História, Cultura & Memória. "... o que permaneceu incompreendido retorna: como uma alma penada, não tem repouso até que seja encontrada resolução e libertação." Sigmund Freud
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
terça-feira, 25 de agosto de 2009
Agalloch - The Shadow Of Our Pale Companion
Agalloch é uma banda norte-americana formada em 1995 em Portland, Oregon. Liderada pelo vocalista e guitarrista John Haughm. Seu estilo é uma fusão de vários subgêneros do Metal. Folk, Doom, Progressive e Black Metal. Som híbrido que remete também soberana influência de Quorton / Bathory. Ecos de Pink Floyd, Opeth, Katatonia e Primordial são reconhecíveis.
The Mantle, lançado em 2002, é um dos seus álbuns mais elogiados. São faixas longas, de andamento cadenciado e introspectivo, hipnótico. A voz de John Haugm, alternando gélidos vocais rasgados (quase sussurrados) e linhas mais limpas (lembrando um pouco Johann Edlund, do Tiamat), se amolda perfeitamente com o andamento instrumental construído sobre guitarras acústicas, violões e tambores. Sua temática se desdobra em certo neopaganismo, misticismo e solidão insatisfeita com a condição (pós)moderna.
O nome, criação de John Haugm and Shane Breyer, foi inspirado numa madeira preciosa e odorífera, da árvore Aquilaria agallocha.
O que nos vem à mente ao escutarmos as canções do The Mantle são imagens de uma floresta virgem, invernal, na aurora dos tempos, onde a presença humana é muito, mas muito recente e discreta, quase incoveniente. Onde as águas gélidas e o vento agreste tentam nos purificar, ao menos momentaneamente, do manto da deterioração e da angústia, que nos encobre. A canção "In The Shadow Of Our Pale Companion", é um bom exemplo disto, peça que fica melhor a cada vez que você a ouve, elaborada sob a forma de questionamentos. Tristeza pensante que encharca nossa mente de reflexões. Trilha sonora ideal para quando o desejo imperioso de evasão deste mundo, fugir de tudo que é conhecido, de abstrair-se em mundos imaginários. Senti-los como se fossem nossos.
Aqui vai a tradução da 2a. faixa: In The Shadow Of Our Pale Companion, com seus quinze minutos de duração, seguida de um clip em duas partes, que baixei do youtube.
In The Shadow Of Our Pale Companion:
Através de vastos vales vaguei
Até os mais altos picos
Em caminhos através de selvagens e esquecidas paisagens
Na busca de Deus, a respeito do homem
Até o perdido e esquecido infinito...
Nisto é onde escolhi trilhar.
Cair...então preferimos cair dentro do nada?
A falta de tudo que eu sinto nos braços da pálida,
nas sombras da implacável companhia que caminha conosco.
Aqui está a paisagem
Aqui está o sol
Aqui no equilíbrio da terra,
Onde está Deus?
Ele caiu e nos abandonou?
Enquanto eu me aproximo pelas sombras das mãos da morte
O fogo em meu coração é forjado através da terra
Aqui na beira deste mundo
Aqui eu fito o panteão de carvalho, da cidadela de pedra
E neste grande panorama diante de mim é que você chama
Deus...Então Deus não está morto
Eu caminhei abaixo em direção a um rio e sentei na reflexão do que deveria ser feito
Uma oferenda de fluxo avermelhado dentro da água abaixo
Uma ferida do espírito o qual flutuou e desapareceu...
como toda a esperança que eu já tive......
como todo sonho que eu já conheci...
Foram lavados na onda de uma espera, de uma espera por um mundo melhor
Da minha vontade, da minha garganta, para o rio, e para dentro do mar
...lavados;
...lavados;
Aqui está a paisagem
Aqui está o sol
Aqui na beira da terra,
Onde está o Deus?
Ele caiu em ruína?
Enquanto eu me aproximo pelas sombras das mãos da morte
Meu orgulho pagão é ferido através da terra.
Link para o original em inglês: http://www.lyricsdownload.com/agalloch-in-the-shadow-of-our-pale-companion-lyrics.html
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Agni Parthene
O hino Agni Parthene foi composto por São Nectários de Egina (1846-1920), bispo ortodoxo, a partir da Theotokarion (Livro dos Hinos à Mãe de Deus).
1.
Ó Virgem Pura e Rainha, Imaculada, Theotokos!Ave, Esposa Inesposada!
Mãe Virgem e Rainha,Manto Orvalhado cobre-nos!Ave, Esposa Inesposada!
Ó Altíssima, mais que os céus, ó Luminosa, mais que o sol!Ave, Esposa Inesposada!
Ó deleite dos santos virginais, maior que os celestiais!Ave, Esposa Inesposada!
Ó luz dos céus mais brilhante, mais pura e radiante!Ave, Esposa Inesposada!
Ó mais Santa e angelical, ó Santíssimo altar celestial!Ave, Esposa Inesposada!
2
Maria Sempre Virgem, Senhora da Criação!Ave, Esposa Inesposada!
Ó Imaculada Esposa Virgem, ó Puríssima Nossa Senhora!Ave, Esposa Inesposada!
Maria, Esposa e Rainha, fonte da nossa alegria!Ave, Esposa Inesposada!
Venerável Virgem Donzela, Santíssima Mãe e Rainha!Ave, Esposa Inesposada!
Mais venerável que os Querubins, mais gloriosa que os Sereafins!Ave, Esposa Inesposada!
És mais alta em plena glória, que toda a hoste incorpórea!Ave, Esposa Inesposada!
3.
Ave hino dos arcanjos, Ave música dos anjos!Ave, Esposa Inesposada!
Ave, canto dos Querubins,Ave canto dos Serafins!Ave, Esposa Inesposada!
Ave, paz e alegria, alegrai-vos, Ave, porto da salvação!Ave, Esposa Inesposada!
Do Verbo santo, quarto nupcial; Flor, fragrância da Incorrupção!Ave, Esposa Inesposada!
Ave, deleite do Paraíso, Ave, Vida Imortal!Ave, Esposa Inesposada!
Ave, Árvore da Vida, e Fonte da Imortalidade!Ave, Esposa Inesposada!
4.
Imploro-te, ó Rainha, eu te suplico!Ave, Esposa Inesposada!
Peço-te ó Rainha da Criação, imploro tua benção!Ave, Esposa Inesposada!
Ó Virgem Pura Venerável, ó Santíssima SenhoraAve, Esposa Inesposada!
Com fervor eu te suplico, ó Templo Sagrado!Ave, Esposa Inesposada!
Percebe-me, ajudaime, livra-me do inimigo!Ave, Esposa Inesposada!
Intercede por mim para que eu tenha a Vida Eterna!Ave, Esposa Inesposada!
Tradução em português por Fábio Lins
Algumas Orações dos Primeiros Séculos do Cristianismo.
Orar é extremamemte difícil. Esta prática implica num desconectar-se, por certos instantes, do movimento contínuo de sons e imagens, falas e pensamentos. Um silenciar-se temporário. O silêncio é desconfortável. Deixa-nos desamparados, frente a tudo aquilo que deixamos para mais tarde. Algo como respirar no ar rarefeito do topo de uma montanha. Uma mão colossal apertando o tórax. As camadas e mais camadas de dados (sons e imagens, falas e pensamentos) estão temporariamente inacessíveis. Agora estamos frente ao negativo de nossa condição. Sotão empoeirado e anárquico de afetos e desafetos, acordos e desacordos, dívidas simbólicas e materiais que vão se acumulando, com juros difíceis de sanar. Entretanto, é um silêncio produtivo, pois "é conduzir todos os nossos pensamentos fora de seu isolamento medroso e para dentro de uma conversa sem medo com Deus" [Henri Nouwen]. Algo que não fazemos por vergonha, indecisão e/ou medo (arrogância autosuficiente, temor de demonstrar fragilidade). Assim a oração é um canal para a nossa dor, creditanto à escuta do destinatário atenção e paciência infinita. E uma possibilidade de paz e resolução.
Selecionei algumas orações escritas/ou atribuídas a alguns Padres da Igreja. Documentam a constituição da doutrina cristã nos primeiros séculos. Algumas guardam forte influência da cultura helênica, certo platonismo hostil à corporalidade. São textos intensos, gerados na luta diária e na angústia da perseguição religiosa. Belas metáforas da luz, da tempestade, da maternidade, ambivalência de sentimentos e redenção.
Origenes († 253)
Fidelidade nas provações.
Roguemos a Deus, com todo o coração,que possamos lutar pela verdade,
com esforço de alma e corpo, até o fim.
Se lhe aprouver provar a nossa fé (porque nossa fé é provada nos perigos
e perseguições, como o ouro no cadinho),
inclusive pela perseguição, que ele nos encontre prontos,
para que nossa morada não seja derrubada no inverno,
ou nossa casa varrida pelatempestade, como se fora construída na areia.
E quando soprarem os ventos do demônio, isto é,
do pior dos espíritos,que nossas obras permaneçam,
já que até agora se mantiveram – supondo que não estejam secretamente minadas.
Nesse entretempo, manifestamos a caridade que temos para com Deus, no Cristo Jesus,
a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos e séculos! Amém.
Gregório Nazianzeno († 390)
Oração a Cristo na doença.
Fortifica-me ó Cristo. Teu servo
foi aniquilado
Cala-se a minha voz que te cantava.
Como o consentes?
Conforta-me, e não abandones teu sacerdote.
Quero voltar de novo à saúde,
cantar-te e purificar teu povo.
Rogo-te, ó minha força,
não me abandones.
Se, na tempestade, cheguei a trair-te,
quero voltar para ti.
O desejo de Deus.
O desejo de Deus.
Ó mãe, por que me fizeste nascer?
Fizeste-me nascer para a desgraça.
Por que me entregaste a esta vida
semeada de espinhos?
Se viveste tu, sem preocupação
Se viveste tu, sem preocupação
como um ser que não é de carne,
tudo bem... Mas, se conheceste a amargura,
fizeste-me nascer sem amor.
Outros na vida traçam seus caminhos;
lavram a terra ou atravessam o oceano,
caçam, empunham lanças,
aprendem a cantar ou a vencer.
Meu destino, ó Deus, é para mim
sofrimento mais sofrimento;
Este mal me corrói e estou cansado.
Devora-me cruel, devora-me. Até quando?
Devora-me cruel, devora-me. Até quando?
Logo, oh alegria deixar-te-ei,
a ti e à minha tristeza sem limite
Ó mãe, fizeste-me nascer?
Eu não posso apreender a Deus,
nem envolvê-lo como o desejo.
Um instante, deslumbrou-me os olhos do espírito
o celeste esplendor do brilho daTríade
mas ei-lo que já quase desapareceu
– eu o lamento –
e passou como um relâmpago.
Queria saciar-me com sua luz,
e ela já se dissipou.
Mas, se lá no alto eu puder abraçá-la,
Tríade amada,
Tríade amada,
não mais acusarei as entranhas de minha mãe.
Com alegria cantarei meu nascimento.
Salva-me, Verbo de Deus, salva-me,
arranca-me do pó sombrio
e leva-me até a outra margem:
e leva-me até a outra margem:
lá o espírito puro dança em volta
do teu esplendor,
e as nuvens não mais se vestem de sombra.
Oração para ser livre do demônio.
Liberta-me, liberta-me, ó Deus imortal,
da mão estrangeira.
Que eu não seja provado por obras más,
e que o faraó não me atormente.
da mão estrangeira.
Que eu não seja provado por obras más,
e que o faraó não me atormente.
Que eu não caia nas redes
do teu adversário, ó Cristo;
que ele não me arraste até a sombria Babilônia,
todo coberto de feridas.
do teu adversário, ó Cristo;
que ele não me arraste até a sombria Babilônia,
todo coberto de feridas.
Deixa-me permanecer em teus átrios
e, em pé, cantar aí teus louvores.
Que o fogo de Sodoma
não caia como chuva na minha cabeça.
Abriga-me na tua mão poderosa, afasta de mim todas as desgraças.
e, em pé, cantar aí teus louvores.
Que o fogo de Sodoma
não caia como chuva na minha cabeça.
Abriga-me na tua mão poderosa, afasta de mim todas as desgraças.
Sinésio de Cirene († 414)
Hino a Cristo
Cantemos o filho da esposa
que permaneceu sem mancha
e não conheceu desponsórios carnais.
Os conselhos inefáveis do Pai
decretaram o nascimento de Cristo
o seio augusto de uma virgem
deu-lhe sua veste de carne
Ele veio, no meio dos homens,
trazer a fonte da luz.
Teu nascimento inefável
precedeu a origem dos séculos.
Tu és a fonte da luz,
o raio que brilha com o Pai
Dissipas a opacidade da matéria
e iluminas a alma dos santos.
Fostes tu que criaste o mundo,
as órbitas e os astros,
Sustentas o centro da terra.
Salvas todos os homens.
Para mim o sol começa o seu curso
e ilumina todos os nossos dias,
para ti o crescente da lua
dissipa as trevas da noite.
Para ti germinam as sementes
e pastam os rebanhos.
De tua fonte inesgotável
jorra o esplendor da vida,
que ao universo dá a sua fecundidade.
E teu seio faz nascer
a luz, a inteligência e a alma.
Tem compaixão da tua filha,
prisioneira de membros mortais,
nos estreitos limites da matéria.
Protege dos golpes do mal
a saúde dos nossos membros vigorosos.
Dá às nossas palavras a eloqüência
às nossas obras um renome
semelhante ao antigo esplendor
de Esparta e de Cirene.
Que minha alma goze dias ditosos,
sem conhecer o sofrimento,
os olhos fixos sem cessar
na tua inefável claridade.
Que liberto enfim da matéria,
sem nunca desviar o olhar,
fugindo das angústias deste mundo,
eu venha mergulhar na fonte da minha alma.
Digna-te conceder esta vida sem mancha
ao trovador que te canta.
Ao celebrar assim a tua glória,
eu canto também o teu Pai
e sua majestade suprema
eu canto, sobre o mesmo trono, o Espírito,
entre o Princípio e o Engendrado.
Ao celebrar o poder do pai,
meus cantos despertam em mim
os sentimentos mais profundos da minha alma.
Salve, ó fonte do Filho!
Salve, ó imagem do Pai!
Salve, ó morada do Filho!
Salve, ó selo do Pai!
Salve, ó poder do Filho!
Salve, ó beleza do Pai!
Salve, ó Espírito puríssimo!
Laço do Pai e do Filho!
Ó Cristo, faze descer sobre mim
este Espírito com o Pai.
Que ele seja para minha alma como o orvalho
e a cumule com teus presentes de rei.
Salve, ó imagem do Pai!
Salve, ó morada do Filho!
Salve, ó selo do Pai!
Salve, ó poder do Filho!
Salve, ó beleza do Pai!
Salve, ó Espírito puríssimo!
Laço do Pai e do Filho!
Ó Cristo, faze descer sobre mim
este Espírito com o Pai.
Que ele seja para minha alma como o orvalho
e a cumule com teus presentes de rei.
Paulino de Nola († 431)
Elogio da cruz
Ó cruz, indizível amor de Deus
e claridade do céu!
Cruz salvação eterna. Cruz,
terror dos maus, sustento dos justos, luz dos cristãos.
Ó cruz, na qual um Deus feito homem foi nosso escravo na terra.
Por ti, o homem, no céu de Deus
converteu-se em rei brotou a luz verdadeira, foi vencida a noite maldita.
Para os crentes, derrubaste os templos pela mão das nações; tu és o
laço de paz que une o homem a Cristo o seu mediador.
Tu te converteste em escada,
pela qual o homem sobe ao céu.
Sê sempre para teus fieis a coluna e a âncora:
sustenta nossa morada, conduz nosso barco.
Estabelece nossa fé e prepara nossa coroa.
Romano, o Melódio († 560)
Maria junto à cruz.
Concede-me uma palavra ó Verbo.
Não passes diante de mim
em silêncio.
Tu que me conservaste pura.
Tu, meu Filho, meu Deus.
Caminhas, meu Filho,
Para um homicídio iníquo,
E ninguém partilha o teu sofrimento.
Os íntimos, os irmãos,
onde estão eles agora?
De todos eles, nem um só.
Tu só morres por todos,
Meu filho, tu só.
É o salário,
por teres salvo todos os homens,
por tê-los servido a todos,
meu Filho e meu Deus.
Fonte: Orações dos primeiros cristãos. Seleção de textos: A.G.Hamman, tradução:Anna Cecília Sampaio Bueno,CSA; Nair de Assis Oliveira,CSA. São Paulo: Edições Paulinas,1985
sábado, 22 de agosto de 2009
Reflexões sobre Educação. Parte I
Constitui lugar-comum pontificar sobre a fragilidade da instituição escolar. Sua dificuldade em transmitir saberes básicos de forma minimamente aceitável, principalmente àqueles relacionados à palavra, ao raciocínio lógico e matemático abstrato, à expressão lingüística (oral e escrita). Para não falar de conhecimentos das várias ciências. Aceita-se com certa naturalidade (ou melhor, resignação), ainda que envolvida em lástima e indignação, o fato de crianças e adolescentes concluírem a 4a. e 8a. séries ou, mesmo o ensino secundário, sem dominar os recursos básicos do ler, escrever e contar. Todavia, pouco se questiona, ou esta contestação é feita sem a devida pertinência, desfocada, na periferia do problema, portanto incompleta e tímida, de como esta situação de fracasso repercute no trabalho cotidiano do professor. Os discursos educacionais veiculados pela UNESCO, MEC, Secretárias da Educação, grande mídia, ONGs e organizações da iniciativa privada propoem determinada concepção de aluno, trabalho docente, conhecimento e cidadania que parecem ignorar subestimar ou mesmo desdenhar a complexidade da experiência real, além das visões de mundo e condições de trabalho de grande parte dos docentes. A permanente pauperização e desqualificação material e simbólica podem, seguramente, ocupar enormes espaços dentro da enorme produção legislativa e teórico-metodológica a respeito da educação. Porém, dificilmente irá atingir as questões essenciais.
Portanto, a educação contemporânea assemelha-se a um castelo de cartas. De aspecto extremamente delicado, engenhoso e confortador ao olhar. No entanto, a uma simples lufada de vento, põe-se a desmoronar. E o que vem ocorrendo nos últimos anos são grandes cataclismos. De maneira menos pessimista pode-se contemplar na delicadeza do castelo de cartas um semblante de força e fraqueza. Inseparáveis. A força está na inevitabilidade de algum processo educativo com vista à formação dos seres humanos. Ele tem que existir. Caso contrário, a existência humana estaria sem sentido, desorientada, à deriva de suas pulsões e jogos de poder. Já o lado frágil estaria relacionado à sua submissão (voluntária?) a uma complexa rede de relações políticas, econômicas, disputas por reconhecimento e poder acadêmico. Como a educação tornou-se a tábua de salvação para praticamente tudo, da crise econômica à resolução de conflitos familiares, da saúde pública ao combate ao desemprego, a frágil estrutura do castelo não resiste ao excesso de discursos, contraditórios e muitas vezes irrealizáveis. E adquire assim a aparência de alguns edifícios inacabados, que encontramos aqui em São Paulo ou qualquer outra cidade, cujas obras, por várias razões, mal começaram ou terminaram no meio. Destroços urbanos, traços desfocados. Imagem opaca de algo que poderia ter sido promissor, caso houvesse uma reflexão mais apurada e menos voluntarista...
Feita esta breve introdução segue abaixo uma série de fragmentos de escritos sobre educação. Em comum, possuem certa visão na contracorrente do discurso dominante, de teor psicologizante, imposto de cima para baixo, mais preocupado com a forma do que com conteúdos, populista, agressivo quanto a identidade e autonomia do professor... Eles falam por si. Espero que sirvam como inspiração para leituras e pesquisas mais profundadas. Foram lidos em momentos diferentes de minha formação intelectual. Tendo a concordar com boa parte. Minhas ressalvas e contribuições mais detalhadas ficam para uma segunda e terceira partes.
As imagens que ilustram as reflexões são de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779), pintor do barroco francês. Momento crítico para a elaboração das ideias que constituem nossa contemporaneidade. Especializou-se sobretudo em temas do cotidiano burguês. Algumas pinturas remetem a processos educativos, da infância burguesa e nobre. Suas telas exibem personagens mergulhados numa tranquilidade e concentração que faltam muito ao jovem corpo discente de hoje.
“(...)Desde então, a injunção metodológica de 'partir da realidade do aluno' transformou-se em verdadeira profissão de fé, desmesurada e inquestionável, como todas as proclamações do gênero. A fórmula não deixa de comportar, no entanto, seus graus de mistificação: entendida como princípios políticos de valorização epistemológica, ela dá origem a um voluntarismo que jamais chega a fazer suas provas de realidade; como preceito de atuação sócio-pedagógica; ela enclausura a identidade coletiva na simples reiteração; como estratégia didática, ajuda a promover a crença numa antropologia da incapacidade do outro se deixar motivar pela diferença. Porém, mais do que tudo, a própria ideia de 'partir da realidade do aluno' comporta uma falácia lógica evidente, somente sustentada pela suposição de um mestre que conhece antecipadamente e melhor do que o próprio aluno qual é sua realidade."
“Existe escola em algumas sociedades e particularmente na nossa... Dizer que a escola existe é, na verdade, dizer somente: numa sociedade existem saberes e estes últimos são transmitidos por um corpo especializado em um lugar especializado. Falar da escola é falar de quatro coisas: (1)dos saberes; (2) dos saberes transmissíveis; (3)dos especialistas encarregados de transmitir esses saberes; (4)de uma instituição reconhecida, tendo como função colocar em presença, de uma maneira regulada, os especialistas que transmitem e os sujeitos a quem se transmite. Cada uma dessas quatro coisas é necessária, de modo que é negação da existência da escola negar uma dessas quatro coisas; da mesma maneira que é querer o desaparecimento da escola querer, por alguma razão, boa ou má, o cessar de uma ou outra dessas coisas.... Assim, não é dizer que todos os saberes são transmissíveis; não é nem mesmo dizer que todos os saberes transmissíveis são ou devem ser transmitidos pela escola; não é dizer que os especialistas encarregados da transmissão sabem tudo que há para saber em geral e nem mesmo que eles sabem tudo que há para saber do saber que eles transmitem.Sem dúvida, sempre se pode acrescentar outras determinações às quatro essenciais. Por exemplo, pode-se desejar que a escola faça feliz, que contribua à boa saúde física e moral, que ela permita um uso racional do telefone ou da televisão etc. Não há nada a dizer sobre isso desde que se lembre de que se trata aí de finalidades secundárias, de benefícios adicionais: querer transformá-los em finalidades principais e em beneficios maiores é, em realidade, renunciar às determinações essenciais. É, portanto, querer o fim da escola.”
Jean-Claude Milner, 1984, apud Marília Amorim "A escola e o terceiro excluído." in Revista de Psicologia e Psicanálise. Instituto de Psicologia da UFRJ, n.1-1989 pp.81-82
"Em defesa dos professores cabe dizer que nunca foi fácil ensinar. Nunca foi fácil por um motivo muito simples: o professor tem por missão ensinar, que é meio, para o objetivo de levar o aluno a aprender, que é a finalidade última da escola. E esse objetivo depende do desejo dos alunos. Não se pode exercer essa profissão sem o engajamento do outro, sem seu desejo e mobilização, sem o uso em-si e para-si do conhecimento. E tal fato descarta a educação da possibilidade, em última análise, de controle absoluto. Educa-se num sentido, o resultado nunca é exatamente aquele esperado: pais e professores sabem disso. Não se pode obrigar o desejo. Pode-se sim, incitar, multiplicar sinais e apelos, preparar uma aula interessante, já se sabe que a relação do professor com o conhecimento exerce efeitos sedutores, etc. Mas definitivamente, parte do aluno, como sujeito, o colocar-se ou não em movimento em direção ao saber.
As palavras de Freud sobre as três missões impossíveis - governar, educar, analisar - apontam justamente para o paradoxo compartilhado por essas três profissões: a existência de um poder que se exerce sobre alguém, e o fato desse poder ser completamente nulo a não ser que o outro faça o trabalho essencial. A tarefa fundamental da escola é aprender e o poder de colocar alguém no lugar de professor, no fundo, é do aluno. Educar como missão impossível tornou-se, aliás, tema quase obrigatório, em diferentes versões e desdobramentos, nos escritos de psicanalistas ligados à educação. Se essas análises esclarecem aspectos do limite, da impossibilidade colocada pela presença do inconsciente, a insistência em evidenciar alguma coisa universal, comum a todos, retira da escuta de psicólogos e analistas a particularidade dos limites contemporâneos. O que há de novo e peculiar das limitações dos professores é que ela se expressa pela depressão, isto é, pela perda da palavra, da ação e da iniciativa, novos ingredientes que a pós-modernidade adicionou a essa velha impossibilidade."
Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza "Depressão em Profesores e Violência Escolar." in NOTANDUM - Ano XI - N. 16 jan-jun 2008 p. 20
"Na atualidade assistimos um inflacionamento das criações pedagógicas. Nunca como hoje deve ter havido tantos cursos de psicopedagogia. Nunca como hoje devem ter-se produzido tantas dissertações e teses 'preocupadas com a educação'. No entanto nunca como hoje alguém pode até chegar à própria universidade carregando escassos conhecimentos escolares, bem como carecendo de toda disciplina intelectual."
Leandro de Lajonquière "(Psico)Pedagogia, Psicanálise e Educação. Uma aula introdutória." in Estilos da Clínica, ano III, número.5, 2. semestre de 1998 pp.112-113
"A aquisição de uma cultura comum (ideal democrático que pode ser reinventado com um sentido de maior pluralismo e respeito às diferenças, mas que não deveria ser desprezado) supõe uma série de processos de recorte e não simplesmente de continuidade frente ao cotidiano. Aprende-se o que não se sabe: esta simples idéia nos obriga a considerar outras. Em primeiro lugar, que a fonte de um patrimônio simbólico não está somente naquilo que os sujeitos receberam e entenderam como próprio (através da cultura vivida, familiar, étnica ou social) e sim naquilo que transformarão em material conhecido através de um processo que implica, na mesma apropriação, uma dificuldade e um distanciamento.
(...)É verdade que a escola eliminou perfis culturais muito ricos. Os imigrantes entregaram seus filhos à escola, onde estes perderam a língua e a cultura de seus pais e encontraram somente a língua do novo país. Essa imposição, no entanto, também os convertia em cidadãos e não em membros de guetos étnicos onde as diferenças culturais permanecem inatas, assim como a desigualdade entre nacionais e estrangeiros, entre membros de diferentes religiões ou diferentes etnias. AS escola passava uma lixa de aço, mas em compensação, sobre a tábula rasa de uma brutal conversal das culturas de origem, depositava saberes que eram indispensáveis não somente para a formação de mão-de-obra capitalista, mas também para o estabelecimento das modalidades letradas da cultura operária, dos sindicatos e das intervenções na luta política."
Beatriz Sarlo Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997 pp.115-117
"Em nossa opinião, o que se perdeu nessas críticas antiinstitucionais e antiautoritárias é o fato de que é sempre necessária uma ordem, porque esta é a condição da sociedade, e uma autoridade que a organize, desde que a pense como um fluxo mais dinâmico de movimentos, ou como uma posição muito mais aberta, rotativa, com mecanismos de controle público muito mais claros. Alguém pode - e, segundo Derrida, se pode, deve - pensar em outros tipos de ordens que contenham o paradoxo da autoridade e da liberdade em outra equação, que não subordine a segunda nem desfaça a primeira. (...)
“Aqueles que se insurgem contra os efeitos de dominação exercidos através do emprego da língua legítima costumam chegar a uma espécie de inversão da relação de força simbólica e acreditam agir bem ao consagrar a língua dominada – por exemplo, em sua forma mais autônoma, isto é, a gíria. [...] Aquilo que é chamado de ‘língua popular’ são modos de falar que, do ponto de vista língua dominante, aparecem como naturais, selvagens, bárbaros, vulgares. E aqueles que, por uma preocupação de reabilitação, falam de língua ou de cultura populares são vítimas da lógica que leva os grupos estigmatizados a reivindicar o estigma como signo de sua identidade.Forma distinta da língua ‘vulgar’ – aos próprios olhos de alguns dos dominantes –, a gíria é produto de uma busca de distinção, porém dominada [...]. Quando a busca de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo mesmo em nome do que eles são dominados e constituídos como vulgares, deve-se falar de resistência? [...] Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se esforçam por perder aquilo que os marca como ‘vulgares’ e se apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão? Acho que essa é uma contradição insolúvel: é uma contradição que está inscrita na própria lógica da dominação simbólica [...]. A resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora.”
Pierre Bourdieu “Os usos do ‘povo’.” in Coisas ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990 pp. 186-187
Feita esta breve introdução segue abaixo uma série de fragmentos de escritos sobre educação. Em comum, possuem certa visão na contracorrente do discurso dominante, de teor psicologizante, imposto de cima para baixo, mais preocupado com a forma do que com conteúdos, populista, agressivo quanto a identidade e autonomia do professor... Eles falam por si. Espero que sirvam como inspiração para leituras e pesquisas mais profundadas. Foram lidos em momentos diferentes de minha formação intelectual. Tendo a concordar com boa parte. Minhas ressalvas e contribuições mais detalhadas ficam para uma segunda e terceira partes.
As imagens que ilustram as reflexões são de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779), pintor do barroco francês. Momento crítico para a elaboração das ideias que constituem nossa contemporaneidade. Especializou-se sobretudo em temas do cotidiano burguês. Algumas pinturas remetem a processos educativos, da infância burguesa e nobre. Suas telas exibem personagens mergulhados numa tranquilidade e concentração que faltam muito ao jovem corpo discente de hoje.
“(...)Desde então, a injunção metodológica de 'partir da realidade do aluno' transformou-se em verdadeira profissão de fé, desmesurada e inquestionável, como todas as proclamações do gênero. A fórmula não deixa de comportar, no entanto, seus graus de mistificação: entendida como princípios políticos de valorização epistemológica, ela dá origem a um voluntarismo que jamais chega a fazer suas provas de realidade; como preceito de atuação sócio-pedagógica; ela enclausura a identidade coletiva na simples reiteração; como estratégia didática, ajuda a promover a crença numa antropologia da incapacidade do outro se deixar motivar pela diferença. Porém, mais do que tudo, a própria ideia de 'partir da realidade do aluno' comporta uma falácia lógica evidente, somente sustentada pela suposição de um mestre que conhece antecipadamente e melhor do que o próprio aluno qual é sua realidade."
Lilian do Valle “Pedra de tropeço: a igualdade como ponto de partida” in Educação & Sociedade , vol 24, n.82, Abril 2003 pp. 263-264
"A expressão 'verdades acabadas' não é descritiva, é valorativa. Além disso, há certa incoerência no uso dessa expressão: a certeza de que essas verdades por serem 'acabadas' impedirão as pessoas de passar sobre elas e com isso criticá-las, superando o seu dogmatismo. Lembremos o adágio baconiano: 'A verdade surge mais facilmente do erro que da confusão.'
[sobre a "escola tradicional", que o autor considera como] "(...) Categoria discursiva tomada como dado da realidade. Fica-nos sempre a impressão; quando ouvimos alguém falar ou lemos alguma coisa, particularmente de Paulo Freire e congêneres, sobre a "escola tradicional"; que se trata muito mais de um tipo ideal na acepção weberiana do termo, um instrumento de grande poder heurístico, mas não verificável empiricamente (no caso em questão seria melhor dizer erístico)."
Amaury César Moraes Uma Crítica da Razão Pedagógica. Doutorado em Educação. FE-USP, 1997 pp.67-68
"A expressão 'verdades acabadas' não é descritiva, é valorativa. Além disso, há certa incoerência no uso dessa expressão: a certeza de que essas verdades por serem 'acabadas' impedirão as pessoas de passar sobre elas e com isso criticá-las, superando o seu dogmatismo. Lembremos o adágio baconiano: 'A verdade surge mais facilmente do erro que da confusão.'
[sobre a "escola tradicional", que o autor considera como] "(...) Categoria discursiva tomada como dado da realidade. Fica-nos sempre a impressão; quando ouvimos alguém falar ou lemos alguma coisa, particularmente de Paulo Freire e congêneres, sobre a "escola tradicional"; que se trata muito mais de um tipo ideal na acepção weberiana do termo, um instrumento de grande poder heurístico, mas não verificável empiricamente (no caso em questão seria melhor dizer erístico)."
Amaury César Moraes Uma Crítica da Razão Pedagógica. Doutorado em Educação. FE-USP, 1997 pp.67-68
“Existe escola em algumas sociedades e particularmente na nossa... Dizer que a escola existe é, na verdade, dizer somente: numa sociedade existem saberes e estes últimos são transmitidos por um corpo especializado em um lugar especializado. Falar da escola é falar de quatro coisas: (1)dos saberes; (2) dos saberes transmissíveis; (3)dos especialistas encarregados de transmitir esses saberes; (4)de uma instituição reconhecida, tendo como função colocar em presença, de uma maneira regulada, os especialistas que transmitem e os sujeitos a quem se transmite. Cada uma dessas quatro coisas é necessária, de modo que é negação da existência da escola negar uma dessas quatro coisas; da mesma maneira que é querer o desaparecimento da escola querer, por alguma razão, boa ou má, o cessar de uma ou outra dessas coisas.... Assim, não é dizer que todos os saberes são transmissíveis; não é nem mesmo dizer que todos os saberes transmissíveis são ou devem ser transmitidos pela escola; não é dizer que os especialistas encarregados da transmissão sabem tudo que há para saber em geral e nem mesmo que eles sabem tudo que há para saber do saber que eles transmitem.Sem dúvida, sempre se pode acrescentar outras determinações às quatro essenciais. Por exemplo, pode-se desejar que a escola faça feliz, que contribua à boa saúde física e moral, que ela permita um uso racional do telefone ou da televisão etc. Não há nada a dizer sobre isso desde que se lembre de que se trata aí de finalidades secundárias, de benefícios adicionais: querer transformá-los em finalidades principais e em beneficios maiores é, em realidade, renunciar às determinações essenciais. É, portanto, querer o fim da escola.”
Jean-Claude Milner, 1984, apud Marília Amorim "A escola e o terceiro excluído." in Revista de Psicologia e Psicanálise. Instituto de Psicologia da UFRJ, n.1-1989 pp.81-82
"Em defesa dos professores cabe dizer que nunca foi fácil ensinar. Nunca foi fácil por um motivo muito simples: o professor tem por missão ensinar, que é meio, para o objetivo de levar o aluno a aprender, que é a finalidade última da escola. E esse objetivo depende do desejo dos alunos. Não se pode exercer essa profissão sem o engajamento do outro, sem seu desejo e mobilização, sem o uso em-si e para-si do conhecimento. E tal fato descarta a educação da possibilidade, em última análise, de controle absoluto. Educa-se num sentido, o resultado nunca é exatamente aquele esperado: pais e professores sabem disso. Não se pode obrigar o desejo. Pode-se sim, incitar, multiplicar sinais e apelos, preparar uma aula interessante, já se sabe que a relação do professor com o conhecimento exerce efeitos sedutores, etc. Mas definitivamente, parte do aluno, como sujeito, o colocar-se ou não em movimento em direção ao saber.
As palavras de Freud sobre as três missões impossíveis - governar, educar, analisar - apontam justamente para o paradoxo compartilhado por essas três profissões: a existência de um poder que se exerce sobre alguém, e o fato desse poder ser completamente nulo a não ser que o outro faça o trabalho essencial. A tarefa fundamental da escola é aprender e o poder de colocar alguém no lugar de professor, no fundo, é do aluno. Educar como missão impossível tornou-se, aliás, tema quase obrigatório, em diferentes versões e desdobramentos, nos escritos de psicanalistas ligados à educação. Se essas análises esclarecem aspectos do limite, da impossibilidade colocada pela presença do inconsciente, a insistência em evidenciar alguma coisa universal, comum a todos, retira da escuta de psicólogos e analistas a particularidade dos limites contemporâneos. O que há de novo e peculiar das limitações dos professores é que ela se expressa pela depressão, isto é, pela perda da palavra, da ação e da iniciativa, novos ingredientes que a pós-modernidade adicionou a essa velha impossibilidade."
Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza "Depressão em Profesores e Violência Escolar." in NOTANDUM - Ano XI - N. 16 jan-jun 2008 p. 20
"Na atualidade assistimos um inflacionamento das criações pedagógicas. Nunca como hoje deve ter havido tantos cursos de psicopedagogia. Nunca como hoje devem ter-se produzido tantas dissertações e teses 'preocupadas com a educação'. No entanto nunca como hoje alguém pode até chegar à própria universidade carregando escassos conhecimentos escolares, bem como carecendo de toda disciplina intelectual."
Leandro de Lajonquière "(Psico)Pedagogia, Psicanálise e Educação. Uma aula introdutória." in Estilos da Clínica, ano III, número.5, 2. semestre de 1998 pp.112-113
"A aquisição de uma cultura comum (ideal democrático que pode ser reinventado com um sentido de maior pluralismo e respeito às diferenças, mas que não deveria ser desprezado) supõe uma série de processos de recorte e não simplesmente de continuidade frente ao cotidiano. Aprende-se o que não se sabe: esta simples idéia nos obriga a considerar outras. Em primeiro lugar, que a fonte de um patrimônio simbólico não está somente naquilo que os sujeitos receberam e entenderam como próprio (através da cultura vivida, familiar, étnica ou social) e sim naquilo que transformarão em material conhecido através de um processo que implica, na mesma apropriação, uma dificuldade e um distanciamento.
(...)É verdade que a escola eliminou perfis culturais muito ricos. Os imigrantes entregaram seus filhos à escola, onde estes perderam a língua e a cultura de seus pais e encontraram somente a língua do novo país. Essa imposição, no entanto, também os convertia em cidadãos e não em membros de guetos étnicos onde as diferenças culturais permanecem inatas, assim como a desigualdade entre nacionais e estrangeiros, entre membros de diferentes religiões ou diferentes etnias. AS escola passava uma lixa de aço, mas em compensação, sobre a tábula rasa de uma brutal conversal das culturas de origem, depositava saberes que eram indispensáveis não somente para a formação de mão-de-obra capitalista, mas também para o estabelecimento das modalidades letradas da cultura operária, dos sindicatos e das intervenções na luta política."
Beatriz Sarlo Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997 pp.115-117
"Tratar de não confundir cultura culta [ou seja, cultura elaborada, erudita, distinta da dita 'cultura popular' e a cultura massificada] com a cultura dominante. Vimos que ao lado dos saberes normalizados, existem saberes não totalmente disciplinados. Isto quer dizer que, embora as instituições escolares desempenhem de fato funções de submetimento, elas podem desempenhar também funções libertadoras. Nelas é possível, como se demonstra cotidianamente, transmitir a paixão pelo conhecimento, ainda que seja em menor medida do que o desejável." (...) "As pedagogias renovadoras são, em geral excessivamente psicológicas. Ao se opor simplesmente às tradicionais, correm o perigo de reivindicar uma cultura, também construída, das classes populares, excessivamente vinculada ao criativo, ao concreto ao local e ao prático. Podem deste modo encerrar os filhos das classes mais desfavorecidas numa espécie de realismo concreto, negando-lhes o acesso à cultura culta, a determinados saberes, e provocar assim os efeitos menos desejados: impedir-lhes de escapar a sua condição de sujeitos submetidos."
Julia Varela "O estatuto do saber pedagógico." in O sujeito da educção. Tomaz Tadeu da Silva(org.) Petrópolis:Vozes,1994 pp.95-96
"Em nossa opinião, o que se perdeu nessas críticas antiinstitucionais e antiautoritárias é o fato de que é sempre necessária uma ordem, porque esta é a condição da sociedade, e uma autoridade que a organize, desde que a pense como um fluxo mais dinâmico de movimentos, ou como uma posição muito mais aberta, rotativa, com mecanismos de controle público muito mais claros. Alguém pode - e, segundo Derrida, se pode, deve - pensar em outros tipos de ordens que contenham o paradoxo da autoridade e da liberdade em outra equação, que não subordine a segunda nem desfaça a primeira. (...)
Sem um ordenamento simbólico e jurídico que nos "nomeie" e nos estruture em nossas relações com os outros, não há subjetividade, nem tampouco temos a possibilidade de contestar e discutir essa posição. Assim como o indivíduo necessita de outro que o nomeie e o situe em uma série ou rede exterior a si mesmo, para sair da indeferenciação na qual não existe nem ele nem o mundo, também na sociedade é necessária certa normatividade que estabeleça posições e procedimentos. Certamente não estamos defendendo, como fazia Durkheim, posições 'destinadas' para cada um, pobres e ricos, e outros; pelo contrário, acreditamos que tais suposições e tais procedimentos deveriam estar muito mais sujeitos a questionamentos e a modificações do que de fato estão, e que o desafio de pensar uma autoridade democrática implica, em primeiro lugar, poder conter as duas questões: construir uma certa ordem que esteja, ao mesmo tempo, aberta e disposta à crítica e a transformação."
Inés Dussel e Marcelo Caruso A invenção da sala de aula. Uma genealogia das formas de pensar. São Paulo: Moderna,2003 pp.232-233
“Aqueles que se insurgem contra os efeitos de dominação exercidos através do emprego da língua legítima costumam chegar a uma espécie de inversão da relação de força simbólica e acreditam agir bem ao consagrar a língua dominada – por exemplo, em sua forma mais autônoma, isto é, a gíria. [...] Aquilo que é chamado de ‘língua popular’ são modos de falar que, do ponto de vista língua dominante, aparecem como naturais, selvagens, bárbaros, vulgares. E aqueles que, por uma preocupação de reabilitação, falam de língua ou de cultura populares são vítimas da lógica que leva os grupos estigmatizados a reivindicar o estigma como signo de sua identidade.Forma distinta da língua ‘vulgar’ – aos próprios olhos de alguns dos dominantes –, a gíria é produto de uma busca de distinção, porém dominada [...]. Quando a busca de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo mesmo em nome do que eles são dominados e constituídos como vulgares, deve-se falar de resistência? [...] Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se esforçam por perder aquilo que os marca como ‘vulgares’ e se apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão? Acho que essa é uma contradição insolúvel: é uma contradição que está inscrita na própria lógica da dominação simbólica [...]. A resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora.”
Pierre Bourdieu “Os usos do ‘povo’.” in Coisas ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990 pp. 186-187
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
Paradise Lost - "As Horizons End"
sábado, 15 de agosto de 2009
Sete Bandas Gregas de Heavy Metal
Os gregos antigos abominavam a desmesura, ou seja, tudo que contrariava a busca do equilíbrio apolíneo ,das linhas harmônicas, na estética e na moral. A atitude mais reprovável que um grego podia cometer era denominada hybris, falta de equilíbrio, que compreendia orgulho exarcebado, presunção, arrogância, o fato de desejar mais daquilo que lhe foi concedido pelo destino. Ideal era buscar a areté, que significa mérito ou qualidade pelo qual algo ou alguém se mostra excelente.
Estas virtudes também estão presentes na contribuição dos gregos para a música pesada.
Abaixo estão sete bandas gregas de heavy metal, na ordem de descobrimento, ou seja, a primeira banda grega que conheci foi o Varathron, com o álbum abaixo. A mais recente é o Zemial, com o álbum In Monumentum, que é o único que conheço até agora, aliás excelente. A excelência serviu de guia para as escolhas, qualidade sonora e beleza das capas. O estilo predominante é o Death / Black Metal, com elementos Doom e Gothic. Som extremo que envolve excelente trabalho das guitarras e das baterias unido ao violão acústico e nos arranjos, coros e instrumentos étnicos do Mediterrâneo e Oriente Médio. Essa mestiçagem parece ser a marca do metal grego. Ecos profundos do Bathory são ouvidos na Theogonia do Rotting Christ, nos álbuns de Kawir, Varathron e Zemial. Influência também sentida em Astarte, Nightfall e Septic Flesh. Este último realiza experimentos com música erudita e a eletrônica/industrial em seus trabalhos. Salvo engano, o Nightfall parece ter encerrado atividades. I am Jesus é o seu melhor disco. Sirens consolidou o death/black sinfônico das mulheres do Astarte, lideradas por Tristessa.
A temática seguida é formada por temas mitológicos, épicos, crítica religiosa, terror lovecraftiano e aspectos sombrios da condição humana. Enorme poder de evocação de climas arcaicos, oníricos, paisagens do Mediterrâneo e Oriente antigos, quando a humanidade era mais jovem, áspera e ao mesmo tempo idealizadamente pura. Juntamente como a música medieval/renascentista e barroca constitui a minha trilha sonora para quando sou acometido de tristeza, dor, desespero ou aborrecimentos da faina diária.
VARATHRON - Walpurgisnacht [1995]
ASTARTE - Sirens [2004]
ROTTING CHRIST - Theogonia [2007]
NIGHTFALL - I am Jesus [2003]
Estas virtudes também estão presentes na contribuição dos gregos para a música pesada.
Abaixo estão sete bandas gregas de heavy metal, na ordem de descobrimento, ou seja, a primeira banda grega que conheci foi o Varathron, com o álbum abaixo. A mais recente é o Zemial, com o álbum In Monumentum, que é o único que conheço até agora, aliás excelente. A excelência serviu de guia para as escolhas, qualidade sonora e beleza das capas. O estilo predominante é o Death / Black Metal, com elementos Doom e Gothic. Som extremo que envolve excelente trabalho das guitarras e das baterias unido ao violão acústico e nos arranjos, coros e instrumentos étnicos do Mediterrâneo e Oriente Médio. Essa mestiçagem parece ser a marca do metal grego. Ecos profundos do Bathory são ouvidos na Theogonia do Rotting Christ, nos álbuns de Kawir, Varathron e Zemial. Influência também sentida em Astarte, Nightfall e Septic Flesh. Este último realiza experimentos com música erudita e a eletrônica/industrial em seus trabalhos. Salvo engano, o Nightfall parece ter encerrado atividades. I am Jesus é o seu melhor disco. Sirens consolidou o death/black sinfônico das mulheres do Astarte, lideradas por Tristessa.
A temática seguida é formada por temas mitológicos, épicos, crítica religiosa, terror lovecraftiano e aspectos sombrios da condição humana. Enorme poder de evocação de climas arcaicos, oníricos, paisagens do Mediterrâneo e Oriente antigos, quando a humanidade era mais jovem, áspera e ao mesmo tempo idealizadamente pura. Juntamente como a música medieval/renascentista e barroca constitui a minha trilha sonora para quando sou acometido de tristeza, dor, desespero ou aborrecimentos da faina diária.
VARATHRON - Walpurgisnacht [1995]
ASTARTE - Sirens [2004]
ROTTING CHRIST - Theogonia [2007]
NIGHTFALL - I am Jesus [2003]
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
Pascal
"A maior baixeza do homem é a busca da glória, mas este é também o maior sinal de sua excelência; pois, não importa as posses que tenha na terra, a saúde e a comodidade essencial que possua, ele não estará satisfeito se não for estimado pelos homens. Julga tão grande a razão do homem que, mesmo tendo alguma vantagem na terra, não estará contente se não estiver vantajosamente situado também na razão do homem. É o mais belo lugar do mundo, nada pode desviá-lo desse desejo, e essa é a qualidade mais indelével do coração humano.
E os que mais desprezam os homens, e os igualam aos animais, também querem ser admirados e acreditados por isso, e contradizem-se a si mesmos por seu próprio sentimento; sua natureza, que é mais forte que tudo, os convence da grandeza do homem mais fortemente que a razão os convence de sua baixeza."
Fonte: Blaise Pascal Pensamentos sobre a Política. tradução:Paulo Neves São Paulo:Martins Fontes, 1994 pp.18-19,28,52.
E os que mais desprezam os homens, e os igualam aos animais, também querem ser admirados e acreditados por isso, e contradizem-se a si mesmos por seu próprio sentimento; sua natureza, que é mais forte que tudo, os convence da grandeza do homem mais fortemente que a razão os convence de sua baixeza."
"O homem é visivelmente feito para pensar; é toda a dignidade e todo o seu mérito; e seu dever é pensar corretamente. Ora, a ordem do pensamento é começar por si, e por seu autor e sua finalidade.
Mas em que pensa o mundo?Jamais nisso, mas em dançar, em tocar alaúde, em cantar, em fazer versos, em passear para se distrair, etc., em combater, em tornar-se rei, sem pensar no que é ser rei, e no que é ser homem."
"Justiça, força - É justo que o que é justo seja seguido, é necessário que o que é mais forte seja seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força será contestada, porque há sempre homens maus.; a força sem a justiça será acusada. é preciso, pois, reunir a justiça e a força, fazendo com que o que é justo seja forte, ou que o que é forte seja justo.
A justiça está sujeita à disputa, a força é muito reconhecível e sem disputa. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força contestou a justiça dizendo que era injusta e que ela, a força, é que era justa. Desse modo, não se podendo fazer que o que é justo fosse forte, fez-se que o que é forte fosse justo."
Mas em que pensa o mundo?Jamais nisso, mas em dançar, em tocar alaúde, em cantar, em fazer versos, em passear para se distrair, etc., em combater, em tornar-se rei, sem pensar no que é ser rei, e no que é ser homem."
"Justiça, força - É justo que o que é justo seja seguido, é necessário que o que é mais forte seja seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força será contestada, porque há sempre homens maus.; a força sem a justiça será acusada. é preciso, pois, reunir a justiça e a força, fazendo com que o que é justo seja forte, ou que o que é forte seja justo.
A justiça está sujeita à disputa, a força é muito reconhecível e sem disputa. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força contestou a justiça dizendo que era injusta e que ela, a força, é que era justa. Desse modo, não se podendo fazer que o que é justo fosse forte, fez-se que o que é forte fosse justo."
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Resenha do livro O Roubo da História, de Jack Goody.
Inicio aqui uma série de postagens sobre autores e livros que foram muito importantes em minha formação de historiador. Conheci alguns no final da adolescência, quando estava meio indeciso entre cursar História ou Biologia. Outros quando cursava História na FFLCH-USP, seja por sugestão dos professores, menção em algum texto ou ao acaso, revirando a biblioteca. Não endosso tudo que eles escreveram, porém são as matrizes com as quais aprendi a pensar e a interpretar o real. Sou relativamente eclético quanto às leituras, desde que seja material bem elaborado. Um conservador pode transmitir um grande ensinamento para mim, enquanto um progressista pode emitir grande asneira, constituindo uma perda de tempo, e vice-versa. Naturalmente abomino racistas, nazifascistas, antisemitas, literatura de auto-ajuda e fanáticos cientificistas e religiosos... Convivem em minha estante, com civilidadade, marxistas, liberais, filósofos analíticos, evolucionistas e culturalistas, freudianos e anti-freudianos, católicos, protestantes, pagãos, ateus e budistas.
Nascido em Londres no ano de 1919, o antropólogo e historiador britânico Jack Goody é, ao lado de Claude Levi-Strauss, Edgar Morin, Eric Hobsbawm, Rene Girard entre outros, um grandes cientistas sociais ainda vivos. Iniciou sua formação estudando literatura inglesa na Universidade de Cambridge, onde foi colega de E. P. Thompson, E. J. Hobsbawm e Raymond Williams. Seu interesse pela antropologia começou quando foi combatente na Segunda Guerra Mundial, lutando no deserto africano. Feito prisioneiro de guerra, passou por campos de internamento no Oriente Médio, Itália e Alemanha, travou contato com a diversidade humana, convivendo com beduínos, prisioneiros de guerra indianos, sul africanos, americanos e russos, com camponeses italianos, durante seis meses, numa de suas fugas. No campo de prisioneiros alemão de Eichsttat, que possuia uma biblioteca, Goody conheceu duas obras clássicas que marcariam sua formação intelectual: "O Ramo de Ouro" do antropólogo Sir James Frazer (1854-1941) e "O que aconteceu na História" do arqueólogo australiano V. Gordon Childe (1892-1957). Trabalhou com educação de adultos durante certo tempo. Este conjunto de experiências e leituras fizeram-no repensar seus interesses intelectuais. Com o fim da guerra, retornou à Universidade, trocando os estudos literários pela faculdade de arqueologia e antropologia. Foi aluno de Evans-Pritchard e Meyer Fortes, sucedendo este último como professor de antropologia em Cambridge. Estes dois mestres foram profundamente importantes para sua concepção de pesquisa antropológica indissociavelmente ligada à História, no caso de Pritchard. De Meyer Fortes veio o interesse pela dimensão psicológica da vida social, pela economia e o estudo do grupo doméstico e seu ciclo de desenvolvimento. Vale ressaltar o peso de Marx, Weber e Freud na constituição de seu pensamento.Sua vasta obra se desdobra em estudos sobre os efeitos do processo de letramento sobre as sociedades humanas, através da abordagem comparativa entre a Grécia Antiga, Mesopotâmia e África do século XX. Esta análise comparativa dos impactos da cultura letrada se desenvolve então, através do estudo de quatro parâmetros: religião, economia, administração e direito. Também são fundamentais seus estudos sobre História da Herança e da Família, do casamento e do amor romântico, da arte culinária e os processos de estratificação social entre outros temas. Disponíveis em português estão os seguintes títulos: A Domesticação do Pensamento Selvagem (Presença, 1988), A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade (Edições 70, 1991), As consequências do Letramento (em co-autoria com Ian Watt, Editora Paulistana, 2008), O Oriente no Ocidente (Difel), O Oriental, o Antigo e o Primitivo (Edusp, 2008) e finalmente o objeto deste ensaio, O Roubo da História (Contexto,2008).
O antropólogo entende que o "roubo" ou, mais elegantemente, "apropriação", foi o fato dos europeus escreverem sobre sua história e a do restante da humanidade a partir de seu ponto de vista, que enfatiza a excepcionalidade do Ocidente no tocante a criação da valores como a democracia, a defesa da liberdade, a igualdade de direitos, bem como instituições como as universidades e mesmo sentimentos como o "amor romântico" e o individualismo. Dessa maneira os europeus afirmam sua superioridade cultural e dão pouca atenção às realizações de outras sociedades, mais precisamente da Ásia e Oriente Próximo, que também desenvolveram estes conceitos. Goody tem por objetivo derrubar esta muralha etnocêntrica e mostrar que a Europa e a Ásia possuem pontos em comum, entretanto, sem abdicar a constatação de diferenças e particularides construídas ao longo do processo histórico.
Embora, numa primeira leitura, suas hipóteses e proposições causem muita estranheza ao leitor, isto é encontrar Capitalismos, Renascimentos, Processos de Modernização em outor lugares que não a Europa, não se trata de um texto planfetário, nutrido em atitudes de ressentimento e sentimentalismo politicamente correto. É o resultado de mais de 60 anos de leituras, pesquisa, rigor empírico e conceitual. Uma escrita densa e acessível (contanto que o leitor possua alguns conhecimentos básicos em história e ciências sociais).
Logo de início o autor não está interessado em fazer um tribunal histórico pois , muito ponderado, enuncia: "se a Europa não inventou o amor, a democracia, a liberdade e o capitalismo de mercado, ela também não inventou o etnocentrismo", ademais "essa tendência etnocêntrica é extensão de um impulso egocêntrico na base de grande parte da percepção humana e se realiza pelo domínio de fato de muitas partes do mundo" (1)
Boa parte dos capítulos do livro originaram-se de conferências. Acredito que após a leitura da introdução, seus capítulos podem ser lidos numa ordem aleatória, sem prejuízo da compreensão do todo, pois Jack Goody retoma várias vezes as idéias principais, esclarece algum ponto mais obscuro... Lamentavelmente inexistem índices de nomes,
O Roubo da História está dividido em três partes:
Na primeira parte "Uma Genealogia Sociocultural" o antropólogo estabelece quatro procedimentos para combater as visões etnocêntricas: 1. postura cética quanto a exclusividade européia na invenção de instituições e valores como a democracia ou liberdade, 2. estudar a história a partie da base (e não do presente) (2), 3. dar a importância devida ao passado não europeu e, 4. ter em mente "que até mesmo a espinha dorsal da historiografia - a localização dos fatos no tempo e no espaço - é variável, objeto de construção social, por isso sujeita a mudança." (3)
Goody discute as diferentes formas de calcular o tempo nas sociedades com (e também sem) escrita e a concepção de que o conceito linear seria criação da sociedade ocidental. Há que se diferenciar linearidade temporal de "progresso". Goody demonstra que existiam noções de linearidade em culturas orais, coexistindo junto com o tempo circular. Assim como as concepções de espaço e periodização histórica que também seguem padrões europeus. esta padronização foi-se estabelecendo com a conquista européia (processo de longa duração iniciado com as viagens de "descobrimento" e consolidada com a revolução industrial e o imperialismo do sec XIX).
O noção de "Antiguidade" também deve ser revista e, possivelmente ampliada. O "etapismo" de sociedade arcaica, Antiguidade, Feudalismo, Renascença e Capitalismo foi apropriado pelos europeus, pois outras sociedades passaram por processos semelhantes (4). A partir do conceito de "Revolução Urbana" (de V. Gordon Childe) Jack Goody trata do desenvolvimento paralelo, comercial e cultural, das sociedades da Mesopotâmia, Egito, Crescente Fértil e China. Existiam intercâmbios culturais, comerciais, relações diplomáticas tanto dentro destas sociedades como entre elas. Discute os limites de análises influentes como a de Moses Finley quanto a economia e democracia gregas. Desse modo a primazia dos gregos como inventores da democracia fica abalada, o que não significa menosprezo ao seu legado.
A segunda parte: "Três Perspectivas Acadêmicas" dedica-se à leitura crítica das obras de três grandes cientistas sociais: o biólogo e historiador da ciência Joseph Needham, que possui uma obra monumental lamentavelmente inédita em português chamada Science e Civilization in China (1954); o sociólogo alemão Norbert Elias e o historiador francês Fernand Braudel. Respectivamente são abordadas o desenvolvimento paralelo da ciências na Europa e na China até que no século XVI o Velho Mundo tomou a dianteira, enquanto a China teria estagnado.
Na minha opinião os juízos mais severos foram direcionados para Norbert Elias. Goody pretende demonstrar que falta rigor teórico e metodológico nas análises do sociólogo em relação ao processso civilizatório, que seria específico da socieda européia de fins da Idade Média e Renascimento. Processo fundamentado no controle comportamental, formação e centralização do Estado (e consequente monopólio da violência). Elias desconhecia pesquisas sobre culturas africanas e asiáticas, impossibilitando um trabalho comparativo mais consistente. Goody observa que estas sociedades possuíam controles e interditos quanto à sexualidade, uso da violência, ou sejs possuiam "regras de etiqueta" comparávéis aos europeus da Idade Moderna. O mais grave é que o sociologo alemão estaria alicerçado numa concepção de civilização do século XIX europeu, com todas as suas mazelas que são objeto de crítica de Jack Goody.
A obra de Braudel padece das mesmas vicissitudes: o capitalismo estaria plenamente estruturado na Europa Ocidental, enquanto estaria "travado" na Ásia após período de florescimento. Embora a Revolução Industrial européia estaria intimamente ligada aos desdobramentos da economia asiática, fatos que são muito obbscurecidos. Numa argumentação provocativa Goody questiona se o termo "capitalismo" deveria continuar a ser usado (5)
Finalmente a terceira parte "Três Instituições e Valores" trata das cidades, universidades, valores como igualdade, liberdade, individualismo e sentimentos como o amor. Naturalment os europeus reivindicam exclusividade ou, na melhor das hipóteses, fizeram um "trabalho melhor" nestes campos. Novamente existem similitudes e, as cidades européias possuem mais pontos de semelhança com as asiáticas do que pensa a vã filosofia. Algo parecido ocorre com as instituições de ensino superior, embora no Oriente pareça existir, em certas épocas, maior vigilância dos poderes religiosos quanto ao trabalho docente e liberdade de pensamento.
Quanto aos valores humanitários, individualismo,igualdade, liberdade, eles também estão presentes no pensamento muçulmano, hindu e budista. Evidentemente seguindo seus próprios parâmetros. Sociedades letradas, orais e não letradas da África e da Ásia promovem práticas que podemos considerar democráticas, onde existem participação e decisões compartilhadas em assembléias, rotatividade no poder etc. No tocante ao amor romântico, entendido como liberdade de escolha entre os parceiros, não foi uma invenção da Idade Média européia, ele pode ser encontrado na poesia romana (Catulo entre outros), na poesia árabe, indiana, japonesa e chinesa. No entanto, etnocentrismos à parte, observo que a situação das mulheres no Oriente contemporâneo não parece estar longe do ideal. Algo observado não apenas por ocidentais(6). Há que se questionar se este amor foi plenamente realizado tanto no Ocidente como no Oriente, algo a ser pensado com mais cuidados.
Jack Goody faz menção a um "desejo universal por representação" que, à revelia das elites e pressão do grupo social, é inerente à condição humana. Uma necessidade de se fazer ouvir que ultrapassa configurações sociais, no tempo e no espaço. Ideia interessante mas que não é muito bem delineada neste livro. Seria interessante comparar os conceitos de razão e verdade empregados pelos filósofos do ocidente e suas semelhanças e diferenças com relação à contrapartida oriental. Entretanto a Filosofia não parece ser terreno muito firme para Jack Goody, tão erudito em outros campos. Igualmente, elementos de teologia e história das religiões deveriam ser mais apurados. Por fim, algumas reflexões sobre a história contemporânea mais imediata, sobremaneira questões relacionadas à situação do Oriente Médio, parecem reiterar alguns lugares-comuns da mídia e da academia, parecendo ter sido escritos no calor do momento, com pouco distanciamento crítico. Mas estas questões ficam para serem comentadas em outra oportunidade.
O que tentei sintetizar é apenas uma pequena amostragem da riqueza de conteúdo deste livro, tal é a variedade de temas, subtemas e autores citados e comentados. É de se lamentar que muitos de seus interlocutores não estejam disponíveis em português. Ponto negativo é a falta de índices temático, de nomes e localidades.
Portanto, não se trata de um panfleto anti-ocidente, embora possa ser instrumentalizado neste sentido, segundo uma leitura estreita e superficial (tão arbitrária quanto a do eurocentrismo), seu autor não pretende começar do zero e se arvorar em monopolizador da verdade. Afinal, se o Ocidente não criou todos os benefícios da humanidade, divide com o resto do mundo a miséria humana.
Afinal, existe uma grande diferença entre criticar o eurocentrismo e todas as conseqüências espúrias que ele proporcionou e desqualificar conquistas civilizatórias da cultura ocidental como um todo. Nosso passado não foi um conto de fadas, mas é o nosso passado. Somos resultado de séculos de elaborações intelectuais, conflitos simbólicos e materiais. Destruição e esclarecimento são irmãos muito unidos. Cabe a nós compreender esta complexa herança. Apreender e reelaborar o que for preciso. Desprezar, nunca.
Predomina uma espécie de renúncia civilizatória, como se devêssemos nos envergonhar de nosso passado. Um legítimo diálogo de civilizações se faz com uma apropriação lúcida de nosso legado de milênios e séculos, sem chauvinismos, ressentimentos e idealizações.
Enfim um fabuloso trabalho de erudição e síntese. Todavia suas proposições demandam refinamento teórico e uma leitura tão crítica quanto a que ele inflige aos seus interlocutores.
Link para uma bela entrevista do antropólogo britânico está aí embaixo.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832004000200013&script=sci_arttext
Notas:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832004000200013&script=sci_arttext
Notas:
1- O Roubo da História, p.23
2- Item polêmico sem dúvida. Seria igualmente uma prevenção contra o anacronismo?
3- op. cit, p.24. A meu ver, nomear, classificar, diferenciar e hierarquizar constituem características cognitivas humanas básicas e irreprimíveis. Temos que atentar para os pressupostos e consequencias destas operações que efetivamos. Nota-se o equilíbrio do autor, o passado existiu, vários aspectos deste passado podem ser conhecidos por nós, mas o conhecimento histórico é construído socialmente, ou seja, suas categorias estão sujeitas à releituras, confrontação de perspectivas diversas, revisões mais ou menos profundas, mas, sempre seguindo critérios científicos rigorosos. Não há uma defesa de relativismo e subjetivismo metodológicos. Portanto existem critérios de verdade e objetividade, o que afasta o autor do relativismo extremo dos pós-modernos. Ele acha pertinente a existência e manutenção de grandes narrativas.
4- Vale salientar que Jack Goody é evolucionista, acredita em certas constantes do comportamento individual e social humanos. O que não é demérito algum. O fato é que o evolucionismo na antropologia passou (e ainda passa) por grande descrédito. Em muito contribuíram suas leituras racistas, o equivocado "predomínio do mais forte", a eugenia etc. Certamente há resistências de quem trabalha com ciências humanas em dialogar com teorias evolucionidas, mesmo mais lapidadas e reconfiguradas, purificadas das apropriações nocivas de que foram objeto no passado.
5-Goody parece mais interessado em apreender processos e não ficar apegado à rigidez dos conceitos.
6-Questão complicadíssima. Uma voz forte é a da escritora somali Ayaan Hirsi Ali, autora de Infiel e A virgem na jaula. O número de autoras de origem muçulmana, criticando o tratamento que o Islã concede à mulher é considerável. Seja propondo outra leitura da tradição, purificada do fundamentalismo. Também extremamente importante é o livro Minha Briga Com O Islã de Irshad Manji. Outras autoras, adotanto ideias "ocidentais"(?), chegando a renegar sua tradição, ou mesclando conceitos da modernidade européia com ideais da tradição intelectual islâmica. Este assunto não é muito confortável para os multiculturalistas do ocidente, como podemos notar nesta entrevista, insatisfatória de meu ponto de vista, da antropóloga brasileira Denise Bandeira a respeito das críticas de Ayaan ao multiculturalismo [ver este link http://www.ufrgs.br/comunicacaosocial/jornaldauniversidade/111/pagina10.htm ]
Lembro que, em um dos ensaios do livro Em Defesa da História: Marxismo e Pós-modernismo, organizado por Ellen Meiksins Wood e John Bellamy Forsters, a bióloga indiana Meera Nanda falando das vicissitudes das mulheres de seu país em querer estudar e chegar à universidade.
Assinar:
Postagens (Atom)