“Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As frases ocas sobre a consciência cessam, e um saber real deve tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência.” Marx & Engels
“No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um impulso à verdade.” Nietzsche 1
A Educação (seja aquela compreendida como educação escolar, universitária, não formal, educação familiar ou socialização primária, ensino técnico profissionalizante, entre outras formas) é considerada um elemento fundamental para o bem-estar e desenvolvimento da sociedade (senão o único, para alguns exaltados) por vários tipos de discursos, à direita e à esquerda. Como é sabido, o campo educacional na contemporaneidade está atravessado de crises e indefinições que provocam enorme desconforto em seus agentes mais implicados. A desvalorização simbólica da carreira docente (e seu empobrecimento material), programas de reengenharia e qualidade total, a mistura entre o dispositivo escolar e a mentalidade empresarial que não deixam claro as distinções entre empresa e escola, o predomínio do saber psicológico, que cria estigmas e obstáculos a uma práxis mais produtiva (e abafa outras vozes no ambiente educativo), a omissão do Estado que não provém as escolas dos recursos materiais necessários, a relação conturbada entre mídia e educadores, que não tem suas demandas devidamente apresentadas pelos veículos de comunicação (que tendem a distorcer ou apresentar de forma parcial e tendenciosa as reivindicações docentes). Num plano mais existencial, existe a indiferença dos jovens à cultura escolar, casos de violência e drogadicção, famílias delegando suas funções ao aparelho escolar que está sem recursos mínimos para realizar tarefas que lhe são próprias...
Estes problemas que apresentei resumidamente são universais no Ocidente e parte do Oriente. Em locais mais carentes eles podem ser amplificados, pois estão correlacionados ao desemprego, conflitos políticos, religiosos e étnicos, fragilidade do Estado, mudanças constantes do mundo globalizado etc. Lugares com Estado de Bem Estar Social relativamente funcional e cultura cívica mais forte podem amenizar estes sintomas. Mas a sensação de mal-estar é predominante nas sociedades capitalistas contemporâneas.
No Brasil, a massificação do ensino no final dos anos 1960 criou uma ilusão de crescimento, de acesso democrático à educação, mas ao mesmo tempo instituiu condições de ensino precárias que alargaram ainda mais a distância entre a “escola dos ricos” e a “escola dos pobres”. Desse modo, enorme quantidade de jovens sem capital cultural não tem como concorrer com pessoas que receberam formação mais consistente.
Numa sociedade de desigualdade abissal como a brasileira, onde a pobreza e precariedade se criam e recriam continuamente, a omissão do Poder Público, o economicismo dos neoliberais e das elites predatórias, a aversão aos conflitos mais profundos tem seu peso decisivo nesta situação. Isso é do conhecimento de todos que possuem um mínimo de consciência política.
O que pretendo fazer é demonstrar que parte do pensamento de esquerda tem sua parcela de responsabilidade nessa situação calamitosa, seja por omissão, ou por apegar-se a ideias que se revelaram problemáticas, ao invés de proporcionar melhorias, complicaram ainda mais uma situação bastante difícil. O apego acrítico a estes procedimentos, seja por medo de perder influência e prestígio no campo educacional (e outras esferas) ou mero sectarismo epistemológico-político de quem nunca teve boa vontade em debater num ambiente científico e aberto, tem o seu quinhão de culpa nesta situação (algumas vezes por teimosia ou por boas intenções).
Escrever e ou falar em nome próprio, sem agarra-se em corrimões, sem preocupações/dissimulações retóricas, simplesmente utilizando as próprias palavras ou soltando os demônios é difícil e constitui enorme responsabilidade. Ainda mais num ambiente intelectual como a brasileiro, que tem aversão ao conflito, a divergência pura de ideias, fora de ofensas pessoais, argumentos ad hominen. Sensação de que parecemos “arrogantes”, “inconvenientes” “metido a besta” é enorme e sufocante. Mas aqui está o que eu penso sobre este assunto.
Os humanos são criaturas que classificam dados de sua realidade. Escolher, atribuir significado, classificar, nomear constituem peças essenciais de nosso aparato cognitivo. Nenhuma destas ações é destituída de consequências. A classificação é uma ato de poder.
O campo pedagógico é um espaço de conflitos. Lutas pelo poder, representação e reconhecimento político, estético e epistemológico. As estratégias, justificativas e objetivos nem sempre são transparentes e as condições de cada grupo são quase sempre desiguais.
Logo, as classificações são armas decisivas nestes embates. Lâminas afiadíssimas. O campo educativo é um lugar por excelência da proliferação destas qualificações que se transfiguram em estigmas, xingamentos epistemológicos, estereótipos...
Por milênios a socialização (que, num primeiro momento trato como sinônimo de educação, embora não se limite a este processo) instaura-se por meio da transmissão de elementos (valores, proibições e tabus, crenças e ritos, técnicas e práticas para fins diversos, regras/normas para regular o relacionamento entre os sexos e gerações e demais construções sociais) vitais para a sobrevivência e reprodução das sociedades. O processo não é linear, isento de conflitualidade, negociações, mudanças abruptas ou lentas.
Em poucas palavras: o mais velho ensinava (explicava, demonstrava ou mesmo impunha) aos mais jovens certos saberes essenciais. Esta violência simbólica constitui um fato histórico, antropológico e psíquico dos seres humanos. Elemento estruturante da civilização. Ela pode, e deve, ser questionada e direcionada
Temos aqui, sinteticamente, a famigerada transmissão de conhecimento. Seus fundamentos, que são questionados contemporaneamente, tem uma história complexa.
Para os gregos, como Platão e Aristóteles, a educação acontecia pelo
thauma, ou seja, admiração e espanto frente a saberes que os alunos deveriam aprender. Pressupõe distanciamento da realidade imediata. Uma educação que vem do exterior para atingir o mais profundo do ser. A imitação de atitudes, práticas, ritos é a tônica central. Esta imitação levaria ao domínio para depois a pessoa se auto educar. Eles não acreditavam em capacidades inatas, de julgar e diferenciar, tudo deveria ser aprendido através da cultura. Desse modo a importância imitação dos mais sábios. Temos aqui a Educação Clássica, a greco-romana e cristã-medieval,e em certos aspectos a chinesa, que se confunde com a malfadada e mal conceituada Educação Tradicional.
Em princípio não é uma educação utilitária, seria um fim em si mesma. Cada configuração social, na Antiguidade, Medievo, Renascimento e Modernidade de certa forma apropriou-se deste princípios básicos,adaptando-os a cada realidade. Os iluministas Locke, Rousseau, Condorcet e Diderot não desdenham destes elementos, apenas acrescentam novas ideias e podam o que é considerado arcaico. Há um embrião do que chamamos de ensino técnico e profissionalizante, não necessariamente divorciado do clássico. A Filosofia e a Razão alimentam os ideais educacionais. Pestalozzi, Froebel e Herbart, no olho do furacão das Revoluções Industrial, Francesa e da “Primavera dos Povos”, são herdeiros do iluminismo, mas acrescentam o seguinte: a Filosofia mostra o fim da educação, enquanto a Psicologia mostra o caminho, os meios e os obstáculos. Seria uma “auxiliar”. Não se pode negar inspirações do romantismo, em especial na valorização dos sentimentos e emoções devidamente regradas pela racionalidade. O teor psicologizante que reina quase soberano na educação contemporânea é resultante deste processo que mesclou iluminismo e romantismo (além da necessidade de se adaptar e arregimentar mão de obra para a industrialização crescente). Mas não há espaço para desenvolver este tópico, por enquanto...
Os estilos de transmissão de conhecimento são variados e flexíveis (dotados, portanto de historicidade); desde os mais rígidos e unilaterais (a inculcação sem questionamento algum) até os mais dialógicos. Os limites nem sempre são claros. Como podemos observar na nossa vida cotidiana, por exemplo na criação dos filhos e na realidade da sala de aula, podemos ser mais rígidos ou flexíveis, conforme a ocasião. Mas sempre prevalecia uma diferença, relação hierárquica (entre pais e filhos, mestre e aprendiz, professor e aluno) entre aquele que veio antes e carrega um patrimônio simbólico e, os que chegaram agora, e precisam apropriar-se destes conteúdos culturais, aprender como eles são, para depois aplicá-los, reelaborá-los ou até mesmo recusá-los.
Portanto, não se trata de romantizar, edulcorar formas educativas do passado (distante ou mais recente), mas de compreender seu significado e função dentro de dada configuração social. Assim como não é justo ou intelectualmente honesto distorcer seu significado e depreciá-los por serem simplesmente velhos, seculares ou milenares (ainda que funcionais dentro de seu contexto, ou até mesmo eficientes para a realidade contemporânea).
Há que diferenciar o arcaico/antigo/tradicional do obsoleto e inútil.
No final do século XIX opera-se uma transformação: a Educação Nova, com Claparède, Decroly, Montessori e Dewey fundamenta a pedagogia no saber científico (em especial a medicina e a psicologia). Empiricista, adotando o conceito de vida como adaptação contínua, os conhecimentos deviam acompanhar as exigências da vida prática, em forma de adaptação às sociedades modernas industriais. Embora parte destes educadores seja liberal ou simpatizante dos socialismos, e não deseje apenas formar "bons operários". A princípio não há uma negação à apropriação do patrimônio cultural acumulado pela humanidade. Entretanto as divergências quanto as formas de ensinar são mais profundas e tensas. Em poucas palavras há um predomínio do método sobre o conteúdo. Do como ensinar ao o que ensinar. Tensão que predomina até hoje. Reinventando a roda a todo momento. Paulo Freire é um herdeiro espiritual da Educação Nova, somando a este ideário o nacional-desenvolvimentismo (tipo ISEB) e pensamento de esquerda que ele tomou conhecimento na época (anos 1950-1960). Um tanto de C. Freinet tem o seu peso, em especial no que se refere aos grupos de estudo.
Todavia, existe uma barreira ideológica que oblitera um diálogo mais produtivo entre o velho/novo, antigo/moderno, que é a mencionada produção de estigmas. O novo, a mudança pela mudança, não deveriam receber privilégios (ou terem seus pontos problemáticos amenizados, subestimados...). O tradicional e o novo devem ter garantidas sua cidadania e serem submetidos a um olhar crítico aguçado. Sem privilégios e preconceitos.
Uma trava de grande prestígio e valor retórico é o construto elaborado por Paulo Freire (1921-1997) que recebe o nome de “educação bancária” ou “concepção bancária da educação”. Nas suas próprias palavras:
“Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandossão os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, oeducador faz comunicados e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a “concepção bancária da educação”, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a dereceberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.”
Desse modo:
“Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.”
“O educador que aliena a ignorância, se mantêm em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca. (…), educador é o que pensa, os educandos os pensados.”
Ou ainda:
“Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos – mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma
inestruturada”
O que chama atenção no pensamento freireano, a partir da pequena amostragem que reuni (e estou me referindo apenas a “Pedagogia do Oprimido”), é o seu voluntarismo e maniqueísmo: existe o lado equivocado e perverso(mesmo que seu representante compartilhe postura política semelhante, está sempre representando, ainda que inconscientemente, a ideologia do opressor, portanto burguesa, tradicional, a serviço do capital) que é apresentado em poucos parágrafos e páginas, sem grande aparato erudito, citações de livros e documentos (como se tudo fosse claro como a água da fonte e não existissem ruídos que interfiram nesta comunicação) e por fim, o mestre apresenta (ou melhor, revela tal como profeta bíblico) a postura correta e verdadeira. Nota-se que em momento algum o autor reconhece alguma dúvida, fragilidade conceitual ou inconsistência em suas formulações; ou reconhece algum mérito nas ideias do lado oposto, em pedagogias e filosofias que não compartilham de seus pressupostos “progressistas” e “revolucionários”. Curiosamente, para alguém que prega o respeito à diferença e aprendizagem mútua e dialogante, há o predomínio de uma grande auto suficiência teórica e prática (ou seria vaidade?).
Dessa forma, a “Pedagogia do Oprimido” é assim toda constituída de imperativos e categorizações sumárias que beiram o estereótipo. A história da educação inexiste. É inútil para fornecer elementos para reflexão, pois o autor já chegou a todas as conclusões e possui todas as certezas. Ou parece que os procedimentos do historiador são de alguma forma incômodos, inconvenientes para a sustentação desta obra.
A meu ver o conceito de “educação bancária” é bastante defeituoso. Talvez Paulo Freire tenha encaminhado mal a discussão, que poderia ser feita de outra forma. Como metáfora é bastante infeliz. Ele implica uma relação transmissor-receptor bastante unilateral, como se o aluno não reelaborasse o que lhe foi transmitido. Ou que a resistência e mesmo recusa não estivessem implicadas nesta relação.
Reduzir a relação adulto-criança, desde os primeiros hominídeos, passando pela Grécia, Idade Média, Pedagogia Inaciana etc, a uma série de constrangimentos e manipulações é algo bastante empobrecedor. Como se nenhuma pessoa tenha se beneficiado da educação escolar que recebeu, por mínima que seja. Ou como se todos os professores que ela teve, fossem figuras caricatas e unidimensionais.
Assim como quase totalidade do “pensamento pedagógico brasileiro”, Paulo Freire é tributário da concepção de nosso passado pensada por Fernando de Azevedo na “A Cultura Brasileira.” (1943). Neste clássico da nossa historiografia e ciência social, toda experiência pedagógica anterior ao advento do “Pioneiros da Escola Nova” fica relegada ao limbo do “tradicional', “arcaico”, “ineficiente”2, sendo sumariamente descartada. Nesse caso, questões de estratégia política, como a necessidade de estabelecer uma posição firme de seu grupo no cenário intelectual foram essenciais para a criação de uma memória negativa da educação brasileira.
Impressiona a carga de negatividade que as expressões narrar e dissertar recebem. A educação padeceria da "doença da narração". Como se contar fábulas, fatos históricos, passagens de livros ou expor um conceito matemático / científico de forma crua e simples (sem preocupação com os ditos “sabres prévios”) constituísse uma arbitrariedade tamanha que paralisaria o cérebro estudantil, impedindo que a dúvida, a discordância ou qualquer outra atividade mental aflorasse nas mentes dos ouvintes. Não se está falando de variações destes elementos que poderiam ter tido um uso equivocado, vicioso que se revelou inviável e mesmo prejudicial aos alunos. Trata-se de se fazer tábula rasa do passado educacional. Tudo seria apenas “decoreba” e “falação” inútil...
Curiosamente, sociedades tradicionais, como as indígenas brasileiras, tem na repetição e transmissão da memória coletiva, via oralidade, a forma nodal para sua reprodução social e sobrevivência espiritual e simbólica, frente ao impacto incontrolável das novas mídias e modos de vida, desagregação ambiental e invasão de territórios provocados pelo capital. A educação destes povos, que possuem muitos elementos da “educação tradicional” severamente censurados por Paulo Freire e discípulos como a repetição, predominância da narração, diferença substancial entre quem ensina e quem aprende, praticamente não é alvo de críticas, tendo seus méritos reconhecidos por freireanos como Carlo Rodrigues Brandão, um antropólogo de renome, no seu excelente A Educação como Cultura (São Paulo: Brasiliense,1985). Se a transmissão de conhecimentos tem peso importante na estruturação e sobrevivência das sociedades humanas, então a questão do chamado “ensino tradicional” deve ser abordada de forma menos leviana 3.
Essa forma de pensar a educação contribuiu para o estabelecimento, em parte do pensamento de esquerda, do que eu defino, provisoriamente, como uma “Antropologia do Desprezo e da Incapacidade” ( pois não é algo sistemático e transparente. Afinal pouquíssimos teriam coragem de afirmar isto de peito aberto) que sintetizo nos seguintes pontos:
--- os estudantes pobres, por circunstâncias várias, materiais, psíquicas etc, não vai aprender tanto quanto um aluno da classe média ou da elite. Ler e escrever e ser “conscientizado” seria o bastante. Cabem, portanto, as políticas compensatórias. Como se fosse impossível para o aluno das periferias e dos rincões do Brasil profundo deixar de se encantar e motivar pela diferença. Como se algumas horas de alienação de seu cotidiano bruto não fizessem diferença, para a melhor, na constituição de sua subjetividade. Esquecer que passa fome e se concentrar em algo totalmente inesperado e diverso.
---o ensino deve sempre partir da realidade do aluno, este tem uma “identidade” a ser respeitada.
---a cultura erudita e científica (clássica, humanista, contemporânea) virou sem mais nem menos a cultura dominante. Portanto não “atende aos interesses” das classes populares (ou eles não teriam “capacidade” para compreendê-la).
Essas posturas falaciosas enclausuraram os estudantes pobres numa cultura artificial das classes desfavorecidas que em que pesem seus méritos (chamar atenção para o desconhecimento das leis trabalhistas e demais direitos elementares, saúde, moradia, saneamento) restringiu à formação acadêmica desses jovens ao aqui agora habitual (como se fosse pecado apresentar-lhes outras realidades, bastante diferentes de seu entorno imediato). Além de comportar uma presunção evidente: o mestre, ainda que oriundo de um meio distinto do educando, já conheceria de antemão o que seria melhor para os seus miseráveis discípulos.
Desse modo , parte dos herdeiros de Rousseau, Diderot, Condorcet, Ferrer, Makarenko e Gramsci se transfiguraram em porta vozes desta antropologia caricata, que condena os filhos da pobreza a um gueto identitário enquanto os filhos da elite usufruem de uma formação mais sofisticada.
Criticar Paulo Freire 4 parece um luxo reservado aos conservadores, reacionários, fanáticos religiosos e nostálgicos das ditaduras e tiranias em geral. Para alguém que acredita no valor da razão, da democracia, direitos humanos e da educação pública universal parece reservado o papel de espectador mudo, apenas contemplando um edifício aparentemente perfeito.
De certa forma, é difícil encontrar material crítico de boa qualidade neste quesito, excetuando Demerval Saviani e discípulos, Roberto Romano, alguns pós-modernos (para quem Freire não foi suficientemente “radical” ou é um pedagogo burguês mais dissimulada, acreditem, há quem afirme isto!) e alguns gatos pingados de diversas tendências o ambiente é um tanto árido. Como se estivessem pisando em ovos.
Um autor que não se enquadra no padrão da esquerda acadêmica, mesmo não sendo um direitista furioso, será ignorado, ainda que tenha algo pertinente a dizer.
Com relação aos hagiógrafos, aparecem as justificativas de sempre: você não leu/entendeu direito (ou simplesmente não leu), não é bem assim, ele foi distorcido pelos seus seguidores. Nunca ao grande mestre é dado o direito de errar.
Acredito que o termo “educação bancária” e demais noções freirianas sejam meramente chavões, palavras de ordem, estigmas que obscurecem a compreensão de problemas mais urgentes e essenciais 5. De enorme apelação retórica, mas sem grande comprovação empírica. Dar um sentido ao ensino público gratuito e universal neste século XXI, ou seja, decidir o que deve ser ensinado, um currículo básico e que possa ser eficientemente trabalhado, definir quais são as atribuições e limites da instituição escolar, isto sim é mais importante do que implicar com quem utiliza lousa e giz, ou métodos que não agradam parte do mandarinato pedagógico, mas são viáveis para aquela comunidade. Giz, quadro branco ou negro, datashow, lousa digital interativa são acessórios para uma relação entre professor, aluno e saberes próprios da vida escolar.
Ironicamente, o que pretendia ser um contra discurso pedagógico contra a falsa consciência, o engodo de que a escolarização por si só resolveria todos os problemas, sem outras reformas sociais e políticas mais veementes, transformou-se em mais um discurso canônico (como o construtivismo, ou o que muitos entendem por este termo) a ser venerado e aplicado (sem maiores confrontações críticas) à realidade concreta, ainda que seus resultados posteriores tenham sido trágicos e contraproducentes. Uma ciência onipotente e dona de todas as respostas.
Nota Bibliográfica:
Este ensaio é fruto de questionamentos e reflexões que venho fazendo no decorrer dos anos. Não brotaram por geração espontânea. Conseqüência da pratica cotidiana, diálogos com colegas e das leituras que fiz. Algumas vezes passo para o papel em forma de rascunhos que não chegam a uma forma final. Apenas desabafos. No geral ficam fermentando em minha mente, reelaborados e acrescidos de novos elementos e insigths. Até que finalmente senti necessidade de expô-los de forma mais organizada, ainda que não tenha ficado totalmente satisfeito com o resultado final,de qualquer forma aqui está uma obra minha lavra. Não tenciono ser o grande "desmistificador", o "ousado"... Apenas um exercício de livre pensamento.
Segue abaixo uma bibliografia básica, ainda que não toquem diretamente na questão da "educação bancária" e demais conceitos freireanos.
CARVALHO, José Sérgio Fonseca de
“Apontamentos para uma crítica das repercussões da obra de Paulo Freire.” Cadernos de História e Filosofia da Educação, São Paulo, v. II, n. 4, p. 23-33, 1998.
MORAES, Amaury César
Uma Crítica da Razão Pedagógica, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, FEUSP, 1997.
SOUZA, M. C. C. C. .
“À sombra do fracasso escolar: a psicologia e as práticas pedagógicas.” In
Estilos da Clínica (USP), São Paulo, v. 3, n. 5, p. 63-82, 1998
VALLE,Lilian do
“Pedra de tropeço: a igualdade como ponto de partida” In
Educação & Sociedade, vol 24, n.82, p. 259-266, Abril de 2003
Utilizei a 11ª edição da Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. As citações foram tiradas das páginas 66, 98 e segs.
Um contraponto de esquerda é Dermeval Saviani Pedagogia Histórico-Crítica: Primeiras Aproximações. Cortez Editora e Editora Autores Associados, São Paulo, 1991
Notas:
1 - MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 6ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1987 p.38; NIETZSCHE, F. "Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral" In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005 , p.54.
2 - Cf. os trabalhos de M M C de CARVALHO, em especial "O novo, o velho, o perigoso: relendo a Cultura Brasileira. in Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 71, novembro de 1989,pp. 29-35. Tomo emprestado aqui uma expressão criada por Moacir Gadotti, no seu livro Pensamento Pedagógico Brasileiro. São Paulo: Ática, 1991, embora tenha discordâncias quanto as suas conclusões. No mais apenas repete o esquema de Fernando de Azevedo quanto ensino pré-Escola Nova.
3 - Ainda mais porque o hábito de contar histórias tornou-se novamente popular em bibliotecas, centros culturais, livrarias e mesmo em hospitais. Além do valor lúdico e incentivo à leitura, tem função terapêutica decisiva no tratamento de crianças com enfermidades graves, terminais ou com chances de recuperação.
4 - Uma grande oportunidade desperdiçada foi a polêmica em torno da reportagem "O Inssino no Brasiu é otimo"da Revista Veja, Edição 2074, de 20 de agosto de 2008 . Com seu dogmatismo e arrogância peculiares a equipe do semanário traçou um panorama do ensino brasileiro. Gravíssimo sem dúvida, todavia o texto, de tão mal elaborado, dado à generalizações e pré-julgamentos, serviu mais para confundir do que esclarecer. De maneira involuntária reforçou a aura em torno de Paulo Freire intocável e inquestionável. Assim, seus seguidores podem fortalecer a noção de que apenas neoliberais e reacionários divergem do educador pernambucano. Agora ele também é vítima de uma conspiração do PIG.
5 -Portanto, a linguagem é uma das portas de entrada para o complexo de conhecimentos e os grande problemas (sociais, culturais, psíquicos...) que afligem o ser. Uma segunda natureza que qualifica e demonstra verdades, mas também serve para escamoteá-las, segundo certos interesses. Só entidades a-históricas podem uma definição no sentido literal da palavra. Sendo assim, tradição, transmissão, aula e tantos outros são fenômenos históricos, socio-antropológicos com muitos aspectos. A mesquinhez político-pedagógiga que pretende dar a palavra final a tudo só agrava nossa miséria educacional. Confrontar teoria com a realidade concreta seria uma prova de honestidade intelectual e um passo a frente. Desse modo escola tradicional é um termo de escasso valor descritivo, embora de grande força retórica. "O termo "tradição" por vezes tem uma conotação negativa, que o identifica com algo arcaico, em desuso ou mesmo dogmático. Não é esse, evidentemente, o caso neste contexto. Uma 'tradição pública" - como a língua portuguesa - é um saber de um povo, de uma nação ou civilização no qual os novos são iniciados. Trata-se, portanto de uma realização histórica que herdamos, incorporamos e inovamos, de um legado cultural específico, cujos critérios de uso e avaliação são públicos e sujeitos a constantes transformações, como as línguas, as ciências, as artes etc." cf. CARVALHO, J S F "Podem a ética e a cidadania ser ensinadas?" nota 11 http://www.forumeducacao.hpg.ig.com.br/textos/textos/filo4.htm