa ou quais as razões exatas das estruturas de parentesco entre os índios nhambiquaras.

Os físicos não pedem tanto. Eles procuram apenas tornar a física mais coerente, mais sintética. Alguns, como Trinh Xuan Thuan, creem que essa busca é sem fim. Outros se inclinam mais pela ideia de um resultado, de um ponto culminante da pequisa teórica. Não parece que possa haver hoje um desempate. Pode-se, entretanto, afirmar que até mesmo uma “teoria de tudo” não constituiria o saber total com que sonha Wilson, e ainda menos uma forma de Unus Mundi. O pensamento científico, baseado no raciocínio lógico e no confronto com a experiência objetiva, só pode operar recortando o real. Ele nos permite apreender melhor certos aspectos, com a condição de renunciar à percepção intuitiva e global que o mito nos oferece. E o que é ainda mais, nem sequer sabemos por que a ciência avança.

O homem é a finalidade do Universo?

Essa situação angustiante é difícil de aceitar, mesmo para os cientistas. “O homem está perdido na imensidão indiferente do Universo de onde emergiu por acaso?, escreve Jacques Monod. Para o físico americano Steven Weinverg, “quanto mais compreendo o Universo, mais ele nos parece vazio de sentido”. Trinh Xuan Thuan compara essas duas citações que exprimem a desilusão de um mundo sem piedade, no qual devemos contar com nossas próprias forças sem recorrer à providência divina para dar um sentido à nossa própria vida e à nossa história.
Nessa situação só há aspectos negativos. Ela oferece ao espírito uma liberdade sem precedentes, mas parece que os humanos não detestam tanto algo quanto detestam a liberdade. Assim que a ciência se emancipou da hipótese Deus e do plano do Grande Arquiteto, certos pesquisadores esforçaram-se para restaurar uma visão finalista. Não recorrendo, dessa vez, ao Criador, mas fazendo do próprio Homem a finalidade do Universo, a razão de ser da Ordem cósmica. Essa já é a perspectiva de Teilhard de Chardin. Ela foi reformulada em termos mais generosos no “princípio antropológico” do astrônomo britânico Brandon Carter. Esse princípio parte da constatação de que “ o Universo tem, exatamente, as propriedades requeridas para engendrar um ser capaz de consciência e de inteligência”. Para Brandon Carter e os defensores do princípio antrópico, isso não pode ser fruto do acaso.

Copérnico deve estar se revirando no túmulo. De que serviu ter mostrado que a Terra não ´´e o centro do mundo, se foi para concluir que o Universo só serve para permitir esse evento microscópico na escala cósmica: o aparecimento de uma espécie consciente e capaz de conceber teorias forçadas como a de Sheldrake! De que serviu renunciar ao geocentrismo, se foi para substituí-lo pelo antropocentrismo? Em A doença secreta, Trinh Xuan Thuan expõe com finura o “ataque concertado contra o fantasma de Copérnico”. Demonstra com brio que, por chocante que isso seja aos olhos de alguns, o Universo poderia ser acidental: “O fato de que as constantes físicas e as condições iniciais tenham sido capazes de engendrar a vida seria apenas uma coincidência feliz, sem grande interesse”. Um sábio poderia muito bem contentar-se em constatar que é assim: “A ciência moderna nasceu da recusa sistemática e categórica da explicação dos fenômenos naturais em termos de 'causas finais' ou de 'projeto', atitude própria das doutrinas religiosas”. Tal atitude, logicamente correta, evita os procedimentos finalistas de Pangloss ou de Bernardin de Saint-Pierre, para quem “as abóboras são grandes porque são feitas para serem comidas em família”.

Mas, acrescenta Trinh Xuan Thuan, “essa atitude, que encontra a aprovação do fantasma de Copérnico, suscita o desespero”. Para escapar dele, nosso físico inverte o problema com uma agilidade digna do mais casuísta dos jesuítas: “E se houvesse, assim mesmo, um projeto? Afirmar, sem nenhuma prova, que ele não existe é uma atitude tao pouco científica e dogmática quanto proclamar que ele existe.” 21 Certamente que é impossível provar, de maneira absoluta, que o projeto em questão não existe, tanto quanto não se pode provar que Deus não existe. É aquilo que se chama, em lógica, um problema indecidível (ver Lição 10). Mas existe uma certa má-fé na fé inabalável de Trinh Xuan Thuan: o fato é que, e ele próprio o demonstra, nenhuma hipótese finalista é necessária para construir as teorias científicas modernas; essas hipóteses são até mesmo um obstáculo, pois elas restringem o número de possibilidades.
Pode-se acrescentar que a questão de saber por que o Universo foi regulado com uma precisão extrema para que a consciência aparecesse é uma questão muito artificial. Ela vem da maneira como são elaboradas as teorias científicas. Procurou-se de que maneira se tinham formado o universo, as estrelas, o sistema solar, os planetas e a Terra; a cosmologia permitiu explicar isso; percebeu-se então que pequenas variações de alguns parâmetros poderiam resultar num mundo sem planetas. Perguntou-se o que era necessário para que a vida fosse possível, e revelou-se que a presença de água líquida era um fator determinante; ora, bastaria que a Terra estivesse um pouco mais perto do sol, como Vênus, para que só houvesse vapor; ou um pouco mais longe, como Marte, para que só houvesse gelo. Assim apresentado, o quadro dá a impressão de uma conjunção de coincidências extraordinárias. Entretanto, essa impressão vem sobretudo de que nós reconstruímos a história depois que aconteceu: é absolutamente necessário que os parâmetros sejam compatíveis com nossa existência, senão, não estaríamos aqui para teorizar. Isso não prova nada quanto à existência de um plano qualquer.
Se, ao voltar do meu trabalho, cruzo com um amigo e ando um pedaço do caminho com ele, e esse desvio imprevisto me leva diante de uma casa lotérica, e decido comprar um bilhete de loteria, e ganho o grande prêmio, será que devo considerar que um misterioso plano divino guiou meu amigo até mim para me fazer comprar o bilhete certo? Ou devo admitir, como sugere o simples bom senso, que comprei o bilhete por acaso e que eu poderia muito bem ter comprado outro e não ganhar nada?

O paradigma do umbigo.

Você conhece o paradoxo do mentiroso? Trata-se de saber se o mentiroso mente quando afirma que tudo o que ele diz é falso. Se ele mente o tempo todo, como pode dizer a verdade afirmando que mente?
Esse paradoxo reside num enunciado que se autodestrói. Existe uma analogia entre o problema do mentiroso e o problema das leis do mundo e as leis do espírito. Não podemos encontrar nenhuma solução prática, porque não se trata de um problema prático. Ele vem da maneira como formulamos as coisas. Resulta, de certo modo, do fato de que somo capazes de produzir um discurso lógico e pertinente a propósito de um mundo que, em si mesmo, não é logico nem ilógico. Trata-se de um efeito de sentido que vem de que um discurso não pode englobar totalmente o real. O paradoxo do mentiroso exprime o corte entre o discurso e o real, a autonomia das palavras em relação às coisas.
Os sistemas míticos ou religiosos que repousam sobre uma visão holística negam este corte. Não admitem que uma distância intransponível separe uma representação daquilo que é representado. Em termos imagéticos, o que diferencia um pensamento mítico de um pensamento racional é o corte
do cordão umbilical que liga a fala ao real. Na matriz do mito, a fala e o real mantêm uma relação tão amalgamada quanto a do feto com a mãe. A mensagem dos gurus de plantão convida a reconstituir um mundo sem corte entre o discurso e o rea, no qual consciência e matéria formam um uma mesma totalidade. Ele não pode chegar a um resultado, tanto quanto não se pode religar o cordão umbilical, uma vez cortado. Os humanos aprenderam a pensar por si próprios, e conheceram o poder do pensamento racional – mesmo ao preço da angústia e da incerteza. Não é possível retornar ao antigo mundo, à tranquilizadora matriz mítica.
A tentativa sempre recomeçada de reconciliar o mito e o discurso científico esbarra nesta impossibilidade: “Acontece que não existe correspondência entre a narrativa do Gênese e os dados da geologia”, escreve Gould. “Mas, se houvesse, isso não significaria muita coisa – porque apenas nos faria saber que são impostos limites aos tipos de história que podemos contar, e não nos ensinaria nada, nem sequer o murmúrio de uma lição, a respeito da natureza e do sentido da vida, ou de Deus.”22
A impostura dos gurus de plantão reside em que eles se situam ao mesmo tempo nos dois lados da matriz mítica: criticam os limites do pensamento analítico e lógico por meio de um discurso que, ele próprio, é analítico e lógico. Com muita frequência, só resulta uma verborreia fútil. Para fugir disso, David Bohm teve a ideia de inventar uma linguagem que refletiria sua visão da “ordem implicada”, de uma maneira fluida que não se divide em partes separadas. Bohm chamou essa linguagem “rheomodo”, do grego rheo, que significa “escorrer”. Em O universo espelho, John Briggs e David Peat descreveram assim o rheomodo:

Bohm tenta superar a fragmentação sujeito-verbo-objeto da maioria das línguas. Tomemos um exemplo simples dessa fragmentação: um gato e um rato passam por você, numa corrida desenfreada. Nós diríamos: “O gato persegue o rato”. Toda uma visão do mundo se acha envolvida nessa simples frase. Ela começa pelos substantivos “gato” e “rato” - objetos separados do universo... O verbo “persegue” é uma ação separada desses objetos, implicando, entre outras coisas, que a ação se realiza pelo gato sobre o rato. Todavia, a ação inteira é mais complexa. É uma dança de vida e de morte a qual o gato e o rato são inelutavelmente devotados. Bohm tenta vencer essas separações artificiais fazendo de todas as palavras de sua linguagem variações do verbo. 23

Não tenho certeza se o rato está de acordo. Estou pronto a apostar que ele preferiria permanecer como um objeto separado do gato em vez de se juntar a ele numa dança cósmica que terminará no estômago do felino. E como se traduziria em rheomodo: “O oficial da junta militar tortura o resistente”? Trata-se, aqui também, de uma fluida coreografia na qual o oficial, o resistente e o instrumento de tortura não passam de manifestações ilusórias de um ordem implicada que nos ultrapassa?
Se forço assim o traço é para ressaltar o perigo desses discursos sobre consciência cósmica desligada da realidade, e em particular pelo fato de que vivemos dentro de uma história real, que são sujeitos reais que falam, agem e assumem responsabilidades. Dizer que o mundo é uma totalidade da qual não podemos dissociar os objetos ou que cada um pode compartilhar as lembranças de todos significa dizer que tudo é possível, que tudo é verdadeiro e que tudo se equivale. Quer queiram quer não, os gurus de plantão têm uma ação autônoma e distinta da totalidade cósmica, mesmo que seja porque há pessoas que os ouvem e aderem às besteiras que eles contam.
Confrontados com a realidade concreta, os gurus de plantão escondem a cara. Ou será que deveria escrever que eles escondem o umbigo? Numa época em que Adão e Eva há muito abandonaram suas folhas de parreira, esse tipo de falso puritanismo parece bem fora de moda.

Notas:

19 James Lovelock, La Terre est un être vivant. L'hypothèse Gaïa, Paris: Flammarion, 1987 e 1993; Les Ages de Gaïa, Paris: Odile Jacob, 1990 e 1997 [ed. bras.: As eras de Gaia, Rio de Janeiro: Campus, s. d. ].

20 Edward O. Wilson, l'unicité du savoir. De las biologie à l'art, une même connaissance, Paris: Robert Laffont, 2000 (título original: Consilience, 1998; tradução de Constant Winter) [ed bras.: A unidade do conhecimento - coniliência. Rio de Janeiro: Campus, s. d.].
21 Trinh Xuan Thuan, op. cit.
22 Stephen Jay Gould, Quand les poules auront des dents, op. cit. [ed. port. citada]
23 John Briggs & David Peat, L'Univers miroir, traduzido em francês por Jacques Polanis, Paris: Robert Laffont, 1986

Fonte: Michel de Pracontal A impostura científica em dez lições, pp. 308-320

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