O mito, por vezes, tem sido abordado em sua negatividade. Dimensão a-histórica, estática. Situado no reino da ilusão, da mentira e do engano. Assim como a tradição, outro conceito confusamente considerado, seja para ser elogiada, defendida ou para ser pura e simplesmente abolida; contendo sempre a mesma carga de conservadorismo e conformismo. Não obstante estudos de historiadores e cientistas sociais(1) como Christopher Hill, E. P. Thompson, Carlo Ginzburg, Michael Taussig, Raoul Girardet, Christopher Lasch, Michael Löwy, entre outros, tem demonstrado que o mito, a tradição (religiosa, popular, de um passado distante...), bem como as narrativas fabulosas de diferentes épocas e lugares, podem também servir de fonte para projetos políticos utópicos e radicais, da contestação da ordem hegemônica, reivindicações de maior justiça social, liberdade... Reflexo de descontentamentos, dificuldades, miséria e desconforto material e psíquico. Desta forma, a tradição e as recordações positivas do passado são sempre evocadas em momentos de crise e ruptura, sendo suporte para alguns movimentos progressistas de crítica e projetos frente à situação presente.
Entendo o mito como um modo de comunicação, uma linguagem simbólica, forma de dizer as coisas de maneira indireta, conotativa, sintética, que se constitui de maneira complexa, em múltiplas e sucessivas sobreposições; mas, nem por este motivo está isento de uma historicidade, de contradições, da interdependência com processos sociais, históricos e culturais...Dessa forma, o mito é dotado de uma materialidade (e maleabilidade) pois variações nas narrativas acontecem, impulsionadas por diversas influências e condicionantes. Em resumo, o mito é uma construção social, produto de relações históricas que devem ser desentranhadas pelas operações do historiador. Como assinala o arqueólogo italiano Andrea Carandini: “Explicitar a lógica de um mito, cuja natureza aparente é frequentemente disforme, e compará-la com a lógica consequente de um acontecimento histórico é uma operação árdua, mas não inadmissível, se os mitos orientam e favorecem algumas ordens sociais, (…), poderia acontecer também o contrário. Talvez os mitos indiquem o que poderia ter acontecido, o âmbito da possibilidade / probabilidade, mas às vezes podem também ter englobado o fato de uma época, a exemplo da fundação de uma habitação. Estas verdades 'lógicas', mesmo se não 'narrativas', que os mitos podem chocar em seu seio, longe de serem inúteis ao historiador, podem ajudá-lo a entender a natureza das épocas mais longínquas.” (2)
Todavia, o mito, do mesmo modo que a ciência, a técnica e a religião, pode ser veículo de finalidades espúrias. Seria uma grande desonestidade intelectual negar ou minimizar esta condição. “Não se pode ignorar que o mito, por sua capacidade cognitiva e este potencial mobilizador é confiável instrumento para legitimar instituições, status, relações de autoridade, formas de dominação. Se a cultura é o universo das mediações de sentido, do valor, o direito à cultura é basicamente um direito à diferença. Mas o direito à diferença tem sido com frequência utilizado para eliminar a alteridade, as diferenças do outro. Que o digam as guerras santas, as purificações étnicas e os estigmas sociais. O mito pode ter como destinação a produção e, sobretudo, a reprodução de assimetrias no mundo social. Não é o mito, porém, que produz a dominação; imaginar essa vocação seria reificá-lo. São os homens, as relações que os homens estabelecem entre si que o conduzem a este rumo.” (3)
O herói também possui esta dubiedade semelhante ao mito, e, ao meu ver, talvez seja ainda mais problemático pois, de maneira geral o imaginário está centrado apenas numa pessoa.
Termo polissêmico, herói pode designar alguém que realizou feitos extraordinários, quase sobrenaturais, pessoa famosa por seus feitos guerreiros, vencendo enormes dificuldades; uma pessoa que é o centro das atenções, ou também o protagonista de uma narrativa (lendária, hagiográfica, um romance, filme, peça de teatro, ópera ou história em quadrinhos), ou finalmente o herói da vida cotidiana, que enfrenta enchentes, trânsito caótico, o tédio das filas e da burocracia ou, ainda, administra um orçamento apertado para sua sobrevivência...
Da mesma forma que o mito, o herói funciona como um referencial para a estruturação e reprodução de uma sociedade; fonte para a constituição de identidades, valores, ideais (tradições, costumes, liderança militar, mito fundador de uma comunidade ou nação), legitimação de poderes, leis e posses, garantindo assim a manutenção simbólica e imaginária das sociedades.
Desse modo o herói é aparentado e por vezes se confunde com o mártir, o santo, o missionário, o cientista, o revolucionário... Os chamados “grandes homens”, imbuídos de um heroísmo inconsciente (fizeram o bem, mas sem saber...), sentido de missão (mesmo atuando numa esfera secularizada). Ele pensa que está apenas expressando sua singularidade, mas é veículo da realização de determinados princípios universais, do qual depende a evolução/transformação de uma sociedade.
Devemos observar a relatividade, a historicidade do status do herói. Quem foi considerado herói por um determinado povo ou grupo social (ou mesmo no interior de uma sociedade) pode não ser para outros, pelo contrário: pode ser até um inimigo, um tirano. Em dado período, principalmente após bruscas mudanças políticas, sociais, culturais e econômicas, aquele que era tratado como herói vira “inimigo” (do povo, da nação, da tradição, da ordem social recém-estabelecida...) tornando-se figura “maldita” que deve ser esquecida, apagada da memória (por exemplo,a damnatio memoriae dos romanos, e outras formas de remoção da lembrança, seja através da educação dos pequenos, censura, destruição de documentos e monumentos, perseguição e eliminação física de seus seguidores), ou quando lembrada, sendo considerada um exemplo a não ser seguido.
De outro modo, pode-se acrescentar novos elementos à biografia do herói; qualidades que não haviam sido antes enfatizadas (ou que simplesmente não existiam), ou a incorporação de características de outros personagens cultuados, a associação com outras figuras célebres, sagradas, segundo as necessidades de cada configuração social. Concomitantemente pode-se omitir ou anular certas passagens e características da personalidade do herói que não são considerados “adequados” , “edificantes”, ou seja, “comprometedores” para a ordem política/moral/religiosa vigente.
O mito está enganchado à ilusão. Tomo esta palavra no sentido que Sigmund Freud (4), lhe deu : um mecanismo de defesa contra o reconhecimento do teor transitório e frágil da existência humana, desejo de negar o conflito, o desamparo, becos sem saída e as imposições do princípio de realidade. Todavia, devemos prestar atenção em algo fundamental: a ilusão possui um movimento dialético, o conflito entre o princípio do prazer e o princípio de realidade que é elemento estruturador das formações culturais e da constituição da subjetividade. Nas palavras do fundador da psicanálise: “Quando digo que todas essas coisas são ilusões, devo definir o significado da palavra. Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro, nem tampouco um erro. (...) O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. (...) As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis, ou em contradição com a realidade (...) Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim, procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação.”(5)
Bertold Brecht considerava infelizes os povos e épocas que precisavam de heróis. Esta afirmação severa dura tem fundamento, dada à reificação e manipulação da dimensão mítica para fins de dominação. Mas não é possível extirpar os mitos e as ilusões das sociedades humanas (seria pernicioso e empobrecedor). O que se pode fazer é apreendê-las criticamente com nossa racionalidade e não perder de vista a relação com a realidade. Desconstruindo seus dispositivo conforme necessário, podando ou neutralizando seus elementos destrutivos e se apropriar de seus frutos promissores para a formação material e simbólica das sociedades humanas. Sem esquecer a ambiguidade que eles carregam. Seus laços com o engodo, o obscurecimento das relações de força: “mito da democracia racial”, “mito da neutralidade científica”, “mito do estado-providência”, “mito do bom-selvagem”, “mito do mercado auto-regulável” e tantos outros.
Como trabalhar estes elementos em sala de aula? Aqui estão alguns apontamentos sem pretensão de verdade absoluta e infalível:
Dar voz a outros segmentos sociais (ou seja, “heróis” de outros grupos: mulheres, trabalhadores, escravos, índios, negros, migrantes e imigrantes, professores,estudantes, artistas e intelectuais perseguidos) que não são mencionados pelas historiografias dominantes, ou são apresentados de forma superficial, pejorativa e preconceituosa, contrapondo às visões canônicas outros movimentos paralelos . No entanto, é importante não idealizá-los (transformando-os num poço de virtudes, sem contradições e defeitos), mitificando suas resistências e omitindo aspectos autoritários e discriminadores que os chamados “excluídos” também possuem. Reproduzindo os mecanismos de poder ao contrário...A História possui infinitas gradações de cinza, não é constituída de “bons” e “maus”.
É interessante observar os procedimentos de heroificação, ou mesmo certa divinização, de determinadas categorias profissionais como médicos, engenheiros, advogados e juízes, que, aos olhos de alguns seriam superiores às demais corporações profissionais e ao assim chamado “cidadão-comum”.
Aos heróis são vedados momentos de incerteza e hesitação (6). Devemos, pois desnaturalizar, humanizar a figura do herói. Mostrar que ele não fez tudo sozinho, possuía dúvidas, contradições, qualidades e defeitos lutava contra demônios interiores e desejos inconfessáveis, e não raro, sucumbia a estes... Inserir estes personagens nas tramas dos processos sócio-históricos, na rede de interdependência entre os seres humanos e relações de poder. Mostrar o conflito de representações e leituras que envolvem a figura do herói, efetuada por diferentes facções políticas, religiosas e concepções historiográficas.
Muitos heróis (de uma mesma sociedade, próximos ou distantes no tempo) são representados harmoniosamente em pinturas, cartazes, desenhos, esculturas, instalações entre outros suportes, dispostos um ao lado do outro, quase sempre com a mesma expressão facial e postura corporal (exibindo altivez ou serenidade). Se por algum feitiço fossem colocados numa mesa de debates, dificilmente se comportariam tão amigavelmente quando confrontados em suas visões de mundo, projetos políticos, econômicos... Diferente da imagem harmônica, que simula consenso, construída em torno de suas memórias, mostrando como o imaginário do herói encobre os conflitos sociais.
Em suma, ressaltar a historicidade dos mitos, resultado de uma construção social, atentando para as lutas entre diferentes grupos sociais (elites e camadas médias e populares) bem como os conflitos internos entre estes mesmos grupos, envolvidos nos processos de construção e canonização de seus heróis. Compreendendo os princípios de classificação e legitimação de identidades e sua eficácia social. E, o que é muito importante, mostrar que a “construção” e “destruição” de mitos e heróis é algo permanente.
Observação: Esta é a versão definitiva, revista e ampliada, portanto com mais elementos que a postada em 09/01/11. Elaborei este texto no longínquo ano de 2001, mais precisamente no segundo semestre, entre agosto e setembro. Fazia parte de um projeto de estágio realizado no Museu Paulista da USP, durante minha licenciatura em História. Tratava-se de abordar o imaginário da Independência a partir do acervo do museu e depois trabalhar com uma turma do ensino fundamental. No entanto, meu grupo mudou o tema do projeto para a questão do processo de urbanização de São Paulo e este escrito ficou guardado... Meus colegas o elogiaram muito, o que me envaidece...Vez por outra eu o relia. Depois ficou arquivado vários anos. Quando criei o blog já tinha certa vontade de publicá-lo. Até que finalmente... A maioria dos parágrafos foram mantidos tal como deixei, certos excessos cortados, algumas passagens foram retiradas, outras acrescentadas, como o tema da ilusão, que não foi aprofundado na época. Não é uma revisão radical, pois respeitei meu pensamento em formação naquele período. Talvez os parágrafos sejam demasiadamente longos e um pouco repetitivos. Gostava, e ainda aprecio, de definições precisas e conteúdo sólido. De maneira alguma me envergonho disto. De qualquer forma, espero que algumas ideias fiquem melhor esclarecidas. Tenho enorme respeito pela tradição mítica e religiosa da humanidade, mas cultivo um racionalismo e ceticismo abertos, sem dogmatismos. Para mim, a última palavra é do logos.
Notas:
(1)Christopher Hill O mundo de Ponta-Cabeça: Ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo:Companhia das Letras,1987;E. P. Thompson Costumes em Comum: Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; Carlo Ginzburg Os Andarilhos do Bem:feitiçaria a cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras,1988; Michael Taussig Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem: Um Estudo Sobre o Terror e a Cura. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1993;Raoul Girardet,Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987;Christopher Lasch A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro:Imago, 1983; Michael Löwy Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 (notar a influência de Walter Benjamin em Taussig e Löwy)
(2) Carandini, Andrea La nascitá di Roma. Dèi, Lari, eroi e uomini all' alba di uma civiltà. Parte Prima: Il metodo della ricerca. Tradução da introdução para fins didáticos.
(3)Bezerra de Menezes, Ulpiano “Mito e museu: reflexões preliminares.” in FÉLIX, L.; ELMIR, C. Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: UFRGS, 1998 p. 47-48.
(4)Sigmund Freud O futuro de uma ilusão. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXI, pp. 13-71). Rio de Janeiro: Imago, 1974 (Texto original publicado em 1927) e Ansiedade e vida instintual [Novas conferências introdutórias sobre a Psicanálise]. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXII, pp. 103-138). Rio de Janeiro:Imago, 1976 (Texto original publicado em 1933)
(5) Sigmund Freud O futuro de uma ilusão,1974. p. 43
(6) Estou me referindo especialmente aos heróis nacionais. No tocante ao campo da ficção é notória a existência da figura do anti-herói e os próprios super-heróis passaram, a partir da década de 1970, por reformulações, onde lhes foram acrescentados elementos humanizadores, inquietações existenciais, o direito de errar e mesmo questionar sua missão... Nem os jogos de RPG utilizam personagens “quadradinhos”.
Bibliografia básica:
Sobre a temática do herói:
CAMPBELL, Joseph O herói de mil faces, São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.
HOOK, Sidney O herói na história. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.
SEFFNER, Fernando O herói e o mito no espaço da sala de aula de história: algumas impressões. In: FÉLIX, L.; ELMIR, C. Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: UFRGS, 1998. p. 195-205.
Sobre o mito:
CASSIRER, Ernest Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1985
LÉVI-STRAUSS, Claude Mito e Significado. Lisboa: Edições 70, 1987
VERNANT, Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990
2 comentários:
Olá, parabéns pelo texto.
Em que livro ou testo Bertold Brecht faz esse cometário a cerca dos heróis?
ATT.
Grata desde já.
Olá Cristine.
Esse comentário faz parte da peça A Vida de Galileu, cuja versão definitiva saiu em 1945.
Abraço.
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