terça-feira, 28 de dezembro de 2010

J. R. R. Tolkien - Fantasia & Razão.




"A fantasia é uma atividade humana notável. Ela certamente não destrói, nem insulta a razão.
E também não ameniza ou obscurece a percepção da verdade científica. Pelo contrário. Quanto mais aguda e clara a razão melhor fantasia ela produzirá."


terça-feira, 16 de novembro de 2010

Monteiro Lobato, a eugenia e o racismo



O affair em torno ao parecer do Conselho Nacional de Educação, relacionado a elementos racistas no livro "As Caçadas de Pedrinho" de Monteiro Lobato (onde é efetuado um processo de desumanização da personagem Tia Anastácia e uso de uma linguagem considerada degradante, normalizando preconceitos), foi útil para expor o conflito entre concepções de educação, combate ao preconceito e a meu ver, a inabilidade de grande parte da Mídia, defensores do escritor, OAB e ABL em conduzir a discussão de forma produtiva e transparente, sem desqualificar vozes discordantes, sem o recurso fácil à teorias conspiratórias, temor da volta da censura e as infalíveis associações com a Inquisição, o Nazismo e ao "Grande Irmão" de Orwell, sempre zelando por nós. Quem leu o texto árido do parecer com atenção e distância crítica não pode viajar tanto... Apenas é recomendado um olhar crítico quanto a este material.

Muitos se iniciaram no universo da leitura através de Monteiro Lobato e seus personagens. Além de seus méritos como escritor, ele foi um idealista e homem de ação. Ao lado do contador de estórias, existe o polemista, o empreendedor, defensor de nosso desenvolvimento económico e auto suficiência energética, aquele que consolidou entre nós a indústria editorial. Estas facetas construíram um sólido vínculo afetivo. Parece doloroso e inadmissível encontrar algo que macule esta imagem. Ainda mais com o recrudescimento do ideário desenvolvimentista, a reboque do fim das eleições. Desse modo é fácil compreender a reação áspera, porém mal informada, de muitos, frente ao parecer. Todavia, negar que o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo está fora das relações culturais e sociais que estruturam os sujeitos, é ingênuo e pernicioso para o conhecimento de nossa realidade.


Há uma dimensão de classe com relação a este assunto. A maioria dos leitores de Monteiro Lobato é branca e provém de famílias com certo capital cultural. Quando “As caçadas de Pedrinho” e outros livros foram escritos, poucos negros, mestiços e mesmo brancos pobres tinham acesso à escola pública ou particular. O próprio ensino público estava nascendo e era um campo de lutas e discursos políticos, religiosos e pedagógicos muito disputado, e pouco tangível materialmente. Na década de 1960 o ensino seria massificado e atingiria parcelas mais expressivas da população, mas esta parte da história foge do centro desta postagem. Vale observar que boa parte (creio que a esmagadora maioria) destas pessoas não se tornou racista, demonstrando que o leitor, de maneira geral, não aceita ao pé da letra tudo o que lê. Há reinterpretação  e autoconsciência... No entanto, não se deve descuidar da necessária contextualização e crítica desta produção cultural quando for lida em sala de aula.


Monteiro Lobato adotava ideias que, hoje, consideramos racistas. Não obstante, dificilmente este escritor endossaria o recurso às câmaras de gás ou os linchamentos da Ku Klux Klan. Talvez, a maneira do presidente norte-americano Abraham Lincoln (1809-1865), reconhecia o crime que foi a escravidão, porém não acreditava na convivência das etnias e na miscigenação, que seria daninha à sociedade, defendendo então, uma espécie de desenvolvimento em separado, mas Lobato não se aprofundou muito nestas ideias.


E para complicar a situação também simpatizava com aspectos do eugenismo. Defino eugenia como o estudo dos meios capazes de proteger, aumentar e aperfeiçoar os elementos mais saudáveis e vigorosos das populações humanas, ou seja, de salvaguardar as qualidades genéticas das gerações futuras. O conceito de eugenia tornou-se palavrão, de certa forma compreensível, dado as atrocidades cometidas nos séculos XIX, XX, e ainda em curso em diversos pontos do planeta... No entanto, ela não é, necessariamente, sinônimo de racismo; sob certos aspectos, está presente em nossa realidade sem darmos conta. Remeto para um artigo , meio antigo, mas esclarecedor do geneticista Oswaldo Frota-Pessoa (1917-2010).


A questão é sinuosa. Nas primeiras décadas do século XX onde a demanda por "progresso", "regeneração nacional" e "aprimoramento da raça" estava na ordem do dia, no Brasil e na América Latina, a eugenia era a panacéia para debelar estes problemas... Não é difícil encontrar o criador da Emília e do Visconde de Sabugosa entre seus adeptos brasileiros. 

Em 1918 foi fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo (Sesp), a primeira da América Latina, sob inspiração do psiquiatra Renato Kehl, com cerca de 140 associados, entre os quais estavam o fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho, o sanitarista Arthur Neiva, o psiquiatra Franco da Rocha, o educador Fernando de Azevedo e o escritor Monteiro Lobato, que, numa carta à Renato Kehl, declarou o seguinte:


“Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (...) Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha. Lobato.” in História Viva , edição 49 - Novembro 2007 Eugenia, a biologia como farsa, por Pietra Diwan


Esta "poda" poderia ser realizada de diversas maneiras: esterilizações compulsórias de casais, restrições à imigração de certos povos considerados "não-assimiláveis" e proibição de casamentos inter-raciais. Existiam dentre os simpatizantes, aqueles que condenavam o racismo, como o médico e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, diretor do Museu Nacional, que apoiava a miscigenação e achava que o mal do Brasil estava nas doenças e falta de saneamento e não na "raça".


Um trecho revelador da “Barca de Gleyre” descortina este aspecto que muitos gostariam de ver embaixo do tapete:


(...)Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi ?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!... (in A barca de Gleyre. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).
Entretanto, o tom de lamentação do fragmento mostra mais uma atitude resignada frente a um fato consumado do que projeto eugenista com possibilidade de ser posto em prática. Um resmungo. Não dá para ser leviano, as ligações de Monteiro Lobato com as ideias racistas e eugenistas necessitam de estudos rigorosos e em especial desvendando como ele se apropriava delas a sua maneira. É interessante jogar Monteiro Lobato contra Monteiro Lobato. Não era uma persona unidimensional, como podemos ver nos trechos que selecionei abaixo:




"A diferença única é que a História é escrita pelos ocidentais e por isso, torcida a nosso favor. Vem daí considerar-mos como feras aos tártaros de Gêngis Khan e como heróis, com monumentos em toda a parte, aos célebres 'conquistadores brancos'. A verdade, porém, manda dizer que tanto uns como outros nunca passaram de monstros feitos da mesmíssima massa na mesmíssima fôrma."


História do Mundo para as Crianças. 15a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1958 [1933] p.206


"Os grandes povos da Europa consideravam-se os primeiros do mundo porque dominam os fracos. Mas dum ponto de vista mais elevado, o simples fato de ainda serem povos guerreiros, isto é, dos que só conseguem as coisas pela violência, prova que estão muito longe do que constitui a verdadeira civilização." 

"Aquela poesia de Castro Alves, 'Vozes da África', é bem certa... Este continente parece que nasceu maldito. Além dos desertos, além da mosca tsé-tsé que propaga o bacilo da terrivel doença do sono, caiu sobre ele uma desgraça pior do que tudo: a cupidez da civilização européia."

"(...)o célebre 'tráfico de escravos africanos' virou a maior tragédia da História. A crueldade do branco, a cupidez dos civilizados, excedeu a tudo quanto se possa imaginar."


Geografia de Dona Benta. 11a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1962 [1935] pp. 146, 184, 185



segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lautenmusik der Renaissance/Lute Music From the Renaissance - Ricardo Correa & Hans Michael Koch




Um cd original da minha coleção de Música Antiga que disponibilizo para download via Megaupload. Trata-se do "Lautenmusik der Renaissance/Lute Music From the Renaissance", produzido na Alemanha em 1994 pela Christophorus . São peças renascentistas para aláude de compositores dos séculos XV e XVI como Hans Judenkunig, Mattheus Waissel, Vincenzo Capirola, Francesco da Milano entre outros, executadas em alaúde e gravadas entre 1984 e 1986 por Ricardo Correa e Hans Michael Koch. São 28 faixas que totalizam 60:56 minutos. Espero que gostem, pois é um material difícil de encontrar.


Ezra Pound e a educação.



Eis alguns pensamentos do poeta, crítico literário e músico norte-americano Ezra Pound (1885-1972) sobre  assuntos de educação que, sem dúvida alguma poderiam figurar no post de 22/08/2009. No entanto, naquela época eu não conhecia estes parágrafos e a antologia estava focada em intelectuais da área que pensavam na contra-corrente. São de uma clareza e lucidez impressionantes. Falam por si mesmos.No entanto, hoje soariam como diatibres, tanto à esquerda quanto à direita . Em especial, parte dos pedagogos, psicólogos e administradores escolares, cheios de não-me-toques e narizes empinado, que quase sempre dizem amém a qualquer projeto absurdo e irrealizável que se pretende implementar no campo educativo, vão detestar estas palavras. Muito cortantes para almas "sensíveis" que acreditam que a educação é "a" salvação do mundo. Intenção boníssima, mas que só acaba por inflacionar o cenário,tornando-o tão sobrecarregado que acaba não dando em quase nada. É necessário estabelecer ideais e percursos educativos precisos e transparentes. Escreverei sobre isto depois.  Estes parágrafos são mais pertinentes do que centenas de horas de leitura e presença em certos "cursos de capacitação" (há quem goste de chamar "reciclagem", cujo sentido é bem conhecido...).



"O homem que realmente sabe pode dizer tudo o que é transmissível nalgumas poucas palavras. O problema econômico do professor (de violino, de línguas ou de qualquer outra coisa) é como esticar o tema de modo a ser pago por mais lições.(...)"
"2. Os professores não falham nunca por ignorância. Isto é sabido por experiência profissional. Os professores falham quando não conseguem 'manobrar a classe'. A verdadeira educação deve limitar-se, exclusivamente, aos homens que INSISTEM em conhecer, o resto é pastoreio de ovelhas."
'O professor inexperiente, temendo sua própria ignorância, tem medo de admiti-la. Talvez essa coragem somente venha quando a gente sabe até que ponto a ignorãncia é quase universal. Tentativas de camuflagem são simplesmente, a longo prazo, uma perda de tempo."
"Se falta vivacidade ao professor, ele pode ficar aterrorizado com alunos cujas mentes se movem mais rapidamente do que a sua, mas seria mais inteligente usar o aluno esperto para trabalhos de exploração, aproveitar o olho mais rápido ou o ouvido mais aguçado em postos de sentinela ou de escuta."

Ezra Pound, ABC da Literatura. tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultirx, 19??
pp. 79-80

sábado, 23 de outubro de 2010

Agathodaimon - Contemplation Song



Faixa instrumental muito boa de Blacken the Angel (1998), primeiro cd do Agathodaimon, banda alemã de Black Metal Sinfônico.





Ava Inferi - Vultos - uma experiência de transcrição...



Ava Inferi é uma banda portuguesa de Doom/Gothic Metal formada pela vocalista Carmen Susana Simões e pelo guitarrista norueguês Rune "Blasphemer" Eriksen (ex-Mayhem), seus mentores principais. Segundo a gravadora Season of Mist "a ideia fundamental por trás dessa união é a liberação e encaminhamento de toda a frustração e miséria que a vida às vezes traz, mas também para dar à luz um portal gratuito e independente para o interminável poço de expressão e criatividade." Portanto, são canções estruturadas na reflexão da essência da dor e do medo; na contemplação da natureza rústica, pouco tocada pelo homem e das ruínas do passado humano.Toda esta criatividade é expressada através de alguns hibridismos entre o Fado, o Jazz, o Blues, o Folk  e o Dark Ambiente. Todavia, estes elementos estão sob as rédeas da austeridade do Doom Metal. Síntese perfeita da melancolia lusitana e da aspereza nórdica.
Carmen Simões possui uma voz ressoante, intensa, quando necessária, suave ou forte... que é bem amparada pelo instrumental coeso, em especial, o magnífico trabalho de guitarra, que tenta em alguns momentos captar a sonoridade do fado, sem perder suas características roqueiras.
Completam o grupo Jaime S. Ferreira (baixo) e João Samora (bateria).



São trabalhos feitos com paixão e entusiasmo, que logo receberam acolhida favorável da crítica e fãs do gênero. Até o momento sua discografia é a seguinte:

Burdens (2006)
The Silhouette (2007)
Blood of Bacchus (2009)


Feita esta introdução, passo ao assunto principal, que é a faixa 6 de Burdens, Vultos. Foi a canção que me chamou mais a atenção neste álbum, em especial por ser cantada em português, pelas variações no ritmo e elementos de blues.

Curiosamente, flanando por vários sites e blogs especializados, não encontrei nenhuma transcrição da letra de Vultos. Embora as demais sejam facilmente encontráveis. Será que o grupo quer fazer uma aura de mistério sobre a canção? Ou o pessoal interessado está com dificuldade para transcrevê-la? Ao constatar isto, fiquei com vontade de publicar esta letra. Como não tenho acesso ao cd original, fiz de ouvido mesmo. Estou em dúvida com relação a quatro ou cinco palavras. Passagens dificílimas.  Há, portanto, um pouco de minha subjetividade. Trata-se, desse modo de uma interpretação relativamente livre.Uma recriação. Não tenho receio de expor minhas dúvidas.

 Estou aberto à críticas e sugestões que venham a melhorar esta transcrição.



Vultos

Bem vindo ao lago,
Onde o tempo parou,
E a noite desceu.(?)
Os vultos dançam,
Lá no eterno azul.Existência. [ou Insistência? , ou ainda: Inexistência?]


Sorrindo para ti,
Estendem-lhe as mãos
Para tua [    ] (?)
Entraste no intempo eterno,(?)
E aqui viverás eternamente.


Observações: estava, e ainda estou indeciso entre "desceu" e "venceu". Existência remete ao destino, ao fato de existirmos. Por outro lado, Insistência remete a teimosia, obstinação em continuar, apesar de tudo... Inexistência também não está descartada... Enfim, pode não ser nenhuma das três rsssss ... Para tua loucura ? Uma das passagens mais difíceis, talvez eu esteja viajando na maionese. Intempo eterno parece estranho, mas está relacionado a uma temporalidade imóvel, interminável, habitada pelos fantasmas do lago e pela pessoa que por eles foi atraída ou,  aceitou de livre vontade este destino. Todavia não descarto a possibilidade de ser uma expressão em latim,  italiano ou francês, dado a voz sussurrante de Carmen Simões nesta passagem obscura.

Para quem deseja ouví-la:





domingo, 8 de agosto de 2010

V S Naipaul - Entre os fiéis e Além da fé.


Vidiadhar Surajprasad Naipaul, ou simplesmente V S Naipaul, é um escritor de nacionalidade britânica, nascido em Trinidad Tobago, filho de pais indianos. Em 2001 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.É uma espécie de agente duplo, intermediário entre o Ocidente e o Oriente. Aprecia muito as longas viagens. Peregrinou, assim, por boa parte da África e da Ásia. Parte de sua obra reinterpreta aspctos do choque cultural entre asiáticos, europeus e africanos, no cenário do neocolonialismo e imperialismo dos seculos XIX e XX , durante e depois do igualmente conflituoso processo de descolonização do século XX. Há também elementos autobiográficos.  É considerado um homem frio, fechado, que, ao mesmo tempo pode ser amigável, sincero e, subitamente, mostrar-se descortês, ácido e cruel. Portanto humano, demasiadamente humano. Naipaul acredita que é preciso sempre decidir pela verdade, ainda que ela doa, provoque feridas. Certamente é um sofrimento estruturante, que nos torna mais fortes e sábios. Sempre li e ouvi  muita coisa, digamos, negativa sobre este autor, acusações de racismo e intolerância, talvez por soltar seus demônios internos, expressar com sinceridade brutal suas opiniões sobre determinada pessoa, povo, país ou assunto. Comecei a lê-lo recentemente. Primeiro, seus dois livros de viagem, Entre os fieis e Além da fé, relatos de viagens feitas entre 1979 e 1980 ao Irã, Paquistão, Indonésia e Malásia. As transformações sociais, políticas e culturais provocadas pelo islamismo são o fio condutor do relato. Em 1995, Naipaul voltou aos mesmos lugares para observar as transformações. Depois passei os olhos em alguns capítulos de Índia: um milhão de motins agora, que são ensaios, relatos de viagem e entrevistas com indianos de várias profissões e posturas ideológicas. O livro sobre a Índia pelo pouco que pude perceber segue a estrutura dos dois primeiros que mencionei acima. Não encontrei mostras de racismo, há um profundo respeito e conhecimento pela história dos países visitados e pelas pessoas que ele entrevista (ou melhor dialoga, escuta). Como escrevi anteriormente, o autor possui uma sinceridade cruel, diz o que pensa, embora sempre de forma meditada, calculando e escolhendo bem as palavras.
Minha motivação para transcrever algumas passagens desses dois livros estão em parte, na repercussão dos casos de Aisha, jovem afegã mutilada no nariz e ouvidos pelo marido após decidir fugir da casa dos sogros por causa dos maus-tratos, e que virou capa da Time da semana retrasada, e, por fim, o da iraniana Sakineh, condenada inicialmente à lapidação, devido à acusação de adultério (a Sharia tem um conceito bastante amplo para o que definimos por adultério) e assassinato (se é real ou plantada, fica difícil de saber, já que dependemos de informações oficiais de Teerã). A hesitante e confusa (oportunista?) atuação do governo Lula e sua diplomacia torna as coisas ainda mais dramáticas.

A outra parte é o fato de que tendo a concordar em grande parte com a posição de Naipaul. Todavia, não considero o islã uma figuração da barbárie. Não existe tal monopólio, somos todos etnocêntricos, e misto de anjo e demônio, e só ter ciência disto e buscar outros caminhos de convivência. A questão não é nos envergonharmos de sermos ocidentais e carregarmos todas os vícios ou romantizar o outro asiático/islâmico, enfeitando ele só de virtudes.
Não conheço pessoalmente nenhum muçulmano ou muçulmana. O que sei é indireto, e portanto, limitado, através de escritos de autores islâmicos, produção das ciências sociais, literatura, internet, jornalismo, etc. embora procure as fontes mais confiáveis e diversificadas. É um movimento sócio-cultural sutil e complexo como o cristianismo, a cultura secular ocidental, ou outras tradições. Digamos que é ambivalente, pode mostrar saber e tolerância, assim como o seu oposto.

Transcrevo parágrafos incisivos, densos, ásperos, não obstante, sempre pertinentes. Particularmente feliz a análise que mostra que o islã é tão ou mais homogeneizador de culturas quanto o Ocidente e o desvelamento da mecânica do fundamentalismo islâmico. Algo asfixiante, como os totalitarismos de esquerda e direita. Creio que ficará difícil para os muçulmanos esclarecidos defenderem sua cultura se o aprofundamento do fundamentalismo prosseguir desta forma.
Estes espaços e povos cutucam meu imaginário a um bom tempo. Quando minha situação material se estabilizar e meu inglês e francês chegarem a um nível decente planejo seguir esta rota, incluindo com certeza a Turquia, e que sabe, se a geopolítica favorecer, talvez o Afeganistão...

Bibliografia: Entre os fiéis:Irã, Paquistão, Malásia. tradução: Cid Knipel Moreira


Além da fé: Indonésia, Irã, Paquistão, Malásia. tradução: Rubens Figueiredo

São Paulo: Companhia das Letras, 1999
(publicados originalmente em inglês nos anos de 1981 e 1998, respectivamente)



"No islã, e principalmente no islã dos fundamentalistas, o precedente é tudo. Os princípios do Profeta - conforme conjeturados a partir do Corão e das tradições autorizadas- são eternamente válidos. Podem ser estendidos de modo a cobrir todas as disciplinas."  pp.217-218

"No esquema fundamentalista, o mundo se deteriora constantemente e constantemente precisa ser recriado. A única função do intelecto é ajudar esta recriação. Ele reinterpreta os textos; restabelece o precedente divino. Por isso, a história deve servir à teologia, a lei é separada da ideia de justiça e a aprendizagem é separada da aprendizagem. A doutrina tem os seus atrativos. Para um estudante da universidade de Karachi, talvez com antecedentes provincianos ou camponeses, a velha fé brota com mais facilidade do que qualquer disciplina acadêmica moderna. Dessa forma, o fundamentalismo se enraiza nas universidades, e negar a educação pode se converter no ato erudito sancionado. Nos tempos da glória muçulmana, o islã se abriu à aprendizagem do mundo. Agora, o fundamentalismo fornece um termostato intelectual regulando baixo. Ele nivela, conforta, protege e conserva. Dessa forma, a fé penetra tudo, e é possível entender o que os fundamentalistas querem dizer que afirmam que o islã é um estilo de vida completo. Mas o que se diz sobre o islã se aplica, talvez até com maior pertinência, a outras religiões - como o hinduísmo ou o budismo, ou outras fés menos tribais- que em uma fase primitiva de suas histórias também eram culturas completas, auto-suficientes e mais ou menos isoladas, com instituições, costumes e crenças que constituíam uma totalidade." p.218

"O desejo fundamentalista islâmico é trabalhar recuando para uma totalidade dessa ordem, para eles uma totalidade doada por Deus, mas apenas com a ferramenta da fé - convicção, práticas religiosas e rituais. É como um desejo - com a supressão ou limitação do intelecto, o senso histórico falsificado - de trabalhar recuando do abstrato para o concreto, e erigir novamente os muros tribais. É buscar a recriação de algo como um estado tribal ou uma cidade-estado que - exceto na fantasia teológica - nunca existiu. O Corão não é o livro de estatutos de uma idade de ouro consolidada; é o registro místico ou oracular de um levante prolongado, espraiando-se do Profeta para a sua tribo e para a Arábia. A Arábia era plena de movimento: o islã, com todos os seus elementos judaico-cristãos, sempre foi mesclado, eclético, em desenvolvimento. Assim que o Profeta tornou segura sua comunidade, procurou subjugar os seus inimigos. Foi durante uma marcha militar no quinto ano da era muçulmana que Aisha passou aquela noite sozinha no deserto." pp.218-219

"O Ocidente, ou a civilização ocidental que ele lidera, é rejeitado emocionalmente. Ele destrói aos poucos; ele ameaça. Mas ao mesmo tempo, ele é necessário, por suas máquinas, mercadorias, medicamentos, aviões de guerra, as remessas de emigrantes, os hospitais que poderiam ter uma cura para a deficiência de cálcio, as universidades que fornecerão os títulos de mestrado em meios de comunicação de massa. Toda a rejeição do Ocidente está na suposição de que sempre existirá lá fora uma civilização viva, criativa, estranhamente neutra, acessível a todos.A rejeição, portanto, não é nenhuma rejeição absoluta. Também é, para a comunidade como um todo, um modo de deixar de se esforçar intelectualmente. É ser parasitário; o parasitismo é um dos frutos não reconhecidos do fundamentalismo." p.219   (Entre os fiéis)

"A derrocada das religiões antigas - religiões ligadas à terra, aos animais e as divindades de determinado lugar ou tribo - sob a força das religiões reveladas é um dos temas contumazes da história. Mesmo quando existem textos, como ocorre no caso do antigo mundo romano-cristão, a transformação é difícil de acompanhar. Existem apenas indícios. Pode-se observar que as religiões da terra são limitadas, oferecem tudo aos deuses e bem pouco aos homens. Se estas religiões conseguem se mostrar atraentes agora é sobretudo por razões estéticas modernas; e mesmo assim é impossível conseguir imaginar uma vida completamente sem elas. As ideias das religiões reveladas - budismo (se é que pode ser incluído na lista, cristianismo, islamismo - são mais amplas, mais humanas, mais ligadas àquilo que os homens encaram como seu sofrimento, e mais ligada a uma visão moral do mundo. Pode ser também que as grandes conversões, de nações ou culturas, como na Indonésia, ocorram quando as pessoas não tem nenhuma ideia sobre si mesmas e não tem meios de compreender ou recuperar seu passado." p.96   (Além da fé...)

"A crueldade do fundamentalismo islâmico consiste em permitir a apenas um povo - os árabes, o povo original do Profeta - ter um passado, lugares sagrados, locais de peregrinação e cultos à terra. Esses lugares sagrados árabes têm de ser necessariamente os lugares sagrados de todos os povos convertidos. Os povos convertidos precisam se despojar de seu passado; nada se exige dos povos convertidos, senão a fé mais pura (se é que algo assim possa ser alcançado), o islã, a submissão. É o imperialismo mais intransigente que existe."    p.96

sábado, 10 de abril de 2010

István Jancsó (1938-2010)

"Nada melhor que a própria história para por a nu nossas limitações, enquanto perscrutadores da realidade humana. Por mais que se sofistiquem os recursos técnicos, repetem-se os 'raios em céu azul' que atordoam e confundem. E quanto mais o discurso se restringe à repetição de respeitáveis saberes já sabidos, afastando-se da salutar prática intelectual que é o confronto permanente da teoria com a realidade (entendendo-se por isso o multifacetado caminho da humanidade na construção, nem sempre linear, de sua própria humanização), maiores são as perplexidades, as angústias e, como seu produto inevitável, os descaminhos da prática."

O Professor István Jancsó faleceu na madrugada de 23 de março de 2010. Infelizmente só tomei ciência do seu passamento  em 4 de abril (através do programa Pesquisa FAPESP da rádio Eldorado). 
Concluí minha graduação em História  em 2002 e, embora frequente a biblioteca da FFLCH-USP sempre que posso e faça um ou outro curso, tomo contato as notícias da Universidade de São Paulo de forma mais lenta…
O texto que segue abaixo foi uma mensagem que enviei para o blog Paisagens da Crítica, de Julio Pimentel Pinto, professor no Departamento de História da USP, que prestou singela homenagem ao mestre desaparecido. Fiz pequenas modificações. O original que postei pode ser conferido, juntamente com os demais comentários de pessoas que conheceram o professor István Jancsó, neste link: 
http://paisagensdacritica.wordpress.com/2010/03/23/istvan-jancso/

Fui aluno do István no segundo semestre de 1997, em Brasil Colonial II. O que guardo de sua pessoa são a honestidade intelectual, o rigor empírico e conceitual , enorme vontade de ensinar. E principalmente uma extraordinária afabilidade no trato com os alunos (e colegas). Foi sua assinatura no espaço um tanto impessoal e gélido do departamento de História.

Lembro de uma tarde de 1997, quando aconteceu um debate entre candidatos a reitor no Anfiteatro de Geografia e ele conclamando a turma de Colonial II a assistir e participar do evento. Dispensou a turma um pouco mais cedo. Modéstia à parte fui um dos poucos da sala a comparecer no debate dos reitoráveis. O evento foi meio morno e o quórum um tanto reduzido. Ele conseguiu me identificar entre o pessoal espalhado entre a arquibancada e mandou um sorriso. Na semana seguinte deu um pito amoroso na turma, indignado com o pouco interesse do corpo discente num momento tão importante para a Universidade, indagando como reagiriam se esta fosse privatizada, o que fariam a respeito da mensalidade, caso esta fosse imposta e por aí vai…

Dentro do currículo da 7a. série está a temática da crise do sistema colonial, as conjurações e o processo de emancipação e formação do Estado brasileiro, temas que ele dedicou a pesquisar vários anos de sua vida. Enquanto pesquiso e preparo aulas e atividades, sua presença e marcas como mestre serão constantes, no educador que luto para continuar a ser. Ali, István Jancso permanecerá vivo.

A citação é de um ensaio escrito pelo professor István entitulado  "A Crise do Stalinismo e A Questao Nacional.", presente no livro  A História à deriva- um balanço de fim de século. organizado por Jorge Nóvoa, Salvador: Edufba,1993, p.109