O francês
Michel de Pracontal (nascido em 1954) é mestre em Matemática e
doutor em Ciências da Informação sobre divulgação científica.
Jornalista científico, é autor de, entre outros livros, Les
mystères de la memoire del'eau (La Découverte, 1990), La guerre du
tabac (Fayard, 1998) e o mais recente, Kaluchua
- Cultures, techniques et traditions des sociétés animales
(Le Seuil, 2010), sobre uma possível existência de “cultura
animal”, em especial entre os primatas, caracterizada pela
transmissão de informações para gerações sucessivas, sem passar
pela genética. Tema ainda sujeito a muitas pesquisas e discussões
dentro da comunidade científica. Este último merece uma edição brasileira.
Seu único livro traduzido para o português é A impostura científica em dez lições (tradução: Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 2004). Originalmente publicado em 2001 (é a revisão de uma obra de 1986, agora enriquecida com novos conhecimentos). Por impostura científica podemos englobar um domínio muito amplo, que passa pelo charlatanismo, divulgação de meias-verdades, desonestidade intelectual, falta de ética ou mesmo teses enunciadas por pesquisadores sérios, mas que empírica e teoricamente são frágeis, embora sejam muito sedutoras para parte da academia, público e mídia. A mídia, aliás, tem seu quinhão de responsabilidade na promoção de muitas imposturas. Abrange também as chamadas pseudo-ciências, tipo astrologia, ufologia, parapsicologia...
Trata-se de um autor cético, mas de uma tradição diferente do ceticismo anglo-saxão que tem grande popularidade entre nós (cf. Daniel Dennet, Richard Dawkins, Sam Harris e o falecido Christopher Hitchens outros). De firme acento popperiano, não é um cientificista extremo. Reconhece o valor de saberes que não necessariamente se pautam pela mesma metodologia das ciências naturais, como a psicanálise e as ciências humanas.
Transcrevo uma parte do capítulo 7, mais precisamente os itens "A impossível unicidade do saber"; "O homem é a finalidade do universo?" e "O paradigma do umbigo". Pracontal discute a questão da pretensa "unicidade do conhecimento" (denominada por alguns de "holismo") de forma bastante apurada e incisiva. A complexidade das ciências e demais saberes a partir da modernidade tornam ilusória e prejudicial ao conhecimento a insistência nesta improvável "unidade".
A impossível unicidade do saber.
O
holograma cósmico é um mito moderno que reatualiza o pensamento
holístico, visão do universo concebido como um Todo harmonioso
cujas partes são interdependentes, à imagem de um organismo. O
taoismo, tal como o descreve Joseph Needham, é um pensamento
holístico. O Unus Mundi, ele também, procede de uma
concepção holística, e mais geralmente o holismo se encontra, com
algumas variantes, em inúmeras mitologias tradicionais, se não em
todas, pois é a maneira mais “natural” de pensar o cosmos, o
berço de toda cosmologia. A época moderna nos arrancou da doçura
desse berço e nos jogou brutalmente num universo em pedaços, onde
não existe relação harmoniosa entre o todo e as partes. Nossa
cosmologia é a do Big Bang, da grande explosão, e certamente não é
indiferente que o período histórico em que nos encontramos tenha
começado por outra explosão, a de Hiroshima.
Essa
situação tem pesadas consequências sobre a maneira como o homem
contemporâneo pensa sua relação com o universo. Aumentando nosso
poder sobre a natureza, a ciência e a tecnologia também tornaram
mais complexas nossas relações com ela. Os mitos e as religiões
não permitiam domesticar energia do átomo, pousar na Lua ou
realizar um transplante de coração, mas proporcionavam a “paz dos
sentidos”. Hoje, o “império dos sentidos” explodiu. Dele
resulta uma perturbação da qual os gurus de plantão e os
impostores de toda espécie tiram proveito. Mas observam-se também
tentativas de restaurar o Unus Mundi, ou em todo caso
uma forma de unidade do mundo, que não são puros engodos
intelectuais, mesmo que continuem sendo ilusórias.
Eu
classificaria nessa categoria intermediaria a concepção de Teilhard
de Chardin, segundo a qual a última grande etapa da evolução, a
“noogênese”, corresponderia a uma espiritualização progressiva
da matéria da qual o homem seria a chave e que convergiria para um
“ponto ômega”. Ou ainda, a “hipótese Gaia” de James
Lovelock, segundo a qual a Terra é um “superorganismo”, um “ser
vivo” macroscópico, de cuja vida participam plantas e animais 19
(Gaia ou Ge é uma divindade grega que personifica a Terra). Nos dois
casos, trata-se de metáforas evocativas, não de mecanismos que se
podem observar e verificar experimentalmente.
A ideia
de Lovelock é sedutora e fornece um poderoso suporte imaginário
para representar os sistemas ecológicos e suas inter-relações. Não
é de admirar que essa ideia conheça uma grande voga no momento em
que todos se preocupam com o efeito estufa e a mudança global do
clima. Mas tomar a hipótese Gaia ao pé da letra leva a uma
representação errônea. A Terra não é um organismo no sentido
biológico: ela não se reproduz e não foi “gerada” por
organismos da mesma espécie que ela. Contudo, as diferentes formas
de vida não são tão interdependentes como sugere a metáfora
organicista de Lovelock. As extinções maciças que balizaram a
história da vida sobre a Terra não impediram, a cada vez, que novas
espécies se desenvolvessem em novos sistemas ecológicos. Mesmo que
toda a vida desaparecesse de repente da superfície do globo, este
último não deixaria de existir. E poderíamos até imaginar que a
vida aparecesse uma segunda vez, sem relação com a primeira.
Claro que
a Terra não é um simples cenário no qual os seres vivos evoluem. O
desenvolvimento da vida provocou modificações da atmosfera e do
clima e mudou em parte a figura da Terra, bem antes que as atividades
humanas acrescentassem seus efeitos. É bem verdade que a vida
apareceu no planeta quando este já existia havia um bilhão de anos,
sem o mínimo vegetal ou animal. O fato de que a vida tenha sido
possível se explica pelas condições físico-químicas que então
reinavam. E se ela se manteve depois é, como diria La Palice, porque
não foi destruída. Não é necessário procurar outra hipótese,
salvo se, por razões que dizem respeito de fato à metafísica e à
crença, alguém não conseguiu satisfazer-se com o caráter
contingente e arriscado da existência dos seres vivos.
Detenhamo-nos
sobre outro empreendimento notável, o do célebre naturalista
americano Edward O. Wilson, pai da sociobiologia (ver Lição 3). No
seu último livro, A unicidade do saber 20 se faz o paladino de uma
unificação intelectual que reuniria todos os ramos do saber. Ele a
chama “consiliência”, ressuscitando um velho termo inglês que
significa uma “espécie de salto do saber, ligado pelos fatos e a
teoria empírica, acima das diferentes disciplinas e visando criar
uma base comum de explicação”. Talvez escaldado pelas polêmicas
sobre a sociobiologia, Wilson começa por recuar para saltar melhor:
“O fato de acreditar na consiliência para além das ciências e
através dos grandes ramos do saber não pertence mais à ciência”.
Escreve ele:
É
uma visão metafísica do mundo, e ainda por cima minoritária,
partilhada apenas por um pequeno número de cientistas e filósofos.
Não se pode demonstrá-la pelo prisma de princípios lógicos
fundamentais ou então apoiando-se sobre um conjunto determinado de
testes empíricos, pelo menos não sobre aqueles de que dispomos
hoje. A extrapolação dos sucessos anteriores das ciências da
natureza parece confirmar essa visão.
Tomando
essas precauções retóricas, Wilson se lança alegremente na
extrapolação anunciada. Convencido de que as ciências da natureza
se tornaram “conscilientes”, ele julga poder anunciar o
renascimento da velha ideia da unidade íntima do saber. Segundo o
naturalista, vamos ver surgir uma nova maneira de compreender a
natureza humana, baseada nas ciências do cérebro, na ecologia e na
biologia em geral. Para Wilson, os comportamentos humanos se
transmitem pela cultura, ela própria criada pelo espírito humano,
produto de nosso cérebro geneticamente determinado. De modo que os
genes e a cultura estão indissoluvelmente ligados. Wilson crê
particularmente que será possível formular “regras epigenéticas”
que explicarão um grande número de traços do comportamento e da
cultura – e que então a fronteira entre ciências sociais e
ciências naturais desaparecerá. Ele toma como exemplo o “efeito
Westermarck”, nome de um antropólogo finlandês que demonstrou
que, quando duas pessoas compartilharam sua intimidade durante o
início de sua vida, uma inibição sexual se instala entre elas.
Wilson julga que esse efeito, que ele considera biológico, demonstra
que o tabu do incesto não é uma construção cultura, mas um
comportamento inato.
“A
teoria social ortodoxa afirma que a moral consiste em grande parte em
obrigações e deveres convencionais construídos pela moda e pelos
costumes”, escreve Wilson. “A concepção oposta, defendida por
Westermarck nos seus escritos sobre a ética, quer que os conceitos
morais derivem de emoções inatas.” É claro que é essa concepção
que o nosso autor compartilha.
Sem
retomar o eterno debate sobre o inato e o adquirido, observemos que o
discurso de Wilson é sustentado por um princípio metafísico
unitário: o naturalista rejeita a priori a ideia de que
possam existir várias ordens de realidade, várias classes de
fenômenos heterogêneos. Ele não aceita que as teorias que explicam
o funcionamento de nossos órgãos não tenham relação direta com
as teorias da sociedade e da cultura, da mesma maneira que as teorias
do átomo não nos dizem nada de interessante sobre o estilo Luís
XVI ou a pintura da Renascença italiana. Para conservar a unidade,
Wilson prefere explicar o incesto a partir do efeito Westermarck, o
que é tão grosseiro e esquemático quanto pretender descrever um
afresco de Michelangelo alando apenas dos materiais e dos colorantes
utilizados. Wilson reduz a cultura ao biológico, enquanto sua
demonstração, como ele próprio confessa é frágil.
O
naturalista não efetua esta redução por necessidade de método,
mas por um ato de fé: Wilson crê, de maneira quase religiosa, na
ideia de um saber unificado. Sugere, aliás, que “a ciência é a
religião libertada”. Ele impõe assim à ciência os antolhos de
uma concepção globalizante que não aceita os cortes entres os
ramos do saber. Evidentemente, é mais confortável evoluir num
universo mental onde se está seguro de que as teorias são coerentes
entre si e onde é garantido que o mundo tem um sentido. Essa, aliás,
é a principal motivação que incita os homens a recorrer à
“hipótese Deus”, tanto em ciência como em outra área. Mas a
realidade é que nossas teorias são descrições fragmentárias, que
elas não se ligam todas entre si e que não temos nenhuma garantia
de que o mundo tenha um sentido, já que somos nós mesmos que
produzimos esse sentido.
A posição
de Trinh Xuan Thuan, o físico de A doença secreta, oferece
uma variante interessante em comparação com a de Wilson. O físico
reivindica sua fé num Deus organizador: “A cosmologia moderna nos
ensinou que o Universo foi regulado com uma precisão extrema para
que a consciência (baseada na bioquímica do carbono) apareça”,
escreve ele. “Essa regulagem pode ser atribuída tanto ao acaso
como a um Grande Arquiteto. Eu apostei na segunda hipótese.” E
mais adiante: “Se as leis físicas diferem um mínimo daquilo que
são, não estaremos mais aqui para falar disso! Essa regulagem de
extrema precisão será um fato do puro acaso ou resulta da vontade
de um ser supremo?”. Se o nosso físico crê então num plano
divino, ele duvida que possamos conhecê-lo totalmente:
Não
podendo escapar à nossa finitude, só poderemos estudar uma infinita
parte desse vasto universo que é inteiramente interconectado. À
custa de prodigiosos esforços de imaginação e criatividade, homens
de gênio descobrirão cada vez mais conexões e a ciência
progredirá. Mas jamais serão reveladas todas as conexões...
A melodia permanecerá para sempre secreta.
Assim, ao
contrário de Wilson que crê na possibilidade de um saber total,
Trinh Xuan Thuan crê num Criador, mas duvida que possamos aceder ao
saber total. Seu ceticismo se opõe ao grande sonho de uma teoria
unitária, procurado por Einstein e seus sucessores. Os físicos
chamaram “teoria de tudo” esse grandioso edifício que invocam
com fervor. A teoria das supercordas (ver Lição 1) que se
desenvolveu a partir dos anos 1970 parece ser um bom candidato para
realizar essa unificação. Pelo menos no papel, já que nenhuma
demonstração experimental validou a teoria das supercordas. Além
disso, é preciso um entendimento sobre o sentido da palavra “tudo”:
o objetivo dos físicos é reunir as duas teorias mestras da física,
a relatividade e a teoria quântica, a fim de descrever o conjunto
dos fenômenos elementares. Mas as limitações expostas se aplicam
também às supercordas tanto quanto as teorias anteriores, elas não
podem explicar precisamente por que o babirussa tem a forma de um
babirussa ou quais as razões exatas das estruturas de parentesco
entre os índios nhambiquaras.
Os
físicos não pedem tanto. Eles procuram apenas tornar a física mais
coerente, mais sintética. Alguns, como Trinh Xuan Thuan, creem que
essa busca é sem fim. Outros se inclinam mais pela ideia de um
resultado, de um ponto culminante da pequisa teórica. Não parece
que possa haver hoje um desempate. Pode-se, entretanto, afirmar que
até mesmo uma “teoria de tudo” não constituiria o saber total
com que sonha Wilson, e ainda menos uma forma de Unus Mundi. O
pensamento científico, baseado no raciocínio lógico e no confronto
com a experiência objetiva, só pode operar recortando o real. Ele
nos permite apreender melhor certos aspectos, com a condição de
renunciar à percepção intuitiva e global que o mito nos oferece. E
o que é ainda mais, nem sequer sabemos por que a ciência avança.
O homem é
a finalidade do Universo?
Essa
situação angustiante é difícil de aceitar, mesmo para os
cientistas. “O homem está perdido na imensidão indiferente do
Universo de onde emergiu por acaso?, escreve Jacques Monod. Para o
físico americano Steven Weinverg, “quanto mais compreendo o
Universo, mais ele nos parece vazio de sentido”. Trinh Xuan Thuan
compara essas duas citações que exprimem a desilusão de um mundo
sem piedade, no qual devemos contar com nossas próprias forças sem
recorrer à providência divina para dar um sentido à nossa própria
vida e à nossa história.
Nessa
situação só há aspectos negativos. Ela oferece ao espírito uma
liberdade sem precedentes, mas parece que os humanos não detestam
tanto algo quanto detestam a liberdade. Assim que a ciência se
emancipou da hipótese Deus e do plano do Grande Arquiteto, certos
pesquisadores esforçaram-se para restaurar uma visão finalista. Não
recorrendo, dessa vez, ao Criador, mas fazendo do próprio Homem a
finalidade do Universo, a razão de ser da Ordem cósmica. Essa já é
a perspectiva de Teilhard de Chardin. Ela foi reformulada em termos
mais generosos no “princípio antropológico” do astrônomo
britânico Brandon Carter. Esse princípio parte da constatação de
que “ o Universo tem, exatamente, as propriedades requeridas para
engendrar um ser capaz de consciência e de inteligência”. Para
Brandon Carter e os defensores do princípio antrópico, isso não
pode ser fruto do acaso.
Copérnico
deve estar se revirando no túmulo. De que serviu ter mostrado que a
Terra não ´´e o centro do mundo, se foi para concluir que o
Universo só serve para permitir esse evento microscópico na escala
cósmica: o aparecimento de uma espécie consciente e capaz de
conceber teorias forçadas como a de Sheldrake! De que serviu
renunciar ao geocentrismo, se foi para substituí-lo pelo
antropocentrismo? Em A doença secreta, Trinh Xuan Thuan expõe com
finura o “ataque concertado contra o fantasma de Copérnico”.
Demonstra com brio que, por chocante que isso seja aos olhos de
alguns, o Universo poderia ser acidental: “O fato de que as
constantes físicas e as condições iniciais tenham sido capazes de
engendrar a vida seria apenas uma coincidência feliz, sem grande
interesse”. Um sábio poderia muito bem contentar-se em constatar
que é assim: “A ciência moderna nasceu da recusa sistemática e
categórica da explicação dos fenômenos naturais em termos de
'causas finais' ou de 'projeto', atitude própria das doutrinas
religiosas”. Tal atitude, logicamente correta, evita os
procedimentos finalistas de Pangloss ou de Bernardin de Saint-Pierre,
para quem “as abóboras são grandes porque são feitas para serem
comidas em família”.
Mas,
acrescenta Trinh Xuan Thuan, “essa atitude, que encontra a
aprovação do fantasma de Copérnico, suscita o desespero”. Para
escapar dele, nosso físico inverte o problema com uma agilidade
digna do mais casuísta dos jesuítas: “E se houvesse, assim mesmo,
um projeto? Afirmar, sem nenhuma prova, que ele não existe é uma
atitude tao pouco científica e dogmática quanto proclamar que ele
existe.” 21 Certamente que é impossível provar, de maneira
absoluta, que o projeto em questão não existe, tanto quanto não se
pode provar que Deus não existe. É aquilo que se chama, em lógica,
um problema indecidível (ver Lição 10). Mas existe uma certa má-fé
na fé inabalável de Trinh Xuan Thuan: o fato é que, e ele próprio
o demonstra, nenhuma hipótese finalista é necessária para
construir as teorias científicas modernas; essas hipóteses são até
mesmo um obstáculo, pois elas restringem o número de
possibilidades.
Pode-se
acrescentar que a questão de saber por que o Universo foi regulado
com uma precisão extrema para que a consciência aparecesse é uma
questão muito artificial. Ela vem da maneira como são elaboradas as
teorias científicas. Procurou-se de que maneira se tinham formado o
universo, as estrelas, o sistema solar, os planetas e a Terra; a
cosmologia permitiu explicar isso; percebeu-se então que pequenas
variações de alguns parâmetros poderiam resultar num mundo sem
planetas. Perguntou-se o que era necessário para que a vida fosse
possível, e revelou-se que a presença de água líquida era um
fator determinante; ora, bastaria que a Terra estivesse um pouco mais
perto do sol, como Vênus, para que só houvesse vapor; ou um pouco
mais longe, como Marte, para que só houvesse gelo. Assim
apresentado, o quadro dá a impressão de uma conjunção de
coincidências extraordinárias. Entretanto, essa impressão vem
sobretudo de que nós reconstruímos a história depois que
aconteceu: é absolutamente necessário que os parâmetros sejam
compatíveis com nossa existência, senão, não estaríamos aqui
para teorizar. Isso não prova nada quanto à existência de um plano
qualquer.
Se, ao
voltar do meu trabalho, cruzo com um amigo e ando um pedaço do
caminho com ele, e esse desvio imprevisto me leva diante de uma casa
lotérica, e decido comprar um bilhete de loteria, e ganho o grande
prêmio, será que devo considerar que um misterioso plano divino
guiou meu amigo até mim para me fazer comprar o bilhete certo? Ou
devo admitir, como sugere o simples bom senso, que comprei o bilhete
por acaso e que eu poderia muito bem ter comprado outro e não ganhar
nada?
O paradigma do umbigo.
Você
conhece o paradoxo do mentiroso? Trata-se de saber se o mentiroso
mente quando afirma que tudo o que ele diz é falso. Se ele mente o
tempo todo, como pode dizer a verdade afirmando que mente?
Esse
paradoxo reside num enunciado que se autodestrói. Existe uma
analogia entre o problema do mentiroso e o problema das leis do mundo
e as leis do espírito. Não podemos encontrar nenhuma solução
prática, porque não se trata de um problema prático. Ele vem da
maneira como formulamos as coisas. Resulta, de certo modo, do fato de
que somo capazes de produzir um discurso lógico e pertinente a
propósito de um mundo que, em si mesmo, não é logico nem ilógico.
Trata-se de um efeito de sentido que vem de que um discurso não pode
englobar totalmente o real. O paradoxo do mentiroso exprime o corte
entre o discurso e o real, a autonomia das palavras em relação às
coisas.
Os
sistemas míticos ou religiosos que repousam sobre uma visão
holística negam este corte. Não admitem que uma distância
intransponível separe uma representação daquilo que é
representado. Em termos imagéticos, o que diferencia um pensamento
mítico de um pensamento racional é o corte
do cordão
umbilical que liga a fala ao real. Na matriz do mito, a fala e o real
mantêm uma relação tão amalgamada quanto a do feto com a mãe. A
mensagem dos gurus de plantão convida a reconstituir um mundo sem
corte entre o discurso e o rea, no qual consciência e matéria
formam um uma mesma totalidade. Ele não pode chegar a um resultado,
tanto quanto não se pode religar o cordão umbilical, uma vez
cortado. Os humanos aprenderam a pensar por si próprios, e
conheceram o poder do pensamento racional – mesmo ao preço da
angústia e da incerteza. Não é possível retornar ao antigo mundo,
à tranquilizadora matriz mítica.
A
tentativa sempre recomeçada de reconciliar o mito e o discurso
científico esbarra nesta impossibilidade: “Acontece que não
existe correspondência entre a narrativa do Gênese e os dados da
geologia”, escreve Gould. “Mas, se houvesse, isso não
significaria muita coisa – porque apenas nos faria saber que são
impostos limites aos tipos de história que podemos contar, e não
nos ensinaria nada, nem sequer o murmúrio de uma lição, a respeito
da natureza e do sentido da vida, ou de Deus.”22
A
impostura dos gurus de plantão reside em que eles se situam ao mesmo
tempo nos dois lados da matriz mítica: criticam os limites do
pensamento analítico e lógico por meio de um discurso que, ele
próprio, é analítico e lógico. Com muita frequência, só resulta
uma verborreia fútil. Para fugir disso, David Bohm teve a ideia de
inventar uma linguagem que refletiria sua visão da “ordem
implicada”, de uma maneira fluida que não se divide em partes
separadas. Bohm chamou essa linguagem “rheomodo”, do grego rheo,
que significa “escorrer”. Em O universo espelho, John Briggs e
David Peat descreveram assim o rheomodo:
Bohm
tenta superar a fragmentação sujeito-verbo-objeto da maioria das
línguas. Tomemos um exemplo simples dessa fragmentação: um gato e
um rato passam por você, numa corrida desenfreada. Nós diríamos:
“O gato persegue o rato”. Toda uma visão do mundo se acha
envolvida nessa simples frase. Ela começa pelos substantivos “gato”
e “rato” - objetos separados do universo... O verbo “persegue”
é uma ação separada desses objetos, implicando, entre outras
coisas, que a ação se realiza pelo gato sobre o rato. Todavia, a
ação inteira é mais complexa. É uma dança de vida e de morte a
qual o gato e o rato são inelutavelmente devotados. Bohm tenta
vencer essas separações artificiais fazendo de todas as palavras de
sua linguagem variações do verbo. 23
Não
tenho certeza se o rato está de acordo. Estou pronto a apostar que
ele preferiria permanecer como um objeto separado do gato em vez de
se juntar a ele numa dança cósmica que terminará no estômago do
felino. E como se traduziria em rheomodo: “O oficial da junta
militar tortura o resistente”? Trata-se, aqui também, de uma
fluida coreografia na qual o oficial, o resistente e o instrumento de
tortura não passam de manifestações ilusórias de um ordem
implicada que nos ultrapassa?
Se forço
assim o traço é para ressaltar o perigo desses discursos sobre
consciência cósmica desligada da realidade, e em particular pelo
fato de que vivemos dentro de uma história real, que são sujeitos
reais que falam, agem e assumem responsabilidades. Dizer que o mundo
é uma totalidade da qual não podemos dissociar os objetos ou que
cada um pode compartilhar as lembranças de todos significa dizer que
tudo é possível, que tudo é verdadeiro e que tudo se equivale.
Quer queiram quer não, os gurus de plantão têm uma ação autônoma
e distinta da totalidade cósmica, mesmo que seja porque há pessoas
que os ouvem e aderem às besteiras que eles contam.
Confrontados
com a realidade concreta, os gurus de plantão escondem a cara. Ou
será que deveria escrever que eles escondem o umbigo? Numa época em
que Adão e Eva há muito abandonaram suas folhas de parreira, esse
tipo de falso puritanismo parece bem fora de moda.
Notas:
19 James
Lovelock, La Terre est un être vivant. L'hypothèse Gaïa, Paris:
Flammarion, 1987 e 1993; Les Ages de Gaïa, Paris: Odile Jacob, 1990
e 1997 [ed. bras.: As eras de Gaia, Rio de Janeiro: Campus, s. d. ].
20 Edward
O. Wilson, l'unicité du savoir. De las biologie à l'art, une même
connaissance, Paris: Robert Laffont, 2000 (título original:
Consilience, 1998; tradução de Constant Winter) [ed bras.: A
unidade do conhecimento - coniliência. Rio de Janeiro: Campus, s.
d.].
21 Trinh
Xuan Thuan, op. cit.
22
Stephen Jay Gould, Quand les poules auront des dents, op. cit. [ed.
port. citada]
23 John
Briggs & David Peat, L'Univers miroir, traduzido em francês por
Jacques Polanis, Paris: Robert Laffont, 1986
Fonte: Michel de Pracontal A impostura científica em dez lições, pp. 308-320