Inicio aqui uma série de postagens sobre autores e livros que foram muito importantes em minha formação de historiador. Conheci alguns no final da adolescência, quando estava meio indeciso entre cursar História ou Biologia. Outros quando cursava História na FFLCH-USP, seja por sugestão dos professores, menção em algum texto ou ao acaso, revirando a biblioteca. Não endosso tudo que eles escreveram, porém são as matrizes com as quais aprendi a pensar e a interpretar o real. Sou relativamente eclético quanto às leituras, desde que seja material bem elaborado. Um conservador pode transmitir um grande ensinamento para mim, enquanto um progressista pode emitir grande asneira, constituindo uma perda de tempo, e vice-versa. Naturalmente abomino racistas, nazifascistas, antisemitas, literatura de auto-ajuda e fanáticos cientificistas e religiosos... Convivem em minha estante, com civilidadade, marxistas, liberais, filósofos analíticos, evolucionistas e culturalistas, freudianos e anti-freudianos, católicos, protestantes, pagãos, ateus e budistas.
Nascido em Londres no ano de 1919, o antropólogo e historiador britânico Jack Goody é, ao lado de Claude Levi-Strauss, Edgar Morin, Eric Hobsbawm, Rene Girard entre outros, um grandes cientistas sociais ainda vivos. Iniciou sua formação estudando literatura inglesa na Universidade de Cambridge, onde foi colega de E. P. Thompson, E. J. Hobsbawm e Raymond Williams. Seu interesse pela antropologia começou quando foi combatente na Segunda Guerra Mundial, lutando no deserto africano. Feito prisioneiro de guerra, passou por campos de internamento no Oriente Médio, Itália e Alemanha, travou contato com a diversidade humana, convivendo com beduínos, prisioneiros de guerra indianos, sul africanos, americanos e russos, com camponeses italianos, durante seis meses, numa de suas fugas. No campo de prisioneiros alemão de Eichsttat, que possuia uma biblioteca, Goody conheceu duas obras clássicas que marcariam sua formação intelectual: "O Ramo de Ouro" do antropólogo Sir James Frazer (1854-1941) e "O que aconteceu na História" do arqueólogo australiano V. Gordon Childe (1892-1957). Trabalhou com educação de adultos durante certo tempo. Este conjunto de experiências e leituras fizeram-no repensar seus interesses intelectuais. Com o fim da guerra, retornou à Universidade, trocando os estudos literários pela faculdade de arqueologia e antropologia. Foi aluno de Evans-Pritchard e Meyer Fortes, sucedendo este último como professor de antropologia em Cambridge. Estes dois mestres foram profundamente importantes para sua concepção de pesquisa antropológica indissociavelmente ligada à História, no caso de Pritchard. De Meyer Fortes veio o interesse pela dimensão psicológica da vida social, pela economia e o estudo do grupo doméstico e seu ciclo de desenvolvimento. Vale ressaltar o peso de Marx, Weber e Freud na constituição de seu pensamento.Sua vasta obra se desdobra em estudos sobre os efeitos do processo de letramento sobre as sociedades humanas, através da abordagem comparativa entre a Grécia Antiga, Mesopotâmia e África do século XX. Esta análise comparativa dos impactos da cultura letrada se desenvolve então, através do estudo de quatro parâmetros: religião, economia, administração e direito. Também são fundamentais seus estudos sobre História da Herança e da Família, do casamento e do amor romântico, da arte culinária e os processos de estratificação social entre outros temas. Disponíveis em português estão os seguintes títulos: A Domesticação do Pensamento Selvagem (Presença, 1988), A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade (Edições 70, 1991), As consequências do Letramento (em co-autoria com Ian Watt, Editora Paulistana, 2008), O Oriente no Ocidente (Difel), O Oriental, o Antigo e o Primitivo (Edusp, 2008) e finalmente o objeto deste ensaio, O Roubo da História (Contexto,2008).
O antropólogo entende que o "roubo" ou, mais elegantemente, "apropriação", foi o fato dos europeus escreverem sobre sua história e a do restante da humanidade a partir de seu ponto de vista, que enfatiza a excepcionalidade do Ocidente no tocante a criação da valores como a democracia, a defesa da liberdade, a igualdade de direitos, bem como instituições como as universidades e mesmo sentimentos como o "amor romântico" e o individualismo. Dessa maneira os europeus afirmam sua superioridade cultural e dão pouca atenção às realizações de outras sociedades, mais precisamente da Ásia e Oriente Próximo, que também desenvolveram estes conceitos. Goody tem por objetivo derrubar esta muralha etnocêntrica e mostrar que a Europa e a Ásia possuem pontos em comum, entretanto, sem abdicar a constatação de diferenças e particularides construídas ao longo do processo histórico.
Embora, numa primeira leitura, suas hipóteses e proposições causem muita estranheza ao leitor, isto é encontrar Capitalismos, Renascimentos, Processos de Modernização em outor lugares que não a Europa, não se trata de um texto planfetário, nutrido em atitudes de ressentimento e sentimentalismo politicamente correto. É o resultado de mais de 60 anos de leituras, pesquisa, rigor empírico e conceitual. Uma escrita densa e acessível (contanto que o leitor possua alguns conhecimentos básicos em história e ciências sociais).
Logo de início o autor não está interessado em fazer um tribunal histórico pois , muito ponderado, enuncia: "se a Europa não inventou o amor, a democracia, a liberdade e o capitalismo de mercado, ela também não inventou o etnocentrismo", ademais "essa tendência etnocêntrica é extensão de um impulso egocêntrico na base de grande parte da percepção humana e se realiza pelo domínio de fato de muitas partes do mundo" (1)
Boa parte dos capítulos do livro originaram-se de conferências. Acredito que após a leitura da introdução, seus capítulos podem ser lidos numa ordem aleatória, sem prejuízo da compreensão do todo, pois Jack Goody retoma várias vezes as idéias principais, esclarece algum ponto mais obscuro... Lamentavelmente inexistem índices de nomes,
O Roubo da História está dividido em três partes:
Na primeira parte "Uma Genealogia Sociocultural" o antropólogo estabelece quatro procedimentos para combater as visões etnocêntricas: 1. postura cética quanto a exclusividade européia na invenção de instituições e valores como a democracia ou liberdade, 2. estudar a história a partie da base (e não do presente) (2), 3. dar a importância devida ao passado não europeu e, 4. ter em mente "que até mesmo a espinha dorsal da historiografia - a localização dos fatos no tempo e no espaço - é variável, objeto de construção social, por isso sujeita a mudança." (3)
Goody discute as diferentes formas de calcular o tempo nas sociedades com (e também sem) escrita e a concepção de que o conceito linear seria criação da sociedade ocidental. Há que se diferenciar linearidade temporal de "progresso". Goody demonstra que existiam noções de linearidade em culturas orais, coexistindo junto com o tempo circular. Assim como as concepções de espaço e periodização histórica que também seguem padrões europeus. esta padronização foi-se estabelecendo com a conquista européia (processo de longa duração iniciado com as viagens de "descobrimento" e consolidada com a revolução industrial e o imperialismo do sec XIX).
O noção de "Antiguidade" também deve ser revista e, possivelmente ampliada. O "etapismo" de sociedade arcaica, Antiguidade, Feudalismo, Renascença e Capitalismo foi apropriado pelos europeus, pois outras sociedades passaram por processos semelhantes (4). A partir do conceito de "Revolução Urbana" (de V. Gordon Childe) Jack Goody trata do desenvolvimento paralelo, comercial e cultural, das sociedades da Mesopotâmia, Egito, Crescente Fértil e China. Existiam intercâmbios culturais, comerciais, relações diplomáticas tanto dentro destas sociedades como entre elas. Discute os limites de análises influentes como a de Moses Finley quanto a economia e democracia gregas. Desse modo a primazia dos gregos como inventores da democracia fica abalada, o que não significa menosprezo ao seu legado.
A segunda parte: "Três Perspectivas Acadêmicas" dedica-se à leitura crítica das obras de três grandes cientistas sociais: o biólogo e historiador da ciência Joseph Needham, que possui uma obra monumental lamentavelmente inédita em português chamada Science e Civilization in China (1954); o sociólogo alemão Norbert Elias e o historiador francês Fernand Braudel. Respectivamente são abordadas o desenvolvimento paralelo da ciências na Europa e na China até que no século XVI o Velho Mundo tomou a dianteira, enquanto a China teria estagnado.
Na minha opinião os juízos mais severos foram direcionados para Norbert Elias. Goody pretende demonstrar que falta rigor teórico e metodológico nas análises do sociólogo em relação ao processso civilizatório, que seria específico da socieda européia de fins da Idade Média e Renascimento. Processo fundamentado no controle comportamental, formação e centralização do Estado (e consequente monopólio da violência). Elias desconhecia pesquisas sobre culturas africanas e asiáticas, impossibilitando um trabalho comparativo mais consistente. Goody observa que estas sociedades possuíam controles e interditos quanto à sexualidade, uso da violência, ou sejs possuiam "regras de etiqueta" comparávéis aos europeus da Idade Moderna. O mais grave é que o sociologo alemão estaria alicerçado numa concepção de civilização do século XIX europeu, com todas as suas mazelas que são objeto de crítica de Jack Goody.
A obra de Braudel padece das mesmas vicissitudes: o capitalismo estaria plenamente estruturado na Europa Ocidental, enquanto estaria "travado" na Ásia após período de florescimento. Embora a Revolução Industrial européia estaria intimamente ligada aos desdobramentos da economia asiática, fatos que são muito obbscurecidos. Numa argumentação provocativa Goody questiona se o termo "capitalismo" deveria continuar a ser usado (5)
Finalmente a terceira parte "Três Instituições e Valores" trata das cidades, universidades, valores como igualdade, liberdade, individualismo e sentimentos como o amor. Naturalment os europeus reivindicam exclusividade ou, na melhor das hipóteses, fizeram um "trabalho melhor" nestes campos. Novamente existem similitudes e, as cidades européias possuem mais pontos de semelhança com as asiáticas do que pensa a vã filosofia. Algo parecido ocorre com as instituições de ensino superior, embora no Oriente pareça existir, em certas épocas, maior vigilância dos poderes religiosos quanto ao trabalho docente e liberdade de pensamento.
Quanto aos valores humanitários, individualismo,igualdade, liberdade, eles também estão presentes no pensamento muçulmano, hindu e budista. Evidentemente seguindo seus próprios parâmetros. Sociedades letradas, orais e não letradas da África e da Ásia promovem práticas que podemos considerar democráticas, onde existem participação e decisões compartilhadas em assembléias, rotatividade no poder etc. No tocante ao amor romântico, entendido como liberdade de escolha entre os parceiros, não foi uma invenção da Idade Média européia, ele pode ser encontrado na poesia romana (Catulo entre outros), na poesia árabe, indiana, japonesa e chinesa. No entanto, etnocentrismos à parte, observo que a situação das mulheres no Oriente contemporâneo não parece estar longe do ideal. Algo observado não apenas por ocidentais(6). Há que se questionar se este amor foi plenamente realizado tanto no Ocidente como no Oriente, algo a ser pensado com mais cuidados.
Jack Goody faz menção a um "desejo universal por representação" que, à revelia das elites e pressão do grupo social, é inerente à condição humana. Uma necessidade de se fazer ouvir que ultrapassa configurações sociais, no tempo e no espaço. Ideia interessante mas que não é muito bem delineada neste livro. Seria interessante comparar os conceitos de razão e verdade empregados pelos filósofos do ocidente e suas semelhanças e diferenças com relação à contrapartida oriental. Entretanto a Filosofia não parece ser terreno muito firme para Jack Goody, tão erudito em outros campos. Igualmente, elementos de teologia e história das religiões deveriam ser mais apurados. Por fim, algumas reflexões sobre a história contemporânea mais imediata, sobremaneira questões relacionadas à situação do Oriente Médio, parecem reiterar alguns lugares-comuns da mídia e da academia, parecendo ter sido escritos no calor do momento, com pouco distanciamento crítico. Mas estas questões ficam para serem comentadas em outra oportunidade.
O que tentei sintetizar é apenas uma pequena amostragem da riqueza de conteúdo deste livro, tal é a variedade de temas, subtemas e autores citados e comentados. É de se lamentar que muitos de seus interlocutores não estejam disponíveis em português. Ponto negativo é a falta de índices temático, de nomes e localidades.
Portanto, não se trata de um panfleto anti-ocidente, embora possa ser instrumentalizado neste sentido, segundo uma leitura estreita e superficial (tão arbitrária quanto a do eurocentrismo), seu autor não pretende começar do zero e se arvorar em monopolizador da verdade. Afinal, se o Ocidente não criou todos os benefícios da humanidade, divide com o resto do mundo a miséria humana.
Afinal, existe uma grande diferença entre criticar o eurocentrismo e todas as conseqüências espúrias que ele proporcionou e desqualificar conquistas civilizatórias da cultura ocidental como um todo. Nosso passado não foi um conto de fadas, mas é o nosso passado. Somos resultado de séculos de elaborações intelectuais, conflitos simbólicos e materiais. Destruição e esclarecimento são irmãos muito unidos. Cabe a nós compreender esta complexa herança. Apreender e reelaborar o que for preciso. Desprezar, nunca.
Predomina uma espécie de renúncia civilizatória, como se devêssemos nos envergonhar de nosso passado. Um legítimo diálogo de civilizações se faz com uma apropriação lúcida de nosso legado de milênios e séculos, sem chauvinismos, ressentimentos e idealizações.
Enfim um fabuloso trabalho de erudição e síntese. Todavia suas proposições demandam refinamento teórico e uma leitura tão crítica quanto a que ele inflige aos seus interlocutores.
Link para uma bela entrevista do antropólogo britânico está aí embaixo.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832004000200013&script=sci_arttext
Notas:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832004000200013&script=sci_arttext
Notas:
1- O Roubo da História, p.23
2- Item polêmico sem dúvida. Seria igualmente uma prevenção contra o anacronismo?
3- op. cit, p.24. A meu ver, nomear, classificar, diferenciar e hierarquizar constituem características cognitivas humanas básicas e irreprimíveis. Temos que atentar para os pressupostos e consequencias destas operações que efetivamos. Nota-se o equilíbrio do autor, o passado existiu, vários aspectos deste passado podem ser conhecidos por nós, mas o conhecimento histórico é construído socialmente, ou seja, suas categorias estão sujeitas à releituras, confrontação de perspectivas diversas, revisões mais ou menos profundas, mas, sempre seguindo critérios científicos rigorosos. Não há uma defesa de relativismo e subjetivismo metodológicos. Portanto existem critérios de verdade e objetividade, o que afasta o autor do relativismo extremo dos pós-modernos. Ele acha pertinente a existência e manutenção de grandes narrativas.
4- Vale salientar que Jack Goody é evolucionista, acredita em certas constantes do comportamento individual e social humanos. O que não é demérito algum. O fato é que o evolucionismo na antropologia passou (e ainda passa) por grande descrédito. Em muito contribuíram suas leituras racistas, o equivocado "predomínio do mais forte", a eugenia etc. Certamente há resistências de quem trabalha com ciências humanas em dialogar com teorias evolucionidas, mesmo mais lapidadas e reconfiguradas, purificadas das apropriações nocivas de que foram objeto no passado.
5-Goody parece mais interessado em apreender processos e não ficar apegado à rigidez dos conceitos.
6-Questão complicadíssima. Uma voz forte é a da escritora somali Ayaan Hirsi Ali, autora de Infiel e A virgem na jaula. O número de autoras de origem muçulmana, criticando o tratamento que o Islã concede à mulher é considerável. Seja propondo outra leitura da tradição, purificada do fundamentalismo. Também extremamente importante é o livro Minha Briga Com O Islã de Irshad Manji. Outras autoras, adotanto ideias "ocidentais"(?), chegando a renegar sua tradição, ou mesclando conceitos da modernidade européia com ideais da tradição intelectual islâmica. Este assunto não é muito confortável para os multiculturalistas do ocidente, como podemos notar nesta entrevista, insatisfatória de meu ponto de vista, da antropóloga brasileira Denise Bandeira a respeito das críticas de Ayaan ao multiculturalismo [ver este link http://www.ufrgs.br/comunicacaosocial/jornaldauniversidade/111/pagina10.htm ]
Lembro que, em um dos ensaios do livro Em Defesa da História: Marxismo e Pós-modernismo, organizado por Ellen Meiksins Wood e John Bellamy Forsters, a bióloga indiana Meera Nanda falando das vicissitudes das mulheres de seu país em querer estudar e chegar à universidade.
Um comentário:
Muito interessante, formato de fácil acessibilidade.. Boa colocação de ideias baseadas no Goody.
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