quarta-feira, 13 de julho de 2011

Isaac Asimov - Afinal, o que somos?


Transcrevo um primoroso artigo do escritor e bioquímico Isaac Asimov (1920-1992), intitulado "Afinal, o que somos?". Trata-se de uma tradução publicada na revista Ciência Ilustrada, da Editora Abril, edição n- 6, março/abril de 1983, na seção Natureza Humana. Conheci esta publicação aos nove anos de idade, quando meu pai a encontrou, esquecida por alguém, e trouxe para casa,quando estava voltando de ônibus, após um dia de trabalho. Espécie de ancestral da "Superinteressante" (que foi lançada em 1987), Ciência Ilustrada foi uma das portas que possibilitaram, na minha infância, a iniciação ao mundo do conhecimento.
Interpreto o “mistério” como o enigma, o obstáculo que tensiona nosso raciocínio e intuição, crenças e ceticismos, teorias e práticas a prosseguirem irresistivelmente para frente. A marca da nossa incompletude: a necessidade de compreender, nomear e classificar eventos, fenômenos e ações. Cada saber tem uma contribuição a dar no esclarecimento da trajetória humana, porém, o conhecimento científico possui limites, embora a margem de liberdade seja muito ampla.
Lamentavelmente a revista não informa a fonte original do artigo, data da publicação (possivelmente no início da década de 1980) e nem credita o tradutor. Entre os colaboradores estão Edna Feldman e Thomaz Rosa Bueno na parte de tradução. Talvez a versão em português seja de um deles. Fica registrado.


 Afinal, o que somos?

Isaac Asimov

Pergunte sobre a natureza humana a 10 cientistas de diferentes especialidades, e é possível que você receba 10 respostas diferentes. Enfim, qual será a resposta definitiva?

"Que é o homem, para que dele te lembres?" (Salmos, 8:4)
O que é o ser humano? "O homem é um bípede implume", proclamou Platão. "O homem é o único animal que cora, ou, pelo menos, que precisa disso", observou Mark Twain.  "O homem é uma inteligência a serviço de seus orgãos", arriscou Aldous Huxley.

Consulte-se um congresso de cientistas sobre a natureza dos seus semelhantes, e as respostas serão tão variadas quanto as suas especialidades representadas; cada um dos cientistas terá um ponto de vista diferente sobre a essência da raça humana.

Diria um físico: "Um ser humano é um diminuiduidor da entropia."

Todas as mudanças no Universo são potencializadas pela transferência de energia, e, em todos os casos, o resultado é uma distribuição ainda maior de energia - "uma entropia maior" - se o sistema for tomado como um todo.
Mas dentro de um sistema há sempre subsistemas. Nestes, numa escala pequena, o processo é revertido. Ou seja, a entropia diminui. O poderoso e constante aumento de entropia no núcleo do Sol produz uma radiação de energia que banha toda a Terra. Uma pequena parcela dessa radiação produz mudanças que local e temporariamente revertem a onda de entropia para gerar vida, um subsistema particularmente eficiente para continuar essa reversão.
Todos os organismo vivos tem a capacidade de aumentar a ordem à custa da desordem - ou seja, de reverter o processo natural da entropia. E entre esses organismos, claro, está o ser humano.

Diria um químico: "Um ser humano é um produto de átomos de carbono."

No começo, a Terra era estéril e possuía um oceano e uma atmosfera compostos de moléculas relativamente pequenas e simples: metano, amônia, água, sulfeto de hidrogêne, nitrogênio. Esses componentes simples eram bombardeados com energia - proveniente das radiações do Sol, do calor da Terra, de descargas elétricas da atmosfera, e de radiações mais sutis emanadas de uma crosta duas vezes mais rica em materiais radioativosdo que o é atualmente.
As moléculas simples se fundiram em moléculas mais complexas pela ação das várias formas de energia. Os átomos de carbono, que são dos menores átomos existentes, se comprimiram para formar cadeias de carbono-carbono particularmente fortes. Além disso, para cada átomo de carbono, não é possível a formação de menos de quatro dessas cadeias. Em consequência, essas moléculas que incluem átomos de carbono - as chamadas "moléculas orgânicas" - rapidamente superaram todas as demais em tamanho e em complexidade.
Evntualmente, as moléculas orgânicas se tornaram suficientemente grandes, delicadas e versáteis a ponto de possuírem as propriedades essenciais que associamos com a vida. E toda a vida sobre a Terra se baseia nestas moléculas - incluindo, é claro, os seres humanos.

Diria um bioquímico: "Um ser humano é um interagente de enzima/ácido nucléico".

Pequenas moléculas, e mesmo muitas moléculas maiores, não são vivas -jamais podem ser vivas- enquanto lhes faltar a capacidade de se reproduzirem, para aumentar seu número à custa de moléculas mais simples do meio ambiente e para impor sua ordem sobre vizinhanças menos ordenadas.
À medida que as moleculas se tornaram mais complexas, durante a "infância" da Terra, as substâncias orgânicas capazes de se reproduzir finalmente surgiram. Eram provavelmente do tipo que hoje conhecemos como ácido nucléico. Outros tipos igualmente complexos de moléculas orgânicas, que hoje conhecemos como proteínas, também foram produzidas. Algumas tinham capacidade catalítica -ou seja, ofereciam superfícies nas quais certas reações quíicas poderiamacontecer mais facilmente e mais rapidamente do que em qualquer outro lugar. Essas proteínas catalíticas são as chamadas enzimas.
De alguma forma, os ácidos nucléicos e as enzimas juntaram forças. Alguns ácidos nucléicos serviam para a formação de enzimas específicas; umcerto número de diferentes ácidos nucléicos podia conduzir -a partir de cada grupo - à formação de um certo número de enzimas diferentes catalizando toda uma bateria de mudanças químicas. Assim, a vida foi se tornando cada vez mais complexa. Entre essas formas de vida que se desenvolveram estava, é claro, o ser humano.

Diria um biólogo: "Um ser humano é um conglomerado de células".

Quando as moléculas auto-reprodutoras se formaram, nos primórdios da Terra, era inevitável que elas competissem pelas moléculas inertes que as circundavam na sopa oceânica. As moléculas auto-reprodutoras que melhor usaram as moléculas mais simples, como matéria-prima para se duplicarem a expensas das que eram menos eficientes.. Começou assim o processo de seleção natural. Eventualmente, apareceram mudanças nas moléculas auto-reprodutoras, através de processos frutos do acaso; as moléculas passaram por mudanças que aumentaram sua eficiência, sobreviveram e floresceram à custa das outras. Assim a evolução se deu através da seleção natural.

Dessa forma, sistemas complexos de moléculas gradualmente evoluíram e se distinguiram do ambiente externo por uma membrana que deixava entrar algumas porções do mundo exterior, mas barrava outras. Eram as células. Quanto mais eficientes eram as células, mais floresciam. E tipos diferentes de células floresceram em diferentes tipos de ambiente. Por fim, algumas células adquiriram a capacidade de se juntar, cooperar e se especializar, formando organismos multicelulares que cresceram em variedade e complexidade. E o mais complexo desses organismos assim formado era, claro, o ser humano.

Os representantes dos demais ramos científicos certamente também gostariam de apresentar suas opiniões.

Para o astrônomo, o ser humano é um filho do cerne das estrelas, o produto final de uma supernova que explodiu há milhões de anos-luz e de cujos elementos se originaram os planetas.

Para o antropólogo, o ser humano representa a lenta acumulação de propriedades características: a postura bípede, a visão aguda, a mão que agarra e o cérebro expandido.

Para o arqueólogo, o ser humano é o acumulador de cultura, o construtor de cidades, o artesão da cerâmica, o plantador de cereais, o inventor da escrita.

Para o psicólogo, o ser humano é o possuidor de um cérebro extraordinariamente comlexo, com a capacidade de pensamento e de abstração sobrepondo-se aos instintos e às emoções herdadas de sua origem animal.

Para o teólogo, o ser humano é um participante humilde num grande drama de pecado e redenção. Para o sociólogo, um moldador de sociedades que, em contrapartida, o domesticaram. E, para cada indivíduo humano, seus semelhantes são uma multidão de parentes, inimigos, amigos, estranos, partícipes da cultura - pessoas para se amar, odiar, suspeitar, ignorar ou admirar pois afinal são nossos parceiros no maior mistério da biosfera.

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