segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Algumas Orações dos Primeiros Séculos do Cristianismo.


Orar é extremamemte difícil. Esta prática implica num desconectar-se, por certos instantes, do movimento contínuo de sons e imagens, falas e pensamentos. Um silenciar-se temporário. O silêncio é desconfortável. Deixa-nos desamparados, frente a tudo aquilo que deixamos para mais tarde. Algo como respirar no ar rarefeito do topo de uma montanha. Uma mão colossal apertando o tórax. As camadas e mais camadas de dados (sons e imagens, falas e pensamentos) estão temporariamente inacessíveis. Agora estamos frente ao negativo de nossa condição. Sotão empoeirado e anárquico de afetos e desafetos, acordos e desacordos, dívidas simbólicas e materiais que vão se acumulando, com juros difíceis de sanar. Entretanto, é um silêncio produtivo, pois "é conduzir todos os nossos pensamentos fora de seu isolamento medroso e para dentro de uma conversa sem medo com Deus" [Henri Nouwen]. Algo que não fazemos por vergonha, indecisão e/ou medo (arrogância autosuficiente, temor de demonstrar fragilidade). Assim a oração é um canal para a nossa dor, creditanto à escuta do destinatário atenção e paciência infinita. E uma possibilidade de paz e resolução.
Selecionei algumas orações escritas/ou atribuídas a alguns Padres da Igreja. Documentam a constituição da doutrina cristã nos primeiros séculos. Algumas guardam forte influência da cultura helênica, certo platonismo hostil à corporalidade. São textos intensos, gerados na luta diária e na angústia da perseguição religiosa. Belas metáforas da luz, da tempestade, da maternidade, ambivalência de sentimentos e redenção.


Origenes († 253)
Fidelidade nas provações.
Roguemos a Deus, com todo o coração,que possamos lutar pela verdade,
com esforço de alma e corpo, até o fim.
Se lhe aprouver provar a nossa fé (porque nossa fé é provada nos perigos
e perseguições, como o ouro no cadinho),
inclusive pela perseguição, que ele nos encontre prontos,
para que nossa morada não seja derrubada no inverno,
ou nossa casa varrida pelatempestade, como se fora construída na areia.
E quando soprarem os ventos do demônio, isto é,
do pior dos espíritos,que nossas obras permaneçam,
já que até agora se mantiveram – supondo que não estejam secretamente minadas.
Nesse entretempo, manifestamos a caridade que temos para com Deus, no Cristo Jesus,
a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos e séculos! Amém.



Gregório Nazianzeno († 390)

Oração a Cristo na doença.

Fortifica-me ó Cristo. Teu servo
foi aniquilado
Cala-se a minha voz que te cantava.
Como o consentes?
Conforta-me, e não abandones teu sacerdote.

Quero voltar de novo à saúde,
cantar-te e purificar teu povo.
Rogo-te, ó minha força,
não me abandones.
Se, na tempestade, cheguei a trair-te,
quero voltar para ti.

O desejo de Deus.

Ó mãe, por que me fizeste nascer?
Fizeste-me nascer para a desgraça.
Por que me entregaste a esta vida
semeada de espinhos?
Se viveste tu, sem preocupação
como um ser que não é de carne,
tudo bem... Mas, se conheceste a amargura,
fizeste-me nascer sem amor.
Outros na vida traçam seus caminhos;
lavram a terra ou atravessam o oceano,
caçam, empunham lanças,
aprendem a cantar ou a vencer.

Meu destino, ó Deus, é para mim
sofrimento mais sofrimento;
Este mal me corrói e estou cansado.
Devora-me cruel, devora-me. Até quando?
Logo, oh alegria deixar-te-ei,
a ti e à minha tristeza sem limite

Ó mãe, fizeste-me nascer?
Eu não posso apreender a Deus,
nem envolvê-lo como o desejo.

Um instante, deslumbrou-me os olhos do espírito
o celeste esplendor do brilho daTríade
mas ei-lo que já quase desapareceu
– eu o lamento –
e passou como um relâmpago.
Queria saciar-me com sua luz,
e ela já se dissipou.

Mas, se lá no alto eu puder abraçá-la,
Tríade amada,
não mais acusarei as entranhas de minha mãe.
Com alegria cantarei meu nascimento.
Salva-me, Verbo de Deus, salva-me,
arranca-me do pó sombrio
e leva-me até a outra margem:
lá o espírito puro dança em volta
do teu esplendor,
e as nuvens não mais se vestem de sombra.


Oração para ser livre do demônio.

Liberta-me, liberta-me, ó Deus imortal,
da mão estrangeira.
Que eu não seja provado por obras más,
e que o faraó não me atormente.

Que eu não caia nas redes
do teu adversário, ó Cristo;
que ele não me arraste até a sombria Babilônia,
todo coberto de feridas.
Deixa-me permanecer em teus átrios
e, em pé, cantar aí teus louvores.
Que o fogo de Sodoma
não caia como chuva na minha cabeça.
Abriga-me na tua mão poderosa, afasta de mim todas as desgraças.




Sinésio de Cirene († 414)

Hino a Cristo

Cantemos o filho da esposa
que permaneceu sem mancha
e não conheceu desponsórios carnais.
Os conselhos inefáveis do Pai
decretaram o nascimento de Cristo

o seio augusto de uma virgem
deu-lhe sua veste de carne
Ele veio, no meio dos homens,
trazer a fonte da luz.

Teu nascimento inefável
precedeu a origem dos séculos.
Tu és a fonte da luz,
o raio que brilha com o Pai
Dissipas a opacidade da matéria
e iluminas a alma dos santos.

Fostes tu que criaste o mundo,
as órbitas e os astros,
Sustentas o centro da terra.
Salvas todos os homens.

Para mim o sol começa o seu curso
e ilumina todos os nossos dias,
para ti o crescente da lua
dissipa as trevas da noite.

Para ti germinam as sementes
e pastam os rebanhos.
De tua fonte inesgotável
jorra o esplendor da vida,
que ao universo dá a sua fecundidade.
E teu seio faz nascer
a luz, a inteligência e a alma.

Tem compaixão da tua filha,
prisioneira de membros mortais,
nos estreitos limites da matéria.
Protege dos golpes do mal
a saúde dos nossos membros vigorosos.

Dá às nossas palavras a eloqüência
às nossas obras um renome
semelhante ao antigo esplendor
de Esparta e de Cirene.

Que minha alma goze dias ditosos,
sem conhecer o sofrimento,
os olhos fixos sem cessar
na tua inefável claridade.

Que liberto enfim da matéria,
sem nunca desviar o olhar,
fugindo das angústias deste mundo,
eu venha mergulhar na fonte da minha alma.
Digna-te conceder esta vida sem mancha
ao trovador que te canta.

Ao celebrar assim a tua glória,
eu canto também o teu Pai
e sua majestade suprema
eu canto, sobre o mesmo trono, o Espírito,
entre o Princípio e o Engendrado.
Ao celebrar o poder do pai,
meus cantos despertam em mim
os sentimentos mais profundos da minha alma.

Salve, ó fonte do Filho!
Salve, ó imagem do Pai!
Salve, ó morada do Filho!
Salve, ó selo do Pai!
Salve, ó poder do Filho!
Salve, ó beleza do Pai!
Salve, ó Espírito puríssimo!
Laço do Pai e do Filho!

Ó Cristo, faze descer sobre mim
este Espírito com o Pai.
Que ele seja para minha alma como o orvalho
e a cumule com teus presentes de rei.


Paulino de Nola († 431)

Elogio da cruz

Ó cruz, indizível amor de Deus
e claridade do céu!
Cruz salvação eterna. Cruz,
terror dos maus, sustento dos justos, luz dos cristãos.
Ó cruz, na qual um Deus feito homem foi nosso escravo na terra.
Por ti, o homem, no céu de Deus
converteu-se em rei brotou a luz verdadeira, foi vencida a noite maldita.
Para os crentes, derrubaste os templos pela mão das nações; tu és o
laço de paz que une o homem a Cristo o seu mediador.
Tu te converteste em escada,
pela qual o homem sobe ao céu.
Sê sempre para teus fieis a coluna e a âncora:
sustenta nossa morada, conduz nosso barco.
Estabelece nossa fé e prepara nossa coroa.

Romano, o Melódio († 560)

Maria junto à cruz.

Concede-me uma palavra ó Verbo.
Não passes diante de mim
em silêncio.
Tu que me conservaste pura.
Tu, meu Filho, meu Deus.

Caminhas, meu Filho,
Para um homicídio iníquo,
E ninguém partilha o teu sofrimento.
Os íntimos, os irmãos,
onde estão eles agora?

De todos eles, nem um só.
Tu só morres por todos,
Meu filho, tu só.
É o salário,
por teres salvo todos os homens,
por tê-los servido a todos,
meu Filho e meu Deus.


Fonte: Orações dos primeiros cristãos. Seleção de textos: A.G.Hamman, tradução:Anna Cecília Sampaio Bueno,CSA; Nair de Assis Oliveira,CSA. São Paulo: Edições Paulinas,1985


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