segunda-feira, 21 de março de 2011

Antonio Vivaldi - Outono


No jardim noturno o esquecimento
Velha árvore espera o julgamento
Nada explicar meu sentimento
Está em meu coração, o frio do outono.
Violeta de Outono
(Fábio Golfetti & Irene Sinnecker,1985)



Iconografia: Francesco Albani (1578-1660) Outono 1616-1617
Pieter Paul Rubens (1577-1640) An Autumn Landscape with a View of Het Steen in the Early Morning. c. 1635

sábado, 19 de março de 2011

Epica: Adyta - Sensorium








Adyta

 The Neverending Embrace
Prelude

O nate vulnerate
Cito veni ad me

Te amplectar et vulnera tua lingam
Utinam te haberem, mi amor caelestis

Ó filho ferido
Depressa venha a mim

Irei te acolher e ferir teu lingam
Aleluia que te possuo, meu amor celeste







Sensorium

Chance doesn't exist
But the path of life is not
totally so predestined
And time and chronology show us
How all should be
In the ways of existence
To find out why we are here

Being consciousness is a torment
The more we learn is the less we get
Every answer contains a new quest
A quest to non existence,
a journey with no end

No one surveys the whole
Focus on things so small
But life's objective is to make it meaningful
Only searching for this
That which doesn't exist
Although our ability to relativize
remains unclear

I'm not afraid to die
I'm afraid to be alive without being aware of it

I'm so afraid to, I couldn't stand to
Waste all my energy on things
That do not matter anymore

Our future has already been written by us alone
But we don't grasp the meaning
Of our programmed course of life
Our future has already been wasted by us alone
And we just let it happen
And do not worry at all

We only fear what comes
And smell death every day
Search for the answers that lie beyond

Não existe acaso
Mas o caminho da vida não é assim
totalmente predestinado
E o tempo e a cronologia nos mostram
Como tudo deve ser
Nos meios de existência
Para encontrar o porque de estarmos aqui

Ser consciente é um tormento
O mais que aprendemos é o menos que temos
Toda resposta contém uma nova busca
Uma busca para a não existência,
uma jornada sem fim

Ninguém enxerga o todo
Focando-se em coisas tão pequenas
Mas o objetivo da vida é fazer com que tenha sentido
Apenas procurando por isto
Este que não existe
Apesar de nossa habilidade de relativizar
permanecer obscura

Não tenho medo de morrer
Tenho medo de viver sem estar ciente disso

Tenho tanto medo que, não consigo agüentar para
Gastar toda minha energia em coisas
Que não importam mais

Nosso futuro já foi escrito por nós próprios
Mas nós não captamos o sentido
De nosso programado curso de vida
Nosso futuro já foi gasto por nós próprios
E nós apenas deixamos acontecer
E não nos preocupamos afinal

Nós apenas tememos o que vem
E cheira a morte todo dia
Procurando pelas respostas que estão no além


Adyta: letra: Simone Simons, música: Mark Jansen; 
Sensorium: letra: Mark Jansen, música: Mark Jansen, Ad Sluijter,Coen Jansen e  Simone Simons.


 Adytum é parte mais secreta de um templo, santuário, mausoléu.


 Lingam, no Hinduísmo, é o símbolo fálico de Shiva, símbolo do infinito que representa a energia do universo tendo a forma de um ovo; também é a palavra do sânscrito para 'órgão sexual masculino' que em uma tradução literal fica 'vara de luz'.




sábado, 12 de março de 2011

H. P. Lovecraft: sobre o horror.




“(...)grande parte do que há de melhor em horror é inconsciente, aparecendo em fragmentos memoráveis, dispersos em material cujo efeito de conjunto pode ser de naipe muito diferente. O mais importante de tudo é a atmosfera, pois o critério final de autenticidade não é o recorte de uma trama e sim a criação de uma determinada sensação (…) O único teste para o verdadeiro horror é simplesmente este: se suscita ou não no leitor um sentimento de profunda apreensão; e de contato com esferas diferentes e com forças desconhecidas; uma atitude sutil de escuta ofegante, como à espera do ruflar de asas negras ou do roçar de entidades e formas nebulosas nos confins extremos do universo conhecido.”

O horror sobrenatural na literatura. (com um prefácio de E.F. Bleiler) tradução: João Guilherme Linke Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987        pp.5-6



quinta-feira, 10 de março de 2011

Sara Paín: entrevistas sobre educação, psicopedagogia e psicanálise.


Sara Paín, psicóloga argentina, doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e doutora em pelo Instituto de Epistemologia de Genebra, desenvolve um trabalho extremamente consistente e relevante relacionando à psicologia e arte-terapia diante da problemática do aprender e da questão do fracasso escolar. Com sólidos conhecimentos da epistemologia genética de Piaget e do universo da psicanálise, e omais importante sem superdimensionar e mistificar o papel destas teses no campo educacional.
Estabelecida na França, onde pesquisa e leciona, é uma autora sempre presente no Brasil, realizando pesquisas e seminários acadêmicos, consultoria científicas, cursos entre outras atividades. Sua bibliografia está bem representada em nosso país 1.
Tomei contato com seu pensamento durante a licenciatura, em 2001, primeiro, numa entrevista à revista Nova Escola, depois conheci o livro Subjetividade e Objetividade. Logo simpatizei com algumas idéias, discordei de outras, mas sempre admirei sua postura intelectual. Ética e coerente.
Sem concessões e superficialidade quanto à teoria e prática, Sara Paín manifesta posições precisas quanto à função que a escola deve desempenhar na sociedade, sem atribuições alheias que inviabilizam seu funcionamento efetivo. Crítica frente a modismos pedagógicos, como a Teoria das Inteligências Múltiplas que, segundo sua visão, "não tem nenhum fundamento teórico válido". Não deixa de criticar os professores que descuidam de sua formação ou manifestam atitudes preconceituosas. Numa passagem forte, mostra-se firme diante do ensino miserabilista e demissionário que permeia parte do campo pedagógico, que restringem os alunos pobres ao seu gueto e reproduzindo perpetuamente sua condição precária pois o dispositivo escolar "não pode querer educar cada criança apenas segundo suas possibilidades. Se ela respeitar as condições dos filhos da classe pobre está perdida. Pois vai promover o desrespeito. O fato é que não se pode respeitar a pobreza. A pobreza tem de ser atacada, não respeitada." Atenção, Sara não está defendendo um ensino tecnicista e atrelado ao mercado de trabalho. Para finalizar, mostra-se extremamente lúcida e preocupada com o “presentismo” que domina o cenário educativo contemporâneo. Presos ao imediatismo (com sua carga de consumismo e resignação) a formação de crianças e adolescentes torna-se frágil e incompleta, sem referência a grande tradição cultural acumulada pela humanidade. Cujo diálogo com problemas do presente é fundamental para a estruturação de um futuro viável.

No texto que escrevi criticando o pensamento de Paulo Freire, algumas das ideias de Sara Paín tiveram papel relevante, somadas a outras fontes. Reconheço que expressão Antopologia do Desprezo e da Incapacidade”, inspirado num artigo de Lilian do Valle (acrescentando o desprezo), necessita de um aprofundamento maior. Fica para uma próxima postagem dedicada ao tema da educação.

As entrevistas2 foram publicadas nas revistas: Estilos da Clínica, volume I, n. 1, 1996, pp. 94-105 (na verdade um diálogo bastante produtivo com o professor Leandro de Lajonquière); Pátio,ano 3, n.11,nov1999/jan2000,pp.29 e 30; Nova Escola, n.137, novembro de 2000 (concedida à Gabriel Pillar Grossi, minha cópia xerox que escaneei não tem a numeração das páginas).

Aqui encontra-se o arquivo em PDF com os três depoimentos.

“Quando se fala em fracasso escolar, é preciso levar em conta a função que a escola desempenha na sociedade. Se seu papel consiste na transmissão de conhecimentos de acordo com uma distribuição de saberes apta a reproduzir a sociedade e seu sistema, é evidente que a instituição escolar é um êxito. Se a escola se destina a dar igualdade de oportunidades a todos e permitir uma promoção social que beneficie a comunidade em seu conjunto, é evidente que ela fracassa necessariamente, enquanto os projetos políticos-econômicos não dão um contexto favorável ao desenvolvimento.”

“(...), a teoria das Inteligências Múltiplas não tem nenhum fundamento teórico válido e é politicamente tão “correta” que se torna suspeita de validar qualquer inteligência para finalmente fechar as portas aos supostamente não-dotados em certas disciplinas. A inteligência é o direito de cada ser jovem exercitar-se nas diversas possibilidades e escolher além de uma suposta habilidade inata, que não é determinante no prazer de aprender.”

“Além das condições sociais da aprendizagem já apontadas, há um problema de contexto cultural que não se pode resolver em uma geração. Educar é educar um ser cívico, participante na vida social. Esta participação constitui uma consciência de deveres e direitos. Entre esses deveres e direitos figura o de aprender e educar. Se a comunidade e os pais não sentem profundamente, quase religiosamente, a importância desta profissão leiga, será impossível 'naturalizar” a aprendizagem.”

“Da forma como está sendo implantado, o sistema de ciclos pode ter um resultado perverso. Se o professor continua acreditando que alguns de seus alunos estão condenados ao fracasso , não há decreto capaz de mudar isso. Ao contrário, dá impressão de que vão se esquecer ainda mais do último da sala. Por isso, eu insisto. Se a progressão não é graduada, não há chance de sucesso.”

“A violência mais aguda, de quebradeira e agressão, geralmente surge aos 12, 13 anos e atinge seu auge aos 16,17 anos de idade. Quando os alunos não conseguem aprender, quando percebem que esse é um universo que escapa completamente ao seu controle, transformam essa impotência em violência. O discurso da escola é sempre bom, positivo. A imagem que ela passa para esses adolescentes é de um mundo bom, o mundo do conhecimento. Só que eles não chegam lá. E explodem. Por quê? Porque o aluno se dá conta da mentira. O discurso é lindo, mas cruel. “Vai meu filho, estuda. É bom. No futuro ganharás um emprego... de gari.” Que ambição essas crianças podem ter? Em muitos lugares, os alunos pobres só ganham espaço para algumas manifestações culturais, como dançar ou fazer música. E muitos se dão conta de que toda a sociedade – a escola incluída – é uma enorme hipocrisia... Eles têm a oportunidade de não se evadir, mas ficar significa, no futuro, ter um trabalho subalterno, sem nenhuma valorização.”

“A questão é outra. A escola não pode querer educar cada criança apenas segundo suas possibilidades. Se ela respeitar as condições dos filhos da classe pobre está perdida. Pois vai promover o desrespeito. O fato é que não se pode respeitar a pobreza. A pobreza tem de ser atacada, não respeitada. Se essas crianças precisam ir uma hora à mais na escola para aprender, esse é o preço que essa geração tem de pagar, é um sacrifício que acaba em si mesmo. Porque eles também precisam mudar suas vidas, por meio da escola, para melhor.”

“A escola é o lugar para trabalhar, solidificar e pôr em prática a disciplina mental. Se o aluno a traz de casa, melhor. O que eu quero dizer é que, em sala de aula, a dinâmica de trabalho é essencial. Se você quer ensinar pintura a seu filho em casa, pode deixá-lo brincando à vontade. Na escola, não. É preciso fazê-lo de forma disciplinada, para sistematizar o conhecimento, porque ele não pode ser só espontâneo.”


“(...) O ensino escolar leva embutido em si mesmo uma tradição retroativa para que não se perca o conhecimento adquirido. Por outro lado, a educação está tensionada em direção ao futuro. Assim trata-se de articular passado e futuro. Entretanto, perante a imensidão dos conhecimentos passados costuma-se pensar que se deve, ao contrário, favorecer o desenvolvimento da máquina pensante pois assim a criança estaria em condições de compreender qualquer coisa. Entretanto, não é isso que acontece. O resultado é a “descultivação”, uma vez que se opera um corte na cadeia, que impede, precisamente o posicionamento perante o novo. Pensa-se ingenuamente que “descarnando” o processo de ensino-aprendizagem, isto é, aprendendo apenas “instrumentos cognitivos”, a criança poderá fazer, por exemplo, informática. No entanto, se a criança não conhece história da cultura, não sabe, por exemplo, quem foi Galileu Galilei, e não poderá utilizar de forma positiva o computador. Em outras palavras, não poderá utilizar esta máquina para fazer outras coisas; saberá até certo ponto “usar” a máquina em si mesma, mas não saberá o que colocar dentro.”

“(...) De fato, há um grande desprestígio do histórico e um investimento desmedido no atual. Ou seja, há pouca transposição do passado, da cultura até um empobrecimento da língua. Esse descuido com a língua acontece, por exemplo, tanto na Europa quanto na América Latina. Cabe assinalar que, enquanto toda a língua representa o passado, hoje em dia a dia dos jovens, em particular, está cheia de neologismos. Justamente, as novas gerações estão tensionadas para o futuro e muito pouco para o passado. Assim como a educação é a transmissão da cultura, há uma parte da população que “cai fora” dessa transmissão e portanto se “descultiva”.”

“Com efeito, estamos submetidos ao mundo das coisas porque estamos no presente. Considera-se que a criança deva aprender a utilizar o microcomputador. Pensa-se que a informática é a grande solução para todos os males. Até um adolescente, indeciso quanto à sua escolha profissional, apela para a ideia de “fazer informática” para sair do impasse. A informática é o futuro! Faz dez anos que a única coisa na qual se fala é no século XXI, como se o século XX, no qual ainda vivemos, tivesse acabado! Porém, não sei como podemos construir um futuro sem nos referir ao passado. Não sei como podemos construir um futuro se cada vez lemos menos, se a televisão, que é um elemento onipresente no nosso cotidiano, é uma janela aberta para um presente contínuo, para um presente que nem sequer é idealizado. O 'presente” presente está cru: de fato, a televisão nos oferece um presente sem adereços.”

Notas:

1. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre: Editora Artmed, 1985
A Função da Ignorância . Volume 1: Estruturas Inconscientes do Pensamento, volume 2: A gênese do inconsciente. Porto Alegre: Editora Artmed, 1987
Psicopedagogia Operativa - Tratamento Educativo da Deficiência Mental. (em co-autoria com Haydée Echeverria) Porto Alegre: Editora Artmed, 1987
Psicometria genética. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995
Subjetividade Objetividade: relação entre desejo e conhecimento. São Paulo: CEVEC, 1996.
Teoria e técnica da arteterapia: a compreensão do sujeito. Porto Alegre : Artmed, 2001. (em co-autoria com Gladys Jarreau)
Encontros com Sara Paín. org. Sonia Maria A B Parente. São Paulo: Casa do Psicólogo,2001
Os Fundamentos da arteterapia. Petrópolis: Vozes, 2009

2. Existe uma primeira entrevista concedida à Nova Escola, n.70, 1993, entitulada "Educar é ensinar a pensar." que traz conteúdos relevantes, porém mais restritos a psicopedagogia. Não é difícil de ser localizada no Google. Estas últimas são mais críticas e incisivas, enquanto a de 1993, ao meu ver, tem certo recorte da redação da Abril, que selecionou o que é de interesse do periódico.

terça-feira, 8 de março de 2011

Asrai - In Front Of Me



Asrai é uma banda holandesa de Metal Gótico. Formada em 1988, seguia um estilo que mesclava punk/hardcore/new wave. Apenas em 1997 lançaram seu primeiro álbum de estúdio: As Voice Speak. Após várias mudanças internas, a banda estabilizou sua formação com as irmãs gêmeas Margriet (vocal) e Karin Mol (bateria), que são as mentoras do grupo, Manon van der Hidde - (teclados – violinos), Rik Janssen (guitarra) e Martin Kooy (baixo). Formação atípica para o gênero. O som é vigoroso, com ótimo timbre de guitarras, baixo e bateria bem entrosados e teclados ocupando seu espaço. Tudo num encaixe perfeito. Não há vocais masculinos, limpos, rasgados ou guturais, apenas alguns discretíssimos backing vocals do baixista. A voz de Magriet é poderosa, diferenciando-se de outras excelentes vocalistas de sua pátria como Simone Simons (Epica), Floor Jansen (do extinto After Forever) e Sharon den Andel (Within Temptation) que utilizam o timbre soprano e suas categorias. Comparações com Cristina Scabbia do Lacuna Coil são inevitáveis, mas são estilos distintos dentro do gênero.
A sonoridade e temática é melancólica e escura, tipicamente gótica, apresentando elementos pop e eletrônicos adaptados a esta sombriedade.
Completam a discografia Touch in the Dark (2004) e Pearls in Dirt (2007), ambos lançados no Brasil pela Hellion Records. 
Escolhi a canção In Front Of Me do Touch In the Dark por causa do video clip. Uma belíssima animação em P & B com toques expressionistas. A tradução é livre e sujeita a revisões. Estou aberto às críticas.

In Front Of Me

In front of me, just for a while to ever see
A reaching voice beyond my mind
Your words go down my spine
All my questions are asking why

We died tonight
Enclosed in the dark
Wandering ourselves
And tried to hide our lies again
Walking on wind as I recall the last time

I don't mind you asking question
For all and more, it's yours to know
In my dream I bleed for you
Obliviated in your reasons to b
e
The one to hurt and feel my lies
The one to hurt and feel my lies

Your face still colours my mind
Reality turned into the inside
Walking on the wind
As I recalled the last time

I don't mind you asking question
For all and more, it's yours to know
In my dream I bleed for you
Obliviated in your reasons to be
The one to hurt and feel my lies
The one to hurt and feel my lies

Cry out my words
I bleed for you


Em frente de mim


Em frente de mim, apenas por um instante para ver eternamente
Uma voz atingindo minha mente
Suas palavras atravessam minha espinha
Todas minhas questões estão perguntando o motivo

Nós morremos toda noite
Incluídos na escuridão
Vagando dentro de nós próprios
E tentando esconder nossas mentiras novamente
Caminhando frente ao vento como eu relembro o último momento

Eu não me importo que você questione
Para tudo e além do mais, elas são tuas para saber
Em meus sonhos eu sangro por você
Esquecendo suas razões de ser
O único para ferir e sentir minhas mentiras
O único para ferir e sentir minhas mentiras
Seu rosto tranquilo colorindo minha mente
Realidade volta-se para dentro
Caminhando sobre o vento
Como eu recordei da última vez

Eu não lembro das perguntas
Para todos e mais ,elas são tuas para saber
Em meus sonhos eu sangro por você
Esquecendo suas razões de ser

O único para ferir e sentir minhas mentiras
O único para ferir e sentir minhas mentiras

Grito minhas palavras
Eu sangro por você



Max Horkheimer: dois fragmentos.



“(...) só que a história não considerou qualquer razão “em si”, não é uma substancialidade nem espírito perante o qual nos devamos curvar, nem “poder”, mas um resumo abstrato de acontecimentos, resultado do processo vital social dos homens. A história não dá nem tira a vida de ninguém, não impõe nem cumpre tarefas. Apenas os homens reais atuam, vencem obstáculos e podem conseguir reduzir a dor individual ou geral provocada quer por eles próprios, quer por poderes naturais.
A autonomização panteísta da história num ser substancial e uno não é nada mais que metafísica dogmática.”

“A confiança num pensamento rigoroso e consciencioso e o saber em torno da relatividade do conteúdo e estrutura do conhecimento não se excluem, antes são necessários um ao outro. Que a razão nunca poderá estar segura da sua eternidade, que o conhecimento depende de uma época, mas que em época alguma estará assegurado para todo o futuro histórico, que a severa dependência temporal ainda atinge o conhecimento que a determina – este paradoxo não anula a verdade desta afirmação, pois reside na própria essência do verdadeiro conhecimento, nunca ser fechado.”

HORKHEIMER, Max     Origens da filosofia burguesa da história.
Tradução de Maria Margarida Morgado. Lisboa: Presença, 1984 (Biblioteca de textos universitários; 67) p.89 e p.72 respectivamente

quinta-feira, 3 de março de 2011

A "educação bancária" não existe: apontamentos críticos sobre algumas ideias de Paulo Freire.



“Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As frases ocas sobre a consciência cessam, e um saber real deve tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência.” Marx & Engels

“No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um impulso à verdade.”  Nietzsche 1

A Educação (seja aquela compreendida como educação escolar, universitária, não formal, educação familiar ou socialização primária, ensino técnico profissionalizante, entre outras formas) é considerada um elemento fundamental para o bem-estar e desenvolvimento da sociedade (senão o único, para alguns exaltados) por vários tipos de discursos, à direita e à esquerda. Como é sabido, o campo educacional na contemporaneidade está atravessado de crises e indefinições que provocam enorme desconforto em seus agentes mais implicados. A desvalorização simbólica da carreira docente (e seu empobrecimento material), programas de reengenharia e qualidade total, a mistura entre o dispositivo escolar e a mentalidade empresarial que não deixam claro as distinções entre empresa e escola, o predomínio do saber psicológico, que cria estigmas e obstáculos a uma práxis mais produtiva (e abafa outras vozes no ambiente educativo), a omissão do Estado que não provém as escolas dos recursos materiais necessários, a relação conturbada entre mídia e educadores, que não tem suas demandas devidamente apresentadas pelos veículos de comunicação (que tendem a distorcer ou apresentar de forma parcial e tendenciosa as reivindicações docentes). Num plano mais existencial, existe a indiferença dos jovens à cultura escolar, casos de violência e drogadicção, famílias delegando suas funções ao aparelho escolar que está sem recursos mínimos para realizar tarefas que lhe são próprias...

Estes problemas que apresentei resumidamente são universais no Ocidente e parte do Oriente. Em locais mais carentes eles podem ser amplificados, pois estão correlacionados ao desemprego, conflitos políticos, religiosos e étnicos, fragilidade do Estado, mudanças constantes do mundo globalizado etc. Lugares com Estado de Bem Estar Social relativamente funcional e cultura cívica mais forte podem amenizar estes sintomas. Mas a sensação de mal-estar é predominante nas sociedades  capitalistas contemporâneas.



No Brasil, a massificação do ensino no final dos anos 1960 criou uma ilusão de crescimento, de acesso democrático à educação, mas ao mesmo tempo instituiu condições de ensino precárias que alargaram ainda mais a distância entre a “escola dos ricos” e a “escola dos pobres”. Desse modo, enorme quantidade de jovens sem capital cultural não tem como concorrer com pessoas que receberam formação mais consistente.
Numa sociedade de desigualdade abissal como a brasileira, onde a pobreza e precariedade se criam e recriam continuamente, a omissão do Poder Público, o economicismo dos neoliberais e das elites predatórias, a aversão aos conflitos mais profundos tem seu peso decisivo nesta situação. Isso é do conhecimento de todos que possuem um mínimo de consciência política.

O que pretendo fazer é demonstrar que parte do pensamento de esquerda tem sua parcela de responsabilidade nessa situação calamitosa, seja por omissão, ou por apegar-se a ideias que se revelaram problemáticas, ao invés de proporcionar melhorias, complicaram ainda mais uma situação bastante difícil. O apego acrítico a estes procedimentos, seja por medo de perder influência e prestígio no campo educacional (e outras esferas) ou mero sectarismo epistemológico-político de quem nunca teve boa vontade em debater num ambiente científico e aberto, tem o seu quinhão de culpa nesta situação (algumas vezes por teimosia ou por boas intenções).

Escrever e ou falar em nome próprio, sem agarra-se em corrimões, sem preocupações/dissimulações retóricas, simplesmente utilizando as próprias palavras ou soltando os demônios é difícil e constitui enorme responsabilidade. Ainda mais num ambiente intelectual como a brasileiro, que tem aversão ao conflito, a divergência pura de ideias, fora de ofensas pessoais, argumentos ad hominen. Sensação de que parecemos “arrogantes”, “inconvenientes” “metido a besta” é enorme e sufocante. Mas aqui está o que eu penso sobre este assunto.


Os humanos são criaturas que classificam dados de sua realidade. Escolher, atribuir significado, classificar, nomear constituem peças essenciais de nosso aparato cognitivo. Nenhuma destas ações é destituída de consequências. A classificação é uma ato de poder.
O campo pedagógico é um espaço de conflitos. Lutas pelo poder, representação e reconhecimento político, estético e epistemológico. As estratégias, justificativas e objetivos nem sempre são transparentes e as condições de cada grupo são quase sempre desiguais.
Logo, as classificações são armas decisivas nestes embates. Lâminas afiadíssimas. O campo educativo é um lugar por excelência da proliferação destas qualificações que se transfiguram em estigmas, xingamentos epistemológicos, estereótipos...
Por milênios a socialização (que, num primeiro momento trato como sinônimo de educação, embora  não se limite a este processo) instaura-se por meio da transmissão de elementos (valores, proibições e tabus, crenças e ritos, técnicas e práticas para fins diversos, regras/normas para regular o relacionamento entre os sexos e gerações e demais construções sociais) vitais para a sobrevivência e reprodução das sociedades. O processo não é linear, isento de conflitualidade, negociações, mudanças abruptas ou lentas.

Em poucas palavras: o mais velho ensinava (explicava, demonstrava ou mesmo impunha) aos mais jovens certos saberes essenciais. Esta violência simbólica constitui um fato histórico, antropológico e psíquico dos seres humanos. Elemento estruturante da civilização. Ela pode, e deve, ser questionada e direcionada
Temos aqui, sinteticamente, a famigerada transmissão de conhecimento. Seus fundamentos, que são questionados contemporaneamente, tem uma história complexa.

Para os gregos, como Platão e Aristóteles, a educação acontecia pelo thauma, ou seja, admiração e espanto frente a saberes que os alunos deveriam aprender. Pressupõe distanciamento da realidade imediata. Uma educação que vem do exterior para atingir o mais profundo do ser. A imitação de atitudes, práticas, ritos é a tônica central. Esta imitação levaria ao domínio para depois a pessoa se auto educar. Eles não acreditavam em capacidades inatas, de julgar e diferenciar, tudo deveria ser aprendido através da cultura. Desse modo a importância imitação dos mais sábios. Temos aqui a Educação Clássica, a greco-romana e cristã-medieval,e em certos aspectos a chinesa, que se confunde com a malfadada e mal conceituada Educação Tradicional.

Em princípio não é uma educação utilitária, seria um fim em si mesma. Cada configuração social, na Antiguidade, Medievo, Renascimento e Modernidade de certa forma apropriou-se deste princípios básicos,adaptando-os a cada realidade. Os iluministas Locke, Rousseau, Condorcet e Diderot não desdenham destes elementos, apenas acrescentam novas ideias e podam o que é considerado arcaico. Há um embrião do que chamamos de ensino técnico e profissionalizante, não necessariamente divorciado do clássico. A Filosofia e a Razão alimentam os ideais educacionais. Pestalozzi, Froebel e Herbart, no olho do furacão das Revoluções Industrial, Francesa e da “Primavera dos Povos”, são herdeiros do iluminismo, mas acrescentam o seguinte: a Filosofia mostra o fim da educação, enquanto a Psicologia mostra o caminho, os meios e os obstáculos. Seria uma “auxiliar”. Não se pode negar inspirações do romantismo, em especial na valorização dos sentimentos e emoções devidamente regradas pela racionalidade. O teor psicologizante que reina quase soberano na educação contemporânea é resultante deste processo que mesclou iluminismo e romantismo (além da necessidade de se adaptar e arregimentar mão de obra para a industrialização crescente). Mas não há espaço para desenvolver este tópico, por enquanto...


Os estilos de transmissão de conhecimento são variados e flexíveis (dotados, portanto de historicidade); desde os mais rígidos e unilaterais (a inculcação sem questionamento algum) até os mais dialógicos. Os limites nem sempre são claros. Como podemos observar na nossa vida cotidiana, por exemplo na criação dos filhos e na realidade da sala de aula, podemos ser mais rígidos ou flexíveis, conforme a ocasião. Mas sempre prevalecia uma diferença, relação hierárquica (entre pais e filhos, mestre e aprendiz, professor e aluno) entre aquele que veio antes e carrega um patrimônio simbólico e, os que chegaram agora, e precisam apropriar-se destes conteúdos culturais, aprender como eles são, para depois aplicá-los, reelaborá-los ou até mesmo recusá-los.
Portanto, não se trata de romantizar, edulcorar formas educativas do passado (distante ou mais recente), mas de compreender seu significado e função dentro de dada configuração social. Assim como não é justo ou intelectualmente honesto distorcer seu significado e depreciá-los por serem simplesmente velhos, seculares ou milenares (ainda que funcionais dentro de seu contexto, ou até mesmo eficientes para a realidade contemporânea).
Há que diferenciar o arcaico/antigo/tradicional do obsoleto e inútil.

No final do século XIX opera-se uma transformação: a Educação Nova, com Claparède, Decroly, Montessori e Dewey fundamenta a pedagogia no saber científico (em especial a medicina e a psicologia). Empiricista, adotando o conceito de vida como adaptação contínua, os conhecimentos deviam acompanhar as exigências da vida prática, em forma de adaptação às sociedades modernas industriais. Embora parte destes educadores seja liberal ou simpatizante dos socialismos, e não deseje apenas formar "bons operários". A princípio não há uma negação à apropriação do patrimônio cultural acumulado pela humanidade. Entretanto as divergências quanto as formas de ensinar são mais profundas e tensas. Em poucas palavras há um predomínio do método sobre o conteúdo. Do como ensinar ao o que ensinar. Tensão que predomina até hoje. Reinventando a roda a todo momento. Paulo Freire é um herdeiro espiritual da Educação Nova, somando a este ideário o nacional-desenvolvimentismo (tipo ISEB) e pensamento de esquerda que ele tomou conhecimento na época (anos 1950-1960). Um tanto de C. Freinet tem o seu peso, em especial no que se refere aos grupos de estudo.


 Todavia, existe uma barreira ideológica que oblitera um diálogo mais produtivo entre o velho/novo, antigo/moderno, que é a mencionada produção de estigmas. O novo, a mudança pela mudança, não deveriam receber privilégios (ou terem seus pontos problemáticos amenizados, subestimados...). O tradicional e o novo devem ter garantidas sua cidadania e serem submetidos a um olhar crítico aguçado. Sem privilégios e preconceitos.
Uma trava de grande prestígio e valor retórico é o construto elaborado por Paulo Freire (1921-1997) que recebe o nome de “educação bancária” ou “concepção bancária da educação”. Nas suas próprias palavras:

“Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandossão os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, oeducador faz comunicados e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a “concepção bancária da educação”, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a dereceberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.”

Desse modo:

“Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.”
“O educador que aliena a ignorância, se mantêm em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca. (…), educador é o que pensa, os educandos os pensados.”

Ou ainda:

“Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos – mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma
inestruturada”


O que chama atenção no pensamento freireano, a partir da pequena amostragem que reuni (e estou me referindo apenas a “Pedagogia do Oprimido”), é o seu voluntarismo e maniqueísmo: existe o lado equivocado e perverso(mesmo que seu representante compartilhe postura política semelhante, está sempre representando, ainda que inconscientemente, a ideologia do opressor, portanto burguesa, tradicional, a serviço do capital) que é apresentado em poucos parágrafos e páginas, sem grande aparato erudito, citações de livros e documentos (como se tudo fosse claro como a água da fonte e não existissem ruídos que interfiram nesta comunicação) e por fim, o mestre apresenta (ou melhor, revela tal como profeta bíblico) a postura correta e verdadeira. Nota-se que em momento algum o autor reconhece alguma dúvida, fragilidade conceitual ou inconsistência em suas formulações; ou reconhece algum mérito nas ideias do lado oposto, em pedagogias e filosofias que não compartilham de seus pressupostos “progressistas” e “revolucionários”. Curiosamente, para alguém que prega o respeito à diferença e aprendizagem mútua e dialogante, há o predomínio de uma grande auto suficiência teórica e prática (ou seria vaidade?).
Dessa forma, a “Pedagogia do Oprimido” é assim toda constituída de imperativos e categorizações sumárias que beiram o estereótipo. A história da educação inexiste. É inútil para fornecer elementos para reflexão, pois o autor já chegou a todas as conclusões e possui todas as certezas. Ou parece que os procedimentos do historiador são de alguma forma incômodos, inconvenientes para a sustentação desta obra.
A meu ver o conceito de “educação bancária” é bastante defeituoso. Talvez Paulo Freire tenha encaminhado mal a discussão, que poderia ser feita de outra forma. Como metáfora é bastante infeliz. Ele implica uma relação transmissor-receptor bastante unilateral, como se o aluno não reelaborasse o que lhe foi transmitido. Ou que a resistência e mesmo recusa não estivessem implicadas nesta relação.
Reduzir a relação adulto-criança, desde os primeiros hominídeos, passando pela Grécia, Idade Média, Pedagogia Inaciana etc, a uma série de constrangimentos e manipulações é algo bastante empobrecedor. Como se nenhuma pessoa tenha se beneficiado da educação escolar que recebeu, por mínima que seja. Ou como se todos os professores que ela teve, fossem figuras caricatas e unidimensionais.

Assim como quase totalidade do “pensamento pedagógico brasileiro”, Paulo Freire é tributário da concepção de nosso passado pensada por Fernando de Azevedo na “A Cultura Brasileira.” (1943). Neste clássico da nossa historiografia e ciência social, toda experiência pedagógica anterior ao advento do “Pioneiros da Escola Nova” fica relegada ao limbo do “tradicional', “arcaico”, “ineficiente”2, sendo sumariamente descartada. Nesse caso, questões de estratégia política, como a necessidade de estabelecer uma posição firme de seu grupo no cenário intelectual  foram essenciais para a criação de uma memória negativa da educação brasileira.



Impressiona a carga de negatividade que as expressões narrar e dissertar recebem. A educação padeceria da "doença da narração". Como se contar fábulas, fatos históricos, passagens de livros ou expor um conceito matemático / científico de forma crua e simples (sem preocupação com os ditos “sabres prévios”) constituísse uma arbitrariedade tamanha que paralisaria o cérebro estudantil, impedindo que a dúvida, a discordância ou qualquer outra atividade mental aflorasse nas mentes dos ouvintes. Não se está falando de variações destes elementos que poderiam ter tido um uso equivocado, vicioso que se revelou inviável e mesmo prejudicial aos alunos. Trata-se de se fazer tábula rasa do passado educacional. Tudo seria apenas “decoreba” e “falação” inútil...

Curiosamente, sociedades tradicionais, como as indígenas brasileiras, tem na repetição e transmissão da memória coletiva, via oralidade, a forma nodal para sua reprodução social e sobrevivência espiritual e simbólica, frente ao impacto incontrolável das novas mídias e modos de vida, desagregação ambiental e invasão de territórios provocados pelo capital. A educação destes povos, que possuem muitos elementos da “educação tradicional” severamente censurados por Paulo Freire e discípulos como a repetição, predominância da narração, diferença substancial entre quem ensina e quem aprende, praticamente não é alvo de críticas, tendo seus méritos reconhecidos por freireanos como Carlo Rodrigues Brandão, um antropólogo de renome, no seu excelente A Educação como Cultura (São Paulo: Brasiliense,1985). Se a transmissão de conhecimentos tem peso importante na estruturação e sobrevivência das sociedades humanas, então a questão do chamado “ensino tradicional” deve ser abordada de forma menos leviana 3.

Essa forma de pensar a educação contribuiu para o estabelecimento, em parte do pensamento de esquerda, do que eu defino, provisoriamente, como uma “Antropologia do Desprezo e da Incapacidade” ( pois não é algo sistemático e transparente. Afinal pouquíssimos teriam coragem de afirmar isto de peito aberto) que sintetizo nos seguintes pontos:
--- os estudantes pobres, por circunstâncias várias, materiais, psíquicas etc, não vai aprender tanto quanto um aluno da classe média ou da elite. Ler e escrever e ser “conscientizado” seria o bastante. Cabem, portanto, as políticas compensatórias. Como se fosse impossível para o aluno das periferias e dos rincões do Brasil profundo deixar de se encantar e motivar pela diferença. Como se algumas horas de alienação de seu cotidiano bruto não fizessem diferença, para a melhor, na constituição de sua subjetividade. Esquecer que passa fome e se concentrar em algo totalmente inesperado e diverso.
---o ensino deve sempre partir da realidade do aluno, este tem uma “identidade” a ser respeitada.
---a cultura erudita e científica (clássica, humanista, contemporânea) virou sem mais nem menos a cultura dominante. Portanto não “atende aos interesses” das classes populares (ou eles não teriam “capacidade” para compreendê-la).
Essas posturas falaciosas enclausuraram os estudantes pobres numa cultura artificial das classes desfavorecidas que em que pesem seus méritos (chamar atenção para o desconhecimento das leis trabalhistas e demais direitos elementares, saúde, moradia, saneamento) restringiu à formação acadêmica desses jovens ao aqui agora habitual (como se fosse pecado apresentar-lhes outras realidades, bastante diferentes de seu entorno imediato). Além de comportar uma presunção evidente: o mestre, ainda que oriundo de um meio distinto do educando, já conheceria de antemão o que seria melhor para os seus miseráveis discípulos.

Desse modo , parte dos herdeiros de Rousseau, Diderot, Condorcet, Ferrer, Makarenko e Gramsci se transfiguraram em porta vozes desta antropologia caricata, que condena os filhos da pobreza a um gueto identitário enquanto os filhos da elite usufruem de uma formação mais sofisticada.

Criticar Paulo Freire 4 parece um luxo reservado aos conservadores, reacionários, fanáticos religiosos e nostálgicos das ditaduras e tiranias em geral. Para alguém que acredita no valor da razão, da democracia, direitos humanos e da educação pública universal parece reservado o papel de espectador mudo, apenas contemplando um edifício aparentemente perfeito.
De certa forma, é difícil encontrar material crítico de boa qualidade neste quesito, excetuando Demerval Saviani e discípulos, Roberto Romano, alguns pós-modernos (para quem Freire não foi suficientemente “radical” ou é um pedagogo burguês mais dissimulada, acreditem, há quem afirme isto!) e alguns gatos pingados de diversas tendências o ambiente é um tanto árido. Como se estivessem pisando em ovos.
Um autor que não se enquadra no padrão da esquerda acadêmica, mesmo não sendo um direitista furioso, será ignorado, ainda que tenha algo pertinente a dizer.
Com relação aos hagiógrafos, aparecem as justificativas de sempre: você não leu/entendeu direito (ou simplesmente não leu), não é bem assim, ele foi distorcido pelos seus seguidores. Nunca ao grande mestre é dado o direito de errar.

Acredito que o termo “educação bancária” e demais noções freirianas sejam meramente chavões, palavras de ordem, estigmas que obscurecem a compreensão de problemas mais urgentes e essenciais 5. De enorme apelação retórica, mas sem grande comprovação empírica. Dar um sentido ao ensino público gratuito e universal neste século XXI, ou seja, decidir o que deve ser ensinado, um currículo básico e que possa ser eficientemente trabalhado, definir quais são as atribuições e limites da instituição escolar, isto sim é mais importante do que implicar com quem utiliza lousa e giz, ou métodos que não agradam parte do mandarinato pedagógico, mas são viáveis para aquela comunidade. Giz, quadro branco ou negro, datashow, lousa digital interativa são acessórios para uma relação entre professor, aluno e saberes próprios da vida escolar.

Ironicamente, o que pretendia ser um contra discurso pedagógico contra a falsa consciência, o engodo de que a escolarização por si só resolveria todos os problemas, sem outras reformas sociais e políticas mais veementes, transformou-se em mais um discurso canônico (como o construtivismo, ou o que muitos entendem por este termo) a ser venerado e aplicado (sem maiores confrontações críticas) à realidade concreta, ainda que seus resultados posteriores tenham sido trágicos e contraproducentes. Uma ciência onipotente e dona de todas as respostas.


Nota Bibliográfica:

Este ensaio é fruto de questionamentos e reflexões que venho fazendo no decorrer dos anos. Não brotaram por geração espontânea. Conseqüência da pratica cotidiana, diálogos com colegas e das leituras que fiz. Algumas vezes passo para o papel em forma de rascunhos que não chegam a uma forma final. Apenas desabafos. No geral ficam fermentando em minha mente, reelaborados e acrescidos de novos elementos e insigths. Até que finalmente senti necessidade de expô-los de forma mais organizada, ainda que não tenha ficado totalmente satisfeito com o resultado final,de qualquer forma aqui está uma obra minha lavra. Não tenciono ser o grande "desmistificador", o "ousado"... Apenas um exercício de livre pensamento.
Segue abaixo uma bibliografia básica, ainda que não toquem diretamente na questão da "educação bancária" e demais conceitos freireanos.


CARVALHO, José Sérgio Fonseca de “Apontamentos para uma crítica das repercussões da obra de Paulo Freire.” Cadernos de História e Filosofia da Educação, São Paulo, v. II, n. 4, p. 23-33, 1998.
MORAES, Amaury César   Uma Crítica da Razão Pedagógica, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, FEUSP, 1997.
SOUZA, M. C. C. C. . “À sombra do fracasso escolar: a psicologia e as práticas pedagógicas.” In Estilos da Clínica (USP), São Paulo, v. 3, n. 5, p. 63-82, 1998
VALLE,Lilian do “Pedra de tropeço: a igualdade como ponto de partida” In Educação & Sociedade, vol 24, n.82, p. 259-266, Abril de 2003

Utilizei a 11ª edição da Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. As citações foram tiradas das páginas 66, 98 e segs.

Um contraponto de esquerda é Dermeval Saviani Pedagogia Histórico-Crítica: Primeiras Aproximações. Cortez Editora e Editora Autores Associados, São Paulo, 1991

Notas:

1 - MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 6ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1987 p.38;  NIETZSCHE, F. "Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral"  In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005 , p.54.
2 - Cf. os trabalhos de M M C de CARVALHO, em especial  "O novo, o velho, o perigoso: relendo a Cultura Brasileira. in Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 71, novembro de 1989,pp. 29-35. Tomo emprestado aqui uma expressão criada por Moacir Gadotti, no seu livro Pensamento Pedagógico Brasileiro. São Paulo: Ática, 1991, embora tenha discordâncias quanto as suas conclusões. No mais apenas repete o esquema de Fernando de Azevedo quanto ensino pré-Escola Nova.
3 - Ainda mais porque o hábito de contar histórias tornou-se novamente popular em bibliotecas, centros culturais, livrarias e mesmo em hospitais. Além do valor lúdico e incentivo à leitura, tem função terapêutica decisiva no tratamento de crianças com enfermidades graves, terminais ou com chances de recuperação.
4 - Uma grande oportunidade desperdiçada  foi a polêmica em torno da reportagem "O Inssino no Brasiu é otimo"da Revista Veja, Edição 2074, de 20 de agosto de 2008 . Com seu dogmatismo e arrogância peculiares a equipe do semanário traçou um panorama do ensino brasileiro. Gravíssimo sem dúvida, todavia o texto, de tão mal elaborado, dado à generalizações e pré-julgamentos, serviu mais para confundir do que esclarecer. De maneira involuntária reforçou a aura em torno de Paulo Freire intocável e inquestionável. Assim, seus seguidores podem fortalecer a noção de que apenas neoliberais e reacionários divergem do educador pernambucano. Agora ele também é vítima de uma conspiração do PIG.
5 -Portanto, a linguagem é uma das portas de entrada para o complexo de conhecimentos e os grande problemas (sociais, culturais, psíquicos...) que afligem o ser. Uma segunda natureza que qualifica e demonstra verdades, mas também serve para escamoteá-las, segundo certos interesses. Só entidades a-históricas podem uma definição no sentido literal da palavra. Sendo assim, tradição, transmissão, aula e tantos outros são fenômenos históricos, socio-antropológicos com muitos aspectos. A mesquinhez político-pedagógiga que pretende dar a palavra final a tudo só agrava nossa miséria educacional. Confrontar teoria com a realidade concreta seria uma prova de honestidade intelectual e um passo a frente. Desse modo escola tradicional é um termo de escasso valor descritivo, embora de grande força retórica. "O termo "tradição" por vezes tem uma conotação negativa, que o identifica com algo arcaico, em desuso ou mesmo dogmático. Não é esse, evidentemente, o caso neste contexto. Uma 'tradição pública" - como a língua portuguesa - é um saber de um povo, de uma nação ou civilização no qual os novos são iniciados. Trata-se, portanto de uma realização histórica que herdamos, incorporamos e inovamos, de um legado cultural específico, cujos critérios de uso e avaliação são públicos e sujeitos a constantes transformações, como as línguas, as ciências, as artes etc." cf. CARVALHO, J S F "Podem a ética e a cidadania ser ensinadas?" nota 11 http://www.forumeducacao.hpg.ig.com.br/textos/textos/filo4.htm