quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Masp,Trindade Metálica e Beethoven...


2009 agoniza. Apenas cumprindo horário na escola, por causa da reposição do recesso prorrogado (gripe suína, lembram-se?). Antes de chegar ao colégio, aproveitei a terça-feira para visitar o Masp. Últimos dias de "Rodin: Dom Ateliê ao Museu - Fotografias e Esculturas ", até 3 de janeiro, última chance.

Entretanto, há novas exposições: Abelardo da Hora na mostra "Amor e Solidariedade", montada no vão livre. Compreendendo 60 anos de carreira do artista expressionista, nascido em São Lourenço da Mata, no ano de 1924. Com fortes influências de Candido Portinari O artista pernambucano desenvolve uma obra voltada para os contrastes do desejo e da miséria. Nus femininos, sinuosos e acolhedores, materializados com grande vigor e no concreto polido e no bronze, convivem lado de um lado com representações dilacerantes da tragédia dos retirantes nordestinos Igualmente moldadas ou esculpidas com notável talento. Ecos de Lasar Segal e Victor Brecheret também são perceptíveis.



O grafite, o muralismo e a arte urbana vai aos poucos conquistando seu espaço nos museus e destruindo preconceitos. Talvez a melhor forma de arte dedicada a reflexão / expressão da descontinuidade, distorção e velocidade do cotidiano urbano da contemporaneidade. "De Dentro para Fora / De Dentro para Fora", exposta no subsolo, acolhe jovens representantes desta cultura: Titi Freak, Daniel Melim, Stephan Doitschinoff, Zezão, Carlos Dias e Ramon Martins, desse modo o trabalho destes artistas reinterpretam a publicidade, arquitetura, Ambientes da Periferia, estacionamentos, galerias, calçadas, uma tatuagem e aos sentimentos e recordações contraditórias que o caos urbano nos instiga um relembrar, criar, somatizar... Stephan Doitschinoff, Num primeiro momento é o artista que mais chamou minha atenção. Responsável pela artista encarte e capa do álbum Dante XXI, do Sepultura. Abaixo duas imagens de sua autoria. Voltarei a tratar desta mostra em outra ocasião.

A trilha sonora para este dia, composto de deslocamentos do Jardim São Paulo para a Avenida Paulista. Da Paulista para Praça do Correio até Avenida Imirim (e finalmente para casa no Jd. São Paulo) foi o trio de ferro do Heavy Metal: Black Sabbath, em doses maiores; Led Zeppelin e Deep Purple. Antes de deitar, o Presto Agitato da "Moonlight"Sonata de Beethoven. Eclética Jornada cultural ...




sábado, 14 de novembro de 2009

Ano I


Inconstante, demasiado inconstante...

"E pur si muove"

domingo, 8 de novembro de 2009

Rameau: Castor et Pollux / Marc Minkowski & Magdalena Kozená




Claude Lévi-Strauss apreciava muito Jean-Philippe Rameau (1682-1764) compositor do barroco francês. O músico foi objeto de seu crivo analítico em Olhar, escutar, ler. (São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


Escolhi a introdução da ópera Castor et Póllux (1737), com Marc Minkowisk, condução, Magdalena Kozená, mezzo-soprano e Musiciens du Louvre.


Fica como singela homenagem ao mestre desaparecido.


terça-feira, 3 de novembro de 2009

Refletindo um pouco sobre mídia e educação.


Duas entrevistas que chamaram minha atenção. A primeira, com o secretário estadual de educação de São Paulo, Paulo Renato Souza, na Veja de 28/10/2009. A segunda com o escritor Ferréz, na Caros Amigos, n.151, de Outubro passado.
Podem ser conferidas nestes links:
As duas conversas são bem distintas. Mas num ponto as linhas convergem, na crítica da educação pública.
No tocante a ideologia, o secretário da educação e a equipe da Veja são muito convergentes. Desse modo, conduzida por questões curtas e precisas, a conversa vai fluindo, discorrendo sobre o corporativismo do sindicato, demasiadamente preocupado com aumento salarial, e muito pouco ou, quase nada, com a qualidade do ensino. Paulo Renato lamenta a postura de "diretores com pouca visão moderna de gestão", trabalhando sempre na base do improviso. Certa demonização das parcerias com a iniciativa privada, repulsa à meritocracia e por aí vai até um ponto que considero crucial:

"Às universidades que pretendem formar professores, mas passam ao largo da prática da sala de aula. No lugar de ensinarem didática, as faculdades de pedagogia optam por se dedicar a questões mais teóricas. Acabam se perdendo em debates sobre o sistema capitalista cujo ideário predominante não passa de um marxismo de segunda ou terceira categoria. O que se discute hoje nessas faculdades está muito distante de qualquer ideia que seja cientificamente aceita, mesmo dentro da própria ideologia marxista. É uma situação difícil de mudar. A resistência vem de universidades como USP e Unicamp, as maiores do país.

Muitos professores propagam em sala de aula uma visão pouco objetiva e ideológica do mundo. Alguns não dominam sequer o básico das matérias e outros, ainda que saibam o necessário, ignoram as técnicas para passar o conhecimento adiante. Vê-se nas escolas, inclusive, certa apologia da ausência de métodos de ensino. Uma ideia bastante difundida no Brasil é que o professor deve ter liberdade total para construir o conhecimento junto com seus alunos. É improdutivo e irracional. Qualquer ciência pressupõe um método. No ensino superior, há também inúmeras mostras de como a ideologia pode sobrepor-se à razão."

Observações semelhantes àquelas feitas pela sua antecessora, a socióloga Maria Helena Guimarães, nesta mesma publicação. A ex-secretária havia sugerido o fechamento das faculdades de pedagogia. Evidentemente uma bravata. Ainda que seja um desejo secreto e inconfessável de muitos. Temos aqui uma questão extremamente espinhosa para professores do ensino fundamental e para os pedagogos, acadêmicos ou não. Que a rivalidade política acaba colocando para baixo do tapete.

Existe um hiato entre o curso de licenciatura e a realidade da sala de aula. Por mais que os alunos conheçam a situação institucional da escola, de forma direta ou indireta, em seus cursos, há o implacável choque com a realidade concreta e vivida, que desmancha certezas, por mais idealista que seja o educador iniciante. Falta de materiais, estruturas precárias, indisciplina e desinteresse dos alunos... Dificuldade de expor o conteúdo, em articular metodologias e dinâmicas para as aulas, ou melhor, a própria inexistência destas, alunos praticamente analfabetos, famílias com pouco hábito de leitura...
Também existe o fantasma da "doutrinação", muito alimentado por esta revista e outras mídias mais à direita. Todavia o corpo docente é muito heterogêneo em se tratando de posição partidária, religião, gostos estéticos. A relação professor-aluno é mais nuançada do que a simples imposição de uma determinada visão de mundo do educador sobre a clientela. Existe reelaboração por parte do corpo discente, novos elementos adicionados, resistências, recusas. Caso exista interesse da parte da criança e do adolescente. Mas a apatia parece ser mais predominante, com a aula girando em monólogos do professor, ou repetidas solicitações por silêncio e atenção ou, ainda, o infame/irritante "dê aula para quem está interessado em aprender" como dizem alguns alunos. Mas o esteriótipo da dita "doutrinação" não vai nos abandonar tão cedo.
Porém suas observações, em poucos parágrafos,numa franqueza brutal, sintetizam toda a complexidade de parte da história da educação brasileira nas últimas décadas. Valem a pena serem conferidas:
"Na escola eu tive bastante dificuldade, porque eu não prestava atenção na aula, mas ao mesmo tempo eu sabia a lição. Então eu tirava boas notas, prestava atenção no professor, e até hoje os professores perguntam como é que pode esse cara nunca prestou atenção, e esse cara sabia as matérias. Eu achava que 20 minutos do que o professor falava eu já entendia, o resto era discurso meio no vazio. Eu repeti a primeira série do primeiro ano no Euclides da Cunha, eu não gostava do ensino, não gostava da escola, não odiava ir para a escola, eu só ia para conversar mesmo e eu achava que não tinha nada a ver o que eu estava aprendendo. Eu não aprendi porcentagem na escola, entendeu? Não me ensinaram porcentagem e no comércio que eu abri eu precisava saber porcentagem. A escola me ensinou pouco, mas eu tive muitas pessoas boas na escola, muitos professores bons, que eram professores que não davam lição nem de matemática e nem de português, mas davam lição de vida. Essas pessoas fizeram a diferença."

"Eu acho que a escola perdeu o foco total de qualquer senso de realidade. Eu acho que a escola e a realidade não têm mais nada a ver e eu acho que uma geração inteira está errando de ir para a escola e os professores serem educados do jeito que são também. Porque os professores também estão ferrados."

"Tipo, eu não sei assim um dia eu acordei e falei agora eu gosto de literatura, sabe? Mas eu lia sempre quadrinhos e gostava de Robert E. Howard que é o autor do Conan e aí eu buscava saber sobre o cara, e a biografia dos autores sempre me interessou mais e então eu comecei a buscar saber mais sobre os caras. Eu sempre tive um ensino paralelo ao da escola, então se eu gostava de Conan eu lia Conan no serviço e ia para escola, tinha que ler Aluísio de Azevedo ou tinha que ler Carlos Drummond de Andrade lá, mas o Carlos Drummond de Andrade lá não me interessava."

Portanto, Ferréz educou-se à revelia da instituição, ainda que esta tenha lhe impingido marcas, ainda que ele as negue, ou recalque. Temos aqui com muita sinceridade, os temas da contradição entre escola e vida, a escola como forma de socialização e não de estudo, o erudito em detrimento do "popular",ou seja, a escola "fora da realidade" do educando, como é conhecido o lugar-comum de parte de pedagogia de esquerda. O autor não é hostil ao professorado, de certa forma são "vítimas do sistema", prefere aqueles que mostram uma face humana distinta da máscara professoral. Contudo esta "amigabilidade" tende a esvaziar o trabalho docente, mais cedo ou mais tarde.

Considero equivocadas estas observações, pois só colocam todo o peso, a responsabilidade do mundo sobre o dispositivo escolar, esquecendo a complexidade e especificidade da tarefa educativa e, consequentemente os seus limites. Sim, a educação tem poderes limitados, se esticarmos demais a corda, ela se rompe e não acontece educação alguma.

A educação deveria provocar um estranhamento frente a realidade imediata. Ensinar a ler e escrever sem disputas pela legitimidade de facções teóricas. Ensinar o que o aluno não vai aprender/encontrar em outros lugares. Transmitir elementos culturais relevantes, do cânone de nossa tradição científica e literária clássica, cristã, racionalista, iluminista e romântica, ainda que causem arrepios em certos setores da elite pedagógica. Mas é isto que nos ensina a pensar. Certamente existem as demandas da sobrevivência, mas a condição humana não é apenas isso.

De qualquer maneira é um material para reflexão. Apesar das divergências, simpatizo mais com o escritor do que com o tecnocrata tucano. E todo aquele que aprecia as aventuras de Conan, o cimério, ganha pontos comigo.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Johannes Brahms - Violin Concerto . Paganini Variations





(1-3)Münchner Symphoniker, Ltg./Cond.: Helmut Bucher


Iwan Czerkov - Violin / Violine


(4) Vladimir Krpan - Piano / Klavier




terça-feira, 27 de outubro de 2009

René Girard e o Mecanismo Mimético.


Eis aqui alguns trechos de uma longa e esclarecedora entrevista com o Antropólogo francês René Girard. Ela constitui o livro Um Longo Argumento Do Principio Ao Fim. Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello, tradução: Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro:Topbooks, 2000. João Cezar e Pierpaolo assistiram um seminário ministrado por Girard na Universidade de Stanford em 1995. Depois, a dupla propôs ao pensador francês participar de uma série de conversas gravadas, entre os anos de 1995 e 1999, na Universidade de Stanford e depois na residência do antropólogo. Trata-se de uma excelente e didática introdução aos conceitos principais de seu pensamento. Apreciem minha seleção, um tanto arbitrária, ilustrada pelas pinturas de Caravaggio e a gravura "Sending Out the Scapegoat" de William James Webb.


"A expressão 'mecanismo mimético' é empregada num sentido amplo, por ser usada para designar o processo como um todo, o que inclui o desejo mimético e a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua resolução pelo bode expiatório. A expressão 'desejo mimético' refere-se apenas ao desejo que é sugerido por um modelo. Para mim, o desejo mimético é o desejo 'real'. Deveríamos distinguir desejos de apetites. Apetites envolvem coisas como comida e sexo, que não estão necessariamente ligadas a desejos, pois têm um fundamento biológico. Todo apetite, no entanto, pode ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que exista um modelo – a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do que seja o desejo mimético."

"O primeiro a definir maravilhosamente bem esse tipo de rivalidade foi Santo Agostinho nas Confissões. A cena por ele descrita é a de duas crianças amamentadas pela mesma ama. As duas disputam o leite dela, apesar de haver mais do que o suficiente para ambas. Cada uma quer todo o leite para si, no intuito de impedir a outra de obtê-lo."

"O que vem a ser o desejo? Eis a verdadeira questão. O mundo moderno é ultra-individualista, quer que o desejo seja estritamente individualizado: ‘o meu desejo é pessoal, único; não há outro como o meu’. Noutras palavras, meu apego ao objeto do desejo é de certo modo predeterminado. E se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais diferença entre instinto e desejo. Ou seja, se ‘meu’ desejo tem sua origem na minha individualidade, então, ele é fixo – característica dos instintos, que não são nada individuais! A mobilidade do desejo, em contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, decorre da imitação. Aí reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade, com seus pares. Constato isso sempre que vejo meus netos disputarem o mesmo brinquedo, apesar de haver outros idênticos à disposição deles."


"Atribuo uma imensa importância ao ultimo mandamento do ‘Decálogo’: ‘não cobiçarás a casa do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem nada que lhe pertençe’ (Ex 20,17). Vemos aqui, ao que tudo indica, o nascimento da idéia de desejo mimético, pois a lei busca enumerar os objetos que não devemos cobiçar. Todavia, antes que conclua essa lista de objetos, é como se constatasse que não faz sentido lista-los, por serem demasiado numerosos: os limites fixados são o próximo e ‘tudo o que pertence ao próximo’. Essa é a proibição final do décimo mandamento. Nunca tinha reparado nisso antes de escrever Je vois Satan tomber commel’éclair. Esse mandamento é uma proibição do desejo mimético. Mas o que precede o décimo mandamento? ‘Não matarás. Não cometerás adultério. Não furtarás. Não levantarás falso testemunho contra teu próximo.’ (Ex 20, 13-16). Trata-se, portanto, de quatro crimes contra o próximo: mata-lo, roubar-lhe a mulher, as propriedades, difama-lo. Qual é a razão desses atos? O quinto mandamento dessa seqüência e último do decálogo revela a causa: desejo mimético. As palavras finais: ‘tudo o que pertence ao próximo’ atribuem a este um lugar privilegiado: ele vem primeiro; constitui, portanto o modelo. E aí está noção de desejo mimético! Quando os Evangelhos falam em termos de imitação e não proibição, estão seguindo a orientação contida no décimo mandamento. A maioria das pessoas erroneamente supõe que, nos Evangelhos , a imitação é uma só: imitação de Jesus, logo imitação que priva o indivíduo de seu próprio desejo não imitativo. Mas não é verdade! Só priva do skándalon, implicado na rivalidade mimética. Significa, pois, a escolha de um modelo que resguarda os indivíduos da rivalidade mimética, que a inibe, ao invés de encorajá-la. O modelo que estimula a rivalidade mimética não é pior do que nós, talvez seja até muito melhor, mas ele deseja do mesmo modo que desejamos, egoística, avidamente. E imitamos o egoísmo dele, que é um mau modelo para nós, e vice-versa."

"Se o desejo é mimético, o sujeito deseja o mesmo objeto que seu modelo. Se o sujeito deseja o objeto possuído ou desejado pelo modelo, só há duas possibilidades: ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou pertence a outro mundo. Uma vez que estejamos num outro mundo, não podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado, só podemos ter com esse modelo uma relação que, em Mesonge romantique, chamei de mediação externa. Com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação positiva. Se nos achamos no mesmo mundo que o modelo, então o objeto que ele deseja está ao nosso alcance e a rivalidade irrompe. Chamei a este tipo de rivalidade mediação interna. É uma rivalidade que se reforça por si mesma. Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica: pois, à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo; imitador de seu imitador."


"Em tal situação, caminha-se sempre para uma simetria maior e, consequentemente, para mais conflito, já que a simetria só pode produzir duplos. Os duplos surgem com o desaparecimento do objeto, e, no calor da rivalidade, os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados, idênticos. A crise mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais. Essa indiferenciação se torna possível pelo desaparecimento do objeto."

"Esse, aliás, é o sentido da palavra skándalon. Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão disputando um mesmo objeto, então, deve tratar-se de alguma coisa pelo qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade mimética somente cresce. Enquanto isto acontece, o objeto também tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para que a mimésis se torne puramente antagonística, o objeto precisa desaparecer. Quando isso ocorre, temos a proliferação dos duplos e a emergência da crise mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimésis se converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne cumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada comunidade, até que o processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o ‘bode expiatório’. Numa descrição esquemática, eis como funciona o mecanismo mimético. O mecanismo expiatório encerra a crise, já que a culpa é transferida unanimemente para o bode expiatório. A importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da violência contra a vítima."

"Vale recordar que, na Bíblia, vemos os primeiros exemplos de resistência ao contágio mimético, resistência essa oferecida por uma minoria que expõe e denuncia o mecanismo do bode expiatório. É também o caso dos discípulos de Jesus; o que não deixa de surpreender, pois, a princípio, eles aderem ao arrebatamento mimético. A adesão mais notável é a de Pedro, cuja negação manifesta sua anuência ao mecanismo do bode expiatório e tem grande importância teórica."




"Cabe ainda assinalar que o mecanismo mimético é particularmente óbvio no rito. No entanto, os antropólogos não atinam por que razão o rito só começaria com uma desordem, com uma deliberada crise cultural. Isso acontece porque a comunidade reencena a crise mimética que leva ao mecanismo do bode expiatório, na esperança de assim reativar seu poder reconciliador."

"Permitam-me destacar mais uma vez o que é o mecanismo mimético. Geralmente utilizo a expressão ‘mecanismo mimético’ para referir-me ao mecanismo do bode expiatório. Noutras palavras, quando tende a tornar-se oportunista, o desejo mimético orienta-se paradoxalmente por modelos substitutos, antagonistas substitutos. O paradoxo do desejo mimético consiste no fato de parecer solidamente fixado num objeto específico, quando, na verdade, é inteiramente oportunista. A era dos escândalos na qual vivemos corresponde a um deslocamento do desejo. Um grande skándalon coletivo equivale ao pequeno skándalon entre dois vizinhos multiplicado muitas vezes. Quando o skándalon em pequena escala se torna oportunista, tende a unir-se ao maior skándalon ali em curso, tranqüilizando-se pelo fato de sua indignação ser partilhada por muitos. Nesse momento, a mimésis se torna ‘lateral’ em vez de voltar-se apenas para o vizinho, e isso é sinal de crise, de contágio crescente. O skándalon maior devora os menores, até restar um único escândalo, uma única vítima – assim funciona o mecanismo do bode expiatório. Decerto existe uma formulação melhor para isso, embora ainda não a tenha encontrado! Há um magnífico exemplo desse fenômeno em Julio César, de Shakespeare: o recrutamento mimético dos conspiradores contra César. Na peça, Ligário, um dos conspiradores está muito doente, mas a idéia de matar César o restabelece, e seu ressentimento difuso se concentra. Ele esquece tudo, pois César passa a ser o alvo fixo de seu ódio. A partir daquele momento, pode odiar a César: que progresso! Infelizmente, nove entre dez políticos agem assim. O chamado espírito partidário não é senão isso. Escolha todos os demais como bode expiatório: que comodidade, que alívio! Nietzsche trata disso, mas não se pode dizer que tenha concebido uma teoria do bode expiatório; antes a evita, por causa de suas conotações religiosas, que se recusa a levar em consideração."
"Pode-se dizer que o desejo mimético esteve sempre presente, não se limitando apenas à era moderna?
Sim, e é fundamentalmente bom, por ser indispensável à humanidade do homem, por assim dizer."
"Sempre que um apetite se transforma em desejo, entre em cena um modelo que o afeta?
Não se trata de uma verdade absoluta. Por exemplo, segundo os marxistas, certos sentimentos surgem numa classe social e são por isso especificamente sociais. Alguns marxistas afirmam que o desejo mimético é uma coisa aristocrática, uma forma de luxo. Mas é claro! Na Idade Média, só a nobreza podia dar-se a esse luxo. O sistema da cavalaria constitui um modo de glorificar o desejo mimético. Cervantes compreendeu isso muito bem. Num mundo de terrível carência, o homem comum sem dúvida só tinha apetites. Na Idade Média, é o que atestam os Fabliaux, os quais trata sobretudo de apetites físicos. Por isso, não digo que toda violência venha do desejo mimético: no plano dos apetites, as pessoas lutam pelo pedaço de pão que de fato lhes falta. Portanto, os marxistas estão parcialmente certos. Se a teoria mimética negasse a objetividade de certas lutas, seria falsa, mascararia a existência e suas necessidades básicas. Quanto mais cruel e selvagem for uma sociedade, mais violência ocorrerá nela, em nome da satisfação de tudo o que é pura necessidade. Até mesmo no nível da necessidade real, em que a rivalidade começa por causa de um objeto, esta é impregnada pela mimésis. Há sempre determinada mediação social envolvida no processo. Não se deve excluir a possibilidade de uma violência inteiramente desvinculada de qualquer desejo mimético. Mas a maioria de nós não vive num mundo de terrivel carência."

"Quando há uma única vítima e ela é destruída, não se tem a vingança como reação, porque todos hostilizavam e culpavam essa única vítima. E, assim, alcança-se ao menos um momento de paz e silencio."

"Portanto o mecanismo do bode expiatório precede qualquer espécie de ordem cultural. É precisamente o que permite o desenvolvimento de uma ordem cultural."

"Exato! A pergunta é: de que modo? E a resposta está no rito: graças a ele, uma ordem cultural pode desenvolver-se. O rito equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação. O rito vira instituição reguladora das crises."

"Há uma experiência de racionalidade nos ritos. Os membros de uma dada comunidade interpretam a sua própria experiência passada em matéria de conflito e reconciliação e acham-se numa posição tal, que não podem interpretá-la de outra maneira. Isto é, uma vez que não entendem o mecanismo mimético, terminam vendo o restabelecimento da paz como decorrência de terem vitimado o indivíduo que a destruiu. Assim, o bode expiatório, que acabaram de matar, é considerado responsável pela paz restaurada e torna-se sagrado. Essa é a idéia básica de La violence et le sacré; noutras palavras, a hipótese de assassinato fundador como origem do processo de hominização, isto é, o próprio início do que viria a ser a cultura humana."


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Prazeres Sonoros do Centro de Música Barroca de Versailles.




Encontrei este CD num sebo no centro de São Paulo. Vinha encartado numa revista francesa especializada em música erudita, chamada Classica (edição de novembro de 2000, volume 27).
É uma pequena amostra de música barroca.
1. Henry Desmarest (1661-1741): Messe à deux choeurs: Kyrie 4:32
2. Henry Desmarest (1661-1741): Grand Motets Lorrains: Usquequo Domine 6:48
3. Estiene Moulinié (v. 1600-v.1669): L´Humaine Comédie: Consert de différents oyseaux 9:34
4. François Couperin (1668-1773): Pièces de clavecin: Tierce entaille. 2:57
5. Giovanni Battista Pergolesi (1701-1736): Stabat Mater: Stabat Mater 3:45
6. Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736): Stabat Mater: Quando Corpus Morietur - Amen 3:32
Na capa, uma pintura de Jean-Marc Nattier (1685-1766) - Terpsichore, Musa da Música. Pintura à óleo, California Palace of the Legion of Honor.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Deixa ela entrar (Låt den räte komma in/Let the Right One In), 2008 Direção: Tomas Alfredson









Assisti ontem o filme sueco "Deixa Ela Entrar". Magnífico em vários aspectos. Meu exigente cineasta interior/imaginário tem poucos reparos a fazer. O cinema do país de Victor Sjostrom (1879-1960) e Ingmar Bergman (1918-2007) permanece vigoroso, apresentando material de excelente qualidade.

Deixando de lado as polêmicas a respeito de seu gênero, "terror", "suspense com drama", ou ainda "drama com elementos de terror". Como se este fosse algo indigno para falar de assuntos mais densos. Temos aqui um "filme de formação" sobre as dores de crescimento da adolescência, cujo eixo é a questão da amizade e da vingança. Amizade que enfrenta a diferença e o medo entre as pessoas. O fantástico serve aqui como veículo de exposição das desventuras da condição humana.




Oskar é um garoto de 12 anos e vive com a mãe num conjunto de apartamentos, na periferia de Estocolmo no começo da década de 1980. Os pais são separados. A Suécia está sob um governo de caráter socialista.
A vida familiar do menino é um tanto "largada". A mãe oscila entre certa rigidez e indiferença no trato com o garoto, seguramente relacionada a sua intensa jornada de trabalho. De qualquer forma não está isenta de afeto. O pai é mais carinhoso, ainda que um tanto distante. Vive numa fazenda, onde Oskar vai visitá-lo regularmente. Mas estas visitas também acabam ficando enfadonhas.

Introvertido, leitor de livros policiais e de terror (subentendemos assim, pois Oskar afirma que "lê apenas livros", também gosta de colecionar recortes sobre crimes horrendos) o menino vive sofrendo o que hoje conhecermos por "bullying" por parte de colegas valentões. Nunca revida as agressões, sofrendo calado. Todavia, em seu íntimo maquina vinganças imaginárias, brincando com seu canivete...

A vizinhança anda temerosa com uma série de crimes, onde pessoas são amarradas e tem seu sangue drenado.



Certa noite, brincando solitário no pátio do apartamento, Oskar conhece Eli, garota da mesma idade, que havia se mudado há pouco com Hakan, homem que aparenta ser seu pai, num apartamento ao lado... Ele estranha seu cheiro e o fato dela não sentir frio. Este primeiro contato termina de forma meio rude. Noutra noite, as arestas estão mais aparadas, e Oskar empresta seu cubo mágico e, se surpreende no dia seguinte, por ela tê-lo remontado corretamente. Dessa forma a amizade vai se solidificando. Os diálogos são ternos, simples e bem escritos, apropriados a crianças de 12 anos de idade, em nada soando forçado ou artificial. Oskar passa um tempo extra na escola estudando código morse e entrega para ela uma folha com algumas mensagens. E depois "conversam" entre si, batendo levemente na parede.
Certa hora Eli percebe que Oskar está com o rosto ferido. Ele conta a verdade (algo que sempre esconde da mãe, as agressões dos outros meninos). A nova amiga recomenda, com toda convicção, que ele "revide, com mais força ainda". Dito e feito. Numa excursão da escola, perto de um lago Oskar golpeia seu rival com um pedaço de madeira, sangrando seu ouvido. Por uns tempos não é incomodado.




Entretanto, Oskar acaba descobrindo a natureza inumana de Eli.
Seguindo um costume arcaico para selar a amizade, Oskar, num quarto escuro, fere a mão com o canivete e convida Eli a misturar o seu sangue com o dele. O resultado é desastroso: Eli sai correndo para não concretizar sua pulsão vampírica.
Após este arrebatamento, Oskar vai se recompondo seus sentimentos e a acolhe novamente como amiga. Embora não aceite de todo a necessidade que ela tem de tirar vidas. Implacável, ela pede que ele se coloque no lugar dela por algum tempo. E ele tenta fazer...
Da genealogia de Eli, praticamente nada sabemos. Apenas que ela guarda pequeno tesouro de jóias e objetos antigos. O dinheiro parece ser um mal necessário. Seu modus operandi é sutil. Nunca mostrado explicitamente. Apenas seu rosto belo e impiedoso coberto de sangue


O roteiro não glamouriza, nem deprecia o vampirismo. Apenas atesta sua realidade, desvelando a mecânica vampírica, modo com a qual Eli aprende a sobreviver por séculos e séculos. De certa maneira, os mortos-vivos acabam involuntariamente sendo os "mortais/normais/adultos", pessoas cujas falhas e omissões as fazem olhar para dentro de si, mas sempre de forma hesitante, sem uma atitude mais decisiva. Como se os ataques de Eli adiantassem, como se fossem um golpe de misericórdia, um processo de apodrecimento extremamente lento. Novamente, o fantástico surge como mediador, oferecendo o processo da miséria humana, a incomunicabilidade entre as pessoas, a necessidade de seguirmos em frente, apesar de tudo...

A narrativa elíptica do filme é lenta e segura, colocando os elementos aos poucos, sem sobrecarregar o espectador de informações desnecessárias. Não há necessidade de caninos escancarados. Logo sabemos da sina de Hakan: o responsável pelos assassinatos, servo ( e antigo amante ?), depois de uma discussão com Eli. Os poucos (e eficientes) efeitos digitais são acionados em momentos estratégicos. Assim como sequências sangrentas, também dentro do contexto.
Austeridade escandinava emoldurada por uma fotografia gélida, embaçada, que destaca o inverno agreste, a solidão do bosque, dos apartamentos anônimos, o hospital asséptico, a piscina do desfecho final...

O roteiro, sem nenhum lugar-comum, é de John Ajvide Lindqvist, que adaptou seu próprio livro que, segundo alguns, seria mais sombrio que a versão filmada, que o talentoso diretor Tomas Alfredson transformou numa experiência sensível e assustadora ao mesmo tempo. Os protagonistas mirins, Lina Leandersson e Kåre Hedebrant estão soberbos, em especial a menina, centro do filme.
Hollywood já comprou os direitos autorais. Duvido que irá atingir a excelência cinematográfica do original. Resta torcer para que o estrago não seja grande. Talvez isto anime alguma editora brasileira a traduzir a obra.




segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Norbert Elias


"O sentido das palavras e o da vida de uma pessoa têm em comum o fato de que o sentido associado a elas por esta pessoa não pode ser separado do associado a elas por outras. A tentativa de descobrir na vida alguém um sentido independente do que essa vida significa para as outras pessoas é inútil. Na práxis da vida social a conexão entre os sentimentos de uma pessoa e a consciência de que eles são significativos para outros seres humanos, e de que os outros são significativos para esta vida, é fácil de descobrir. Nesse plano, normalmente compreendemos sem dificuldade que expressões como 'significativo' e 'insignificante', referidas a uma vida humana, estão intimamente ligadas ao que significa para os outros o que essa pessoa é ou faz. Mas, nas reflexões que a pessoa faz sobre si mesma, essa compreensão desaparece com facilidade. Aí o sentimento amplamente difundido nas sociedades mais desenvolvidas com seus membros altamente individualizados - de que cada um existe apenas para si mesmo, independente de outros seres humanos e de todo o mundo 'externo' - em geral acaba prevalecendo, e com ele a idéia de que uma pessoa deve ter um sentido exclusivamente seu. O modo tradicional de filosofar que vem junto com esse modo de pensar, muitas vezes obstrui a inclusão daquilo que é imediatamente evidente na prática - a participação da pessoa num mundo de outras pessoas e 'objetos' em reflexões de nível mais alto.

Todo ser humano vive de plantas e animais 'externos', respira ar 'externo' e tem olhos para luzes e cores 'externas'. Nasce de pais 'externos' e ama ou odeia, faz amigos ou inimigos de pessoas 'externas'. No nível da práxis social as pessoas sabem disso. Numa reflexão mais distanciada essa experiência é muitas vezes recalcada. Membros de sociedades complexas então têm frequentemente a experiência de si mesmos como seres cujo 'self íntimo' é totalmente separado do 'mundo externo'. Uma poderosa tradição filosófica parece ter legitimado essa dicotomia ilusória. Discussões sobre o sentido foram profundamente afetadas por isso. O 'sentido' é em geral tratado como mensageiro do 'mundo íntimo' de um indivíduo enclausurado.

O resultado, a distorcida auto-imagem de uma pessoa como ser totalmente autônomo, pode refletir sentimentos muito reais de solidão e isolamento emocional. Tendências desse tipo são bastante características da estrutura de personalidade específica das pessoas de nossa época em sociedades altamente desenvolvidas e do tipo particular de individualização que nelas prevalece. O permanente autocontrole, nesse caso está muitas vezes tão firmemente embutido nas pessoas que crescem nessas sociedades que é experimentado como uma muralha realmente existente, que bloqueia o afeto e outros impulsos espontâneos na direção de outras pessoas e coisas, afastando-as como consequência."

ELIAS, Norbert - A Solidão dos Moribundos, seguido de "Envelhecer e Morrer". Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 pp. 65-67

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Medieval and Renaissance Minstrels, Songs & Dances by The Musica Antiqua



Medieval and Renaissance: Minstrels, Songs & Dances foi o primeiro cd de música medieval e renascentista que adquiri. Trata-se de um trabalho do grupo norte-americano Musica Antiqua. Coletânea lançada no Brasil pela Distribuidora Eldorado. O original foi lançado em 19 de agosto de 1996 pela Columbia / Legacy. O encarte se limita a um breve texto informativo em inglês. É uma edição modesta, se comparada a de selos especializados europeus e alguns raros trabalhos nacionais, como o Annua Gaudia - A música do caminho de Santiago do grupo de música medieval Longa Florata. No entanto, o seu conteúdo é que vale, dada a raridade de edições brasileiras. As músicas abrangem o período entre os séculos XIII e XVII, formando uma pequena história da música medieval até os primeiros anos do barroco. Está dividido em nove faixas temáticas, sendo que cada item é uma seleção de três a cinco músicas:
1. Renaissance Song & Dance
2. Dance Suite - Eramus Widmann – Collection of 1613
3. Three English Songs for Voice & Instruments
4. Instrumental Music of the Early Baroque
5. Festive Sounds
6. Trouvere Tunes
7. The Cabinet Organ
8. Lauda and Motet
9. Medieval Dances

Com esta postagem passo a disponibilizar minha modesta coleção de música antiga para download. Resultado de minhas peregrinações por sebos aqui em São Paulo. São cds, em sua maioria, difíceis de encontrar, sendo alguns caríssimos. Gravei meus originais, compactei os arquivos e enviei para o 4shared ou para o Easy Share. Abaixo o link do The Musica Antiqua. Espero que apreciem.

PS 25/03/2012: novo link  Download 4shared

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Basil Poledouris:The Atlantean Sword

Basil Poledouris (1945-2006) compôs, para o filme Conan, o Bárbaro (1982), uma das melhores trilhas sonoras da década de 80 do século passado. Confira a peça The Atlantean Sword.


terça-feira, 25 de agosto de 2009

Agalloch - The Shadow Of Our Pale Companion


Agalloch é uma banda norte-americana formada em 1995 em Portland, Oregon. Liderada pelo vocalista e guitarrista John Haughm. Seu estilo é uma fusão de vários subgêneros do Metal. Folk, Doom, Progressive e Black Metal. Som híbrido que remete também soberana influência de Quorton / Bathory. Ecos de Pink Floyd, Opeth, Katatonia e Primordial são reconhecíveis.
The Mantle, lançado em 2002, é um dos seus álbuns mais elogiados. São faixas longas, de andamento cadenciado e introspectivo, hipnótico. A voz de John Haugm, alternando gélidos vocais rasgados (quase sussurrados) e linhas mais limpas (lembrando um pouco Johann Edlund, do Tiamat), se amolda perfeitamente com o andamento instrumental construído sobre guitarras acústicas, violões e tambores. Sua temática se desdobra em certo neopaganismo, misticismo e solidão insatisfeita com a condição (pós)moderna.
O nome, criação de John Haugm and Shane Breyer, foi inspirado numa madeira preciosa e odorífera, da árvore Aquilaria agallocha.




O que nos vem à mente ao escutarmos as canções do The Mantle são imagens de uma floresta virgem, invernal, na aurora dos tempos, onde a presença humana é muito, mas muito recente e discreta, quase incoveniente. Onde as águas gélidas e o vento agreste tentam nos purificar, ao menos momentaneamente, do manto da deterioração e da angústia, que nos encobre. A canção "In The Shadow Of Our Pale Companion", é um bom exemplo disto, peça que fica melhor a cada vez que você a ouve, elaborada sob a forma de questionamentos. Tristeza pensante que encharca nossa mente de reflexões. Trilha sonora ideal para quando o desejo imperioso de evasão deste mundo, fugir de tudo que é conhecido, de abstrair-se em mundos imaginários. Senti-los como se fossem nossos.

Aqui vai a tradução da 2a. faixa: In The Shadow Of Our Pale Companion, com seus quinze minutos de duração, seguida de um clip em duas partes, que baixei do youtube.

In The Shadow Of Our Pale Companion:

Através de vastos vales vaguei
Até os mais altos picos
Em caminhos através de selvagens e esquecidas paisagens
Na busca de Deus, a respeito do homem
Até o perdido e esquecido infinito...
Nisto é onde escolhi trilhar.
Cair...então preferimos cair dentro do nada?
A falta de tudo que eu sinto nos braços da pálida,
nas sombras da implacável companhia que caminha conosco.
Aqui está a paisagem
Aqui está o sol
Aqui no equilíbrio da terra,
Onde está Deus?
Ele caiu e nos abandonou?
Enquanto eu me aproximo pelas sombras das mãos da morte
O fogo em meu coração é forjado através da terra
Aqui na beira deste mundo
Aqui eu fito o panteão de carvalho, da cidadela de pedra
E neste grande panorama diante de mim é que você chama
Deus...Então Deus não está morto
Eu caminhei abaixo em direção a um rio e sentei na reflexão do que deveria ser feito
Uma oferenda de fluxo avermelhado dentro da água abaixo
Uma ferida do espírito o qual flutuou e desapareceu...
como toda a esperança que eu já tive......
como todo sonho que eu já conheci...
Foram lavados na onda de uma espera, de uma espera por um mundo melhor
Da minha vontade, da minha garganta, para o rio, e para dentro do mar
...lavados;
...lavados;
Aqui está a paisagem
Aqui está o sol
Aqui na beira da terra,
Onde está o Deus?
Ele caiu em ruína?
Enquanto eu me aproximo pelas sombras das mãos da morte
Meu orgulho pagão é ferido através da terra.


segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Agni Parthene


O hino Agni Parthene foi composto por São Nectários de Egina (1846-1920), bispo ortodoxo, a partir da Theotokarion (Livro dos Hinos à Mãe de Deus).


1.
Ó Virgem Pura e Rainha, Imaculada, Theotokos!Ave, Esposa Inesposada!

Mãe Virgem e Rainha,Manto Orvalhado cobre-nos!Ave, Esposa Inesposada!

Ó Altíssima, mais que os céus, ó Luminosa, mais que o sol!Ave, Esposa Inesposada!

Ó deleite dos santos virginais, maior que os celestiais!Ave, Esposa Inesposada!

Ó luz dos céus mais brilhante, mais pura e radiante!Ave, Esposa Inesposada!

Ó mais Santa e angelical, ó Santíssimo altar celestial!Ave, Esposa Inesposada!


2
Maria Sempre Virgem, Senhora da Criação!Ave, Esposa Inesposada!

Ó Imaculada Esposa Virgem, ó Puríssima Nossa Senhora!Ave, Esposa Inesposada!

Maria, Esposa e Rainha, fonte da nossa alegria!Ave, Esposa Inesposada!

Venerável Virgem Donzela, Santíssima Mãe e Rainha!Ave, Esposa Inesposada!

Mais venerável que os Querubins, mais gloriosa que os Sereafins!Ave, Esposa Inesposada!

És mais alta em plena glória, que toda a hoste incorpórea!Ave, Esposa Inesposada!


3.
Ave hino dos arcanjos, Ave música dos anjos!Ave, Esposa Inesposada!

Ave, canto dos Querubins,Ave canto dos Serafins!Ave, Esposa Inesposada!

Ave, paz e alegria, alegrai-vos, Ave, porto da salvação!Ave, Esposa Inesposada!

Do Verbo santo, quarto nupcial; Flor, fragrância da Incorrupção!Ave, Esposa Inesposada!

Ave, deleite do Paraíso, Ave, Vida Imortal!Ave, Esposa Inesposada!

Ave, Árvore da Vida, e Fonte da Imortalidade!Ave, Esposa Inesposada!


4.
Imploro-te, ó Rainha, eu te suplico!Ave, Esposa Inesposada!

Peço-te ó Rainha da Criação, imploro tua benção!Ave, Esposa Inesposada!

Ó Virgem Pura Venerável, ó Santíssima SenhoraAve, Esposa Inesposada!

Com fervor eu te suplico, ó Templo Sagrado!Ave, Esposa Inesposada!

Percebe-me, ajudaime, livra-me do inimigo!Ave, Esposa Inesposada!

Intercede por mim para que eu tenha a Vida Eterna!Ave, Esposa Inesposada!


Tradução em português por Fábio Lins





Algumas Orações dos Primeiros Séculos do Cristianismo.


Orar é extremamemte difícil. Esta prática implica num desconectar-se, por certos instantes, do movimento contínuo de sons e imagens, falas e pensamentos. Um silenciar-se temporário. O silêncio é desconfortável. Deixa-nos desamparados, frente a tudo aquilo que deixamos para mais tarde. Algo como respirar no ar rarefeito do topo de uma montanha. Uma mão colossal apertando o tórax. As camadas e mais camadas de dados (sons e imagens, falas e pensamentos) estão temporariamente inacessíveis. Agora estamos frente ao negativo de nossa condição. Sotão empoeirado e anárquico de afetos e desafetos, acordos e desacordos, dívidas simbólicas e materiais que vão se acumulando, com juros difíceis de sanar. Entretanto, é um silêncio produtivo, pois "é conduzir todos os nossos pensamentos fora de seu isolamento medroso e para dentro de uma conversa sem medo com Deus" [Henri Nouwen]. Algo que não fazemos por vergonha, indecisão e/ou medo (arrogância autosuficiente, temor de demonstrar fragilidade). Assim a oração é um canal para a nossa dor, creditanto à escuta do destinatário atenção e paciência infinita. E uma possibilidade de paz e resolução.
Selecionei algumas orações escritas/ou atribuídas a alguns Padres da Igreja. Documentam a constituição da doutrina cristã nos primeiros séculos. Algumas guardam forte influência da cultura helênica, certo platonismo hostil à corporalidade. São textos intensos, gerados na luta diária e na angústia da perseguição religiosa. Belas metáforas da luz, da tempestade, da maternidade, ambivalência de sentimentos e redenção.


Origenes († 253)
Fidelidade nas provações.
Roguemos a Deus, com todo o coração,que possamos lutar pela verdade,
com esforço de alma e corpo, até o fim.
Se lhe aprouver provar a nossa fé (porque nossa fé é provada nos perigos
e perseguições, como o ouro no cadinho),
inclusive pela perseguição, que ele nos encontre prontos,
para que nossa morada não seja derrubada no inverno,
ou nossa casa varrida pelatempestade, como se fora construída na areia.
E quando soprarem os ventos do demônio, isto é,
do pior dos espíritos,que nossas obras permaneçam,
já que até agora se mantiveram – supondo que não estejam secretamente minadas.
Nesse entretempo, manifestamos a caridade que temos para com Deus, no Cristo Jesus,
a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos e séculos! Amém.



Gregório Nazianzeno († 390)

Oração a Cristo na doença.

Fortifica-me ó Cristo. Teu servo
foi aniquilado
Cala-se a minha voz que te cantava.
Como o consentes?
Conforta-me, e não abandones teu sacerdote.

Quero voltar de novo à saúde,
cantar-te e purificar teu povo.
Rogo-te, ó minha força,
não me abandones.
Se, na tempestade, cheguei a trair-te,
quero voltar para ti.

O desejo de Deus.

Ó mãe, por que me fizeste nascer?
Fizeste-me nascer para a desgraça.
Por que me entregaste a esta vida
semeada de espinhos?
Se viveste tu, sem preocupação
como um ser que não é de carne,
tudo bem... Mas, se conheceste a amargura,
fizeste-me nascer sem amor.
Outros na vida traçam seus caminhos;
lavram a terra ou atravessam o oceano,
caçam, empunham lanças,
aprendem a cantar ou a vencer.

Meu destino, ó Deus, é para mim
sofrimento mais sofrimento;
Este mal me corrói e estou cansado.
Devora-me cruel, devora-me. Até quando?
Logo, oh alegria deixar-te-ei,
a ti e à minha tristeza sem limite

Ó mãe, fizeste-me nascer?
Eu não posso apreender a Deus,
nem envolvê-lo como o desejo.

Um instante, deslumbrou-me os olhos do espírito
o celeste esplendor do brilho daTríade
mas ei-lo que já quase desapareceu
– eu o lamento –
e passou como um relâmpago.
Queria saciar-me com sua luz,
e ela já se dissipou.

Mas, se lá no alto eu puder abraçá-la,
Tríade amada,
não mais acusarei as entranhas de minha mãe.
Com alegria cantarei meu nascimento.
Salva-me, Verbo de Deus, salva-me,
arranca-me do pó sombrio
e leva-me até a outra margem:
lá o espírito puro dança em volta
do teu esplendor,
e as nuvens não mais se vestem de sombra.


Oração para ser livre do demônio.

Liberta-me, liberta-me, ó Deus imortal,
da mão estrangeira.
Que eu não seja provado por obras más,
e que o faraó não me atormente.

Que eu não caia nas redes
do teu adversário, ó Cristo;
que ele não me arraste até a sombria Babilônia,
todo coberto de feridas.
Deixa-me permanecer em teus átrios
e, em pé, cantar aí teus louvores.
Que o fogo de Sodoma
não caia como chuva na minha cabeça.
Abriga-me na tua mão poderosa, afasta de mim todas as desgraças.




Sinésio de Cirene († 414)

Hino a Cristo

Cantemos o filho da esposa
que permaneceu sem mancha
e não conheceu desponsórios carnais.
Os conselhos inefáveis do Pai
decretaram o nascimento de Cristo

o seio augusto de uma virgem
deu-lhe sua veste de carne
Ele veio, no meio dos homens,
trazer a fonte da luz.

Teu nascimento inefável
precedeu a origem dos séculos.
Tu és a fonte da luz,
o raio que brilha com o Pai
Dissipas a opacidade da matéria
e iluminas a alma dos santos.

Fostes tu que criaste o mundo,
as órbitas e os astros,
Sustentas o centro da terra.
Salvas todos os homens.

Para mim o sol começa o seu curso
e ilumina todos os nossos dias,
para ti o crescente da lua
dissipa as trevas da noite.

Para ti germinam as sementes
e pastam os rebanhos.
De tua fonte inesgotável
jorra o esplendor da vida,
que ao universo dá a sua fecundidade.
E teu seio faz nascer
a luz, a inteligência e a alma.

Tem compaixão da tua filha,
prisioneira de membros mortais,
nos estreitos limites da matéria.
Protege dos golpes do mal
a saúde dos nossos membros vigorosos.

Dá às nossas palavras a eloqüência
às nossas obras um renome
semelhante ao antigo esplendor
de Esparta e de Cirene.

Que minha alma goze dias ditosos,
sem conhecer o sofrimento,
os olhos fixos sem cessar
na tua inefável claridade.

Que liberto enfim da matéria,
sem nunca desviar o olhar,
fugindo das angústias deste mundo,
eu venha mergulhar na fonte da minha alma.
Digna-te conceder esta vida sem mancha
ao trovador que te canta.

Ao celebrar assim a tua glória,
eu canto também o teu Pai
e sua majestade suprema
eu canto, sobre o mesmo trono, o Espírito,
entre o Princípio e o Engendrado.
Ao celebrar o poder do pai,
meus cantos despertam em mim
os sentimentos mais profundos da minha alma.

Salve, ó fonte do Filho!
Salve, ó imagem do Pai!
Salve, ó morada do Filho!
Salve, ó selo do Pai!
Salve, ó poder do Filho!
Salve, ó beleza do Pai!
Salve, ó Espírito puríssimo!
Laço do Pai e do Filho!

Ó Cristo, faze descer sobre mim
este Espírito com o Pai.
Que ele seja para minha alma como o orvalho
e a cumule com teus presentes de rei.


Paulino de Nola († 431)

Elogio da cruz

Ó cruz, indizível amor de Deus
e claridade do céu!
Cruz salvação eterna. Cruz,
terror dos maus, sustento dos justos, luz dos cristãos.
Ó cruz, na qual um Deus feito homem foi nosso escravo na terra.
Por ti, o homem, no céu de Deus
converteu-se em rei brotou a luz verdadeira, foi vencida a noite maldita.
Para os crentes, derrubaste os templos pela mão das nações; tu és o
laço de paz que une o homem a Cristo o seu mediador.
Tu te converteste em escada,
pela qual o homem sobe ao céu.
Sê sempre para teus fieis a coluna e a âncora:
sustenta nossa morada, conduz nosso barco.
Estabelece nossa fé e prepara nossa coroa.

Romano, o Melódio († 560)

Maria junto à cruz.

Concede-me uma palavra ó Verbo.
Não passes diante de mim
em silêncio.
Tu que me conservaste pura.
Tu, meu Filho, meu Deus.

Caminhas, meu Filho,
Para um homicídio iníquo,
E ninguém partilha o teu sofrimento.
Os íntimos, os irmãos,
onde estão eles agora?

De todos eles, nem um só.
Tu só morres por todos,
Meu filho, tu só.
É o salário,
por teres salvo todos os homens,
por tê-los servido a todos,
meu Filho e meu Deus.


Fonte: Orações dos primeiros cristãos. Seleção de textos: A.G.Hamman, tradução:Anna Cecília Sampaio Bueno,CSA; Nair de Assis Oliveira,CSA. São Paulo: Edições Paulinas,1985


sábado, 22 de agosto de 2009

Reflexões sobre Educação. Parte I


Constitui lugar-comum pontificar sobre a fragilidade da instituição escolar. Sua dificuldade em transmitir saberes básicos de forma minimamente aceitável, principalmente àqueles relacionados à palavra, ao raciocínio lógico e matemático abstrato, à expressão lingüística (oral e escrita). Para não falar de conhecimentos das várias ciências. Aceita-se com certa naturalidade (ou melhor, resignação), ainda que envolvida em lástima e indignação, o fato de crianças e adolescentes concluírem a 4a. e 8a. séries ou, mesmo o ensino secundário, sem dominar os recursos básicos do ler, escrever e contar. Todavia, pouco se questiona, ou esta contestação é feita sem a devida pertinência, desfocada, na periferia do problema, portanto incompleta e tímida, de como esta situação de fracasso repercute no trabalho cotidiano do professor. Os discursos educacionais veiculados pela UNESCO, MEC, Secretárias da Educação, grande mídia, ONGs e organizações da iniciativa privada propoem determinada concepção de aluno, trabalho docente, conhecimento e cidadania que parecem ignorar subestimar ou mesmo desdenhar a complexidade da experiência real, além das visões de mundo e condições de trabalho de grande parte dos docentes. A permanente pauperização e desqualificação material e simbólica podem, seguramente, ocupar enormes espaços dentro da enorme produção legislativa e teórico-metodológica a respeito da educação. Porém, dificilmente irá atingir as questões essenciais.


Portanto, a educação contemporânea assemelha-se a um castelo de cartas. De aspecto extremamente delicado, engenhoso e confortador ao olhar. No entanto, a uma simples lufada de vento, põe-se a desmoronar. E o que vem ocorrendo nos últimos anos são grandes cataclismos. De maneira menos pessimista pode-se contemplar na delicadeza do castelo de cartas um semblante de força e fraqueza. Inseparáveis. A força está na inevitabilidade de algum processo educativo com vista à formação dos seres humanos. Ele tem que existir. Caso contrário, a existência humana estaria sem sentido, desorientada, à deriva de suas pulsões e jogos de poder. Já o lado frágil estaria relacionado à sua submissão (voluntária?) a uma complexa rede de relações políticas, econômicas, disputas por reconhecimento e poder acadêmico. Como a educação tornou-se a tábua de salvação para praticamente tudo, da crise econômica à resolução de conflitos familiares, da saúde pública ao combate ao desemprego, a frágil estrutura do castelo não resiste ao excesso de discursos, contraditórios e muitas vezes irrealizáveis. E adquire assim a aparência de alguns edifícios inacabados, que encontramos aqui em São Paulo ou qualquer outra cidade, cujas obras, por várias razões, mal começaram ou terminaram no meio. Destroços urbanos, traços desfocados. Imagem opaca de algo que poderia ter sido promissor, caso houvesse uma reflexão mais apurada e menos voluntarista...

Feita esta breve introdução segue abaixo uma série de fragmentos de escritos sobre educação. Em comum, possuem certa visão na contracorrente do discurso dominante, de teor psicologizante, imposto de cima para baixo, mais preocupado com a forma do que com conteúdos, populista, agressivo quanto a identidade e autonomia do professor... Eles falam por si. Espero que sirvam como inspiração para leituras e pesquisas mais profundadas. Foram lidos em momentos diferentes de minha formação intelectual. Tendo a concordar com boa parte. Minhas ressalvas e contribuições mais detalhadas ficam para uma segunda e terceira partes.

As imagens que ilustram as reflexões são de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779), pintor do barroco francês. Momento crítico para a elaboração das ideias que constituem nossa contemporaneidade. Especializou-se sobretudo em temas do cotidiano burguês. Algumas pinturas remetem a processos educativos, da infância burguesa e nobre. Suas telas exibem personagens mergulhados numa tranquilidade e concentração que faltam muito ao jovem corpo discente de hoje.



“(...)Desde então, a injunção metodológica de 'partir da realidade do aluno' transformou-se em verdadeira profissão de fé, desmesurada e inquestionável, como todas as proclamações do gênero. A fórmula não deixa de comportar, no entanto, seus graus de mistificação: entendida como princípios políticos de valorização epistemológica, ela dá origem a um voluntarismo que jamais chega a fazer suas provas de realidade; como preceito de atuação sócio-pedagógica; ela enclausura a identidade coletiva na simples reiteração; como estratégia didática, ajuda a promover a crença numa antropologia da incapacidade do outro se deixar motivar pela diferença. Porém, mais do que tudo, a própria ideia de 'partir da realidade do aluno' comporta uma falácia lógica evidente, somente sustentada pela suposição de um mestre que conhece antecipadamente e melhor do que o próprio aluno qual é sua realidade."

Lilian do Valle “Pedra de tropeço: a igualdade como ponto de partida” in Educação & Sociedade , vol 24, n.82, Abril 2003 pp. 263-264


"A expressão 'verdades acabadas' não é descritiva, é valorativa. Além disso, há certa incoerência no uso dessa expressão: a certeza de que essas verdades por serem 'acabadas' impedirão as pessoas de passar sobre elas e com isso criticá-las, superando o seu dogmatismo. Lembremos o adágio baconiano: 'A verdade surge mais facilmente do erro que da confusão.'

[sobre a "escola tradicional", que o autor considera como] "(...) Categoria discursiva tomada como dado da realidade. Fica-nos sempre a impressão; quando ouvimos alguém falar ou lemos alguma coisa, particularmente de Paulo Freire e congêneres, sobre a "escola tradicional"; que se trata muito mais de um tipo ideal na acepção weberiana do termo, um instrumento de grande poder heurístico, mas não verificável empiricamente (no caso em questão seria melhor dizer erístico)."

Amaury César Moraes Uma Crítica da Razão Pedagógica. Doutorado em Educação. FE-USP, 1997 pp.67-68


“Existe escola em algumas sociedades e particularmente na nossa... Dizer que a escola existe é, na verdade, dizer somente: numa sociedade existem saberes e estes últimos são transmitidos por um corpo especializado em um lugar especializado. Falar da escola é falar de quatro coisas: (1)dos saberes; (2) dos saberes transmissíveis; (3)dos especialistas encarregados de transmitir esses saberes; (4)de uma instituição reconhecida, tendo como função colocar em presença, de uma maneira regulada, os especialistas que transmitem e os sujeitos a quem se transmite. Cada uma dessas quatro coisas é necessária, de modo que é negação da existência da escola negar uma dessas quatro coisas; da mesma maneira que é querer o desaparecimento da escola querer, por alguma razão, boa ou má, o cessar de uma ou outra dessas coisas.... Assim, não é dizer que todos os saberes são transmissíveis; não é nem mesmo dizer que todos os saberes transmissíveis são ou devem ser transmitidos pela escola; não é dizer que os especialistas encarregados da transmissão sabem tudo que há para saber em geral e nem mesmo que eles sabem tudo que há para saber do saber que eles transmitem.Sem dúvida, sempre se pode acrescentar outras determinações às quatro essenciais. Por exemplo, pode-se desejar que a escola faça feliz, que contribua à boa saúde física e moral, que ela permita um uso racional do telefone ou da televisão etc. Não há nada a dizer sobre isso desde que se lembre de que se trata aí de finalidades secundárias, de benefícios adicionais: querer transformá-los em finalidades principais e em beneficios maiores é, em realidade, renunciar às determinações essenciais. É, portanto, querer o fim da escola.”

Jean-Claude Milner, 1984, apud Marília Amorim "A escola e o terceiro excluído." in Revista de Psicologia e Psicanálise. Instituto de Psicologia da UFRJ, n.1-1989 pp.81-82



"Em defesa dos professores cabe dizer que nunca foi fácil ensinar. Nunca foi fácil por um motivo muito simples: o professor tem por missão ensinar, que é meio, para o objetivo de levar o aluno a aprender, que é a finalidade última da escola. E esse objetivo depende do desejo dos alunos. Não se pode exercer essa profissão sem o engajamento do outro, sem seu desejo e mobilização, sem o uso em-si e para-si do conhecimento. E tal fato descarta a educação da possibilidade, em última análise, de controle absoluto. Educa-se num sentido, o resultado nunca é exatamente aquele esperado: pais e professores sabem disso. Não se pode obrigar o desejo. Pode-se sim, incitar, multiplicar sinais e apelos, preparar uma aula interessante, já se sabe que a relação do professor com o conhecimento exerce efeitos sedutores, etc. Mas definitivamente, parte do aluno, como sujeito, o colocar-se ou não em movimento em direção ao saber.
As palavras de Freud sobre as três missões impossíveis - governar, educar, analisar - apontam justamente para o paradoxo compartilhado por essas três profissões: a existência de um poder que se exerce sobre alguém, e o fato desse poder ser completamente nulo a não ser que o outro faça o trabalho essencial. A tarefa fundamental da escola é aprender e o poder de colocar alguém no lugar de professor, no fundo, é do aluno. Educar como missão impossível tornou-se, aliás, tema quase obrigatório, em diferentes versões e desdobramentos, nos escritos de psicanalistas ligados à educação. Se essas análises esclarecem aspectos do limite, da impossibilidade colocada pela presença do inconsciente, a insistência em evidenciar alguma coisa universal, comum a todos, retira da escuta de psicólogos e analistas a particularidade dos limites contemporâneos. O que há de novo e peculiar das limitações dos professores é que ela se expressa pela depressão, isto é, pela perda da palavra, da ação e da iniciativa, novos ingredientes que a pós-modernidade adicionou a essa velha impossibilidade."

Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza "Depressão em Profesores e Violência Escolar." in NOTANDUM - Ano XI - N. 16 jan-jun 2008 p. 20



"Na atualidade assistimos um inflacionamento das criações pedagógicas. Nunca como hoje deve ter havido tantos cursos de psicopedagogia. Nunca como hoje devem ter-se produzido tantas dissertações e teses 'preocupadas com a educação'. No entanto nunca como hoje alguém pode até chegar à própria universidade carregando escassos conhecimentos escolares, bem como carecendo de toda disciplina intelectual."

Leandro de Lajonquière "(Psico)Pedagogia, Psicanálise e Educação. Uma aula introdutória." in Estilos da Clínica, ano III, número.5, 2. semestre de 1998 pp.112-113


"A aquisição de uma cultura comum (ideal democrático que pode ser reinventado com um sentido de maior pluralismo e respeito às diferenças, mas que não deveria ser desprezado) supõe uma série de processos de recorte e não simplesmente de continuidade frente ao cotidiano. Aprende-se o que não se sabe: esta simples idéia nos obriga a considerar outras. Em primeiro lugar, que a fonte de um patrimônio simbólico não está somente naquilo que os sujeitos receberam e entenderam como próprio (através da cultura vivida, familiar, étnica ou social) e sim naquilo que transformarão em material conhecido através de um processo que implica, na mesma apropriação, uma dificuldade e um distanciamento.

(...)É verdade que a escola eliminou perfis culturais muito ricos. Os imigrantes entregaram seus filhos à escola, onde estes perderam a língua e a cultura de seus pais e encontraram somente a língua do novo país. Essa imposição, no entanto, também os convertia em cidadãos e não em membros de guetos étnicos onde as diferenças culturais permanecem inatas, assim como a desigualdade entre nacionais e estrangeiros, entre membros de diferentes religiões ou diferentes etnias. AS escola passava uma lixa de aço, mas em compensação, sobre a tábula rasa de uma brutal conversal das culturas de origem, depositava saberes que eram indispensáveis não somente para a formação de mão-de-obra capitalista, mas também para o estabelecimento das modalidades letradas da cultura operária, dos sindicatos e das intervenções na luta política."

Beatriz Sarlo Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997 pp.115-117
"Tratar de não confundir cultura culta [ou seja, cultura elaborada, erudita, distinta da dita 'cultura popular' e a cultura massificada] com a cultura dominante. Vimos que ao lado dos saberes normalizados, existem saberes não totalmente disciplinados. Isto quer dizer que, embora as instituições escolares desempenhem de fato funções de submetimento, elas podem desempenhar também funções libertadoras. Nelas é possível, como se demonstra cotidianamente, transmitir a paixão pelo conhecimento, ainda que seja em menor medida do que o desejável." (...) "As pedagogias renovadoras são, em geral excessivamente psicológicas. Ao se opor simplesmente às tradicionais, correm o perigo de reivindicar uma cultura, também construída, das classes populares, excessivamente vinculada ao criativo, ao concreto ao local e ao prático. Podem deste modo encerrar os filhos das classes mais desfavorecidas numa espécie de realismo concreto, negando-lhes o acesso à cultura culta, a determinados saberes, e provocar assim os efeitos menos desejados: impedir-lhes de escapar a sua condição de sujeitos submetidos."
Julia Varela "O estatuto do saber pedagógico." in O sujeito da educção. Tomaz Tadeu da Silva(org.) Petrópolis:Vozes,1994 pp.95-96



"Em nossa opinião, o que se perdeu nessas críticas antiinstitucionais e antiautoritárias é o fato de que é sempre necessária uma ordem, porque esta é a condição da sociedade, e uma autoridade que a organize, desde que a pense como um fluxo mais dinâmico de movimentos, ou como uma posição muito mais aberta, rotativa, com mecanismos de controle público muito mais claros. Alguém pode - e, segundo Derrida, se pode, deve - pensar em outros tipos de ordens que contenham o paradoxo da autoridade e da liberdade em outra equação, que não subordine a segunda nem desfaça a primeira. (...)
Sem um ordenamento simbólico e jurídico que nos "nomeie" e nos estruture em nossas relações com os outros, não há subjetividade, nem tampouco temos a possibilidade de contestar e discutir essa posição. Assim como o indivíduo necessita de outro que o nomeie e o situe em uma série ou rede exterior a si mesmo, para sair da indeferenciação na qual não existe nem ele nem o mundo, também na sociedade é necessária certa normatividade que estabeleça posições e procedimentos. Certamente não estamos defendendo, como fazia Durkheim, posições 'destinadas' para cada um, pobres e ricos, e outros; pelo contrário, acreditamos que tais suposições e tais procedimentos deveriam estar muito mais sujeitos a questionamentos e a modificações do que de fato estão, e que o desafio de pensar uma autoridade democrática implica, em primeiro lugar, poder conter as duas questões: construir uma certa ordem que esteja, ao mesmo tempo, aberta e disposta à crítica e a transformação."
Inés Dussel e Marcelo Caruso A invenção da sala de aula. Uma genealogia das formas de pensar. São Paulo: Moderna,2003 pp.232-233



“Aqueles que se insurgem contra os efeitos de dominação exercidos através do emprego da língua legítima costumam chegar a uma espécie de inversão da relação de força simbólica e acreditam agir bem ao consagrar a língua dominada – por exemplo, em sua forma mais autônoma, isto é, a gíria. [...] Aquilo que é chamado de ‘língua popular’ são modos de falar que, do ponto de vista língua dominante, aparecem como naturais, selvagens, bárbaros, vulgares. E aqueles que, por uma preocupação de reabilitação, falam de língua ou de cultura populares são vítimas da lógica que leva os grupos estigmatizados a reivindicar o estigma como signo de sua identidade.Forma distinta da língua ‘vulgar’ – aos próprios olhos de alguns dos dominantes –, a gíria é produto de uma busca de distinção, porém dominada [...]. Quando a busca de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo mesmo em nome do que eles são dominados e constituídos como vulgares, deve-se falar de resistência? [...] Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se esforçam por perder aquilo que os marca como ‘vulgares’ e se apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão? Acho que essa é uma contradição insolúvel: é uma contradição que está inscrita na própria lógica da dominação simbólica [...]. A resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora.”

Pierre Bourdieu “Os usos do ‘povo’.” in Coisas ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990 pp. 186-187