quarta-feira, 27 de julho de 2011

E. P. Thompsom: A miséria da teoria (excertos).



Homem de pensamento e ação, o historiador marxista inglês Edward Palmer Thompson (1924-1993) é um dos intelectuais mais influentes no universo das ciências humanas. Crítico do Stalinismo, permaneceu dentro da tradição marxista, desmontando concepções mecanicistas e autoritárias. Também foi marcante seu engajamento no movimento anti-nuclear na década de 1980. Lecionou em várias universidades, e também dedicou-se à formação de jovens e adultos das camadas populares. Suas pesquisas se constituíram notadamente no campo da História do Trabalho e na História da Cultura, com trabalhos decisivos como A Formação da Classe Operária Inglesa (1963); Senhores e Caçadores (1975); A Miséria da Teoria (1978) e Costumes em Comum (1991). Neles 1, Thompson analisou as questões e discursos da classe trabalhadora, procurando mostrar que os operários são sujeitos construtores da história, dentro de certos limites. Desse modo, o conceito de classe social não se resume apenas em termos econômicos, mas a um conjunto múltiplo de experiências construídas historicamente, herdadas e/ou partilhadas e articuladas em torno à sistemas de valores, tradições, sentimentos identitários que unem um grupo, reivindicações, projetos, formas de subsistir, linguagens, crenças, etc. Desse modo, a experiência de classe é determinada pelas relações de produção no qual os homens nascem ou entram involuntariamente, a consciência de classe é a forma em que estas experiências são tratadas em termos culturais. Assim, a cultura não é mero reflexo da instância econômica, mas um elemento dinâmico, complexo e que se inter-relaciona com o político, o social e o próprio econômico, transformando-os (e também sendo reelaborada por eles).
No livro A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros, Thompson polemiza com o estruturalismo de Louis Althusser e seguidores. É um de texto extrema criticidade,escrito de maneira espirituosa e irônica.Thompson considera prejudicial ao conhecimento um tipo de fazer histórico ancorado nos conceitos da linguistica estrutural francesa (e do linguistic turn, mais contemporaneamente). 
E. P. Thompson formou-se dentro da tradição empírica britânica, que agregou pensadores de vários matizes políticos. Fato que não impede o historiador de apropriar-se dela criticamente. Para ele não é vergonhoso,demeritório ou démodé, defender certo grau de objetividade nos estudos históricos. Atualmente, onde há uma apropriação superficial e sectária de ideias do pós-modernismo, alguns consideram o historiador inglês (ou todo aquele que afirma a existência da realidade e do pensamento fora dos jogos de linguagem, defende certo realismo epistemológico e critica o relativismo cognitivo) um tanto "convencional", "platônico" ou mesmo "positivista" (termos vagos e xingamentos epistemológicos que serve mais para estigmatizar do que esclarecer e iniciar uma discussão mais produtiva).
Entre buscar a objetividade total, como uma lente ou janela cristalina, e se entregar a um relativismo absoluto (onde tudo está embaçado e vale "qualquer coisa", algo contraditório e mesmo anti-intelectualista) existem um espectro de possibilidades. Encontrar a verdade nos estudos históricos é possível; restituindo aos acontecimentos do passado a complexidade de relações (políticas, culturais, religiosas, conflitos, negociações...) que os forjaram, sempre consciente da tensão dialógica e produtiva entre os registros de que dispomos e selecionamos e a visão do pesquisador ( que não sucumbe ao subjetivismo exarcebado, mas o transcende).


“(…) Mas um historiador de tradição marxista tem o direito de lembrar a um filósofo marxista que os historiadores também se ocupam, em sua prática cotidiana, da formação da consciência social e de suas tensões. Nossa observação raramente é singular: esse objeto do conhecimento, esse fato, esse conceito complexo. Nossa preocupação, mais comumente, é com múltiplas evidências, cuja inter-relação é, inclusive, objeto de nossa investigação. Ou, se isolamos a evidência singular para um exame à parte, ela não permanece submissa, como a mesa, ao interrogatórintro; agita-se, nesse meio tempo, ante nossos olhos. Essa agitação, esses acontecimentos, se estão dentro do 'ser social', com frequencia parecem chocar-se, lançar-se sobre, romper-se contra a consciência social existente. Propõem novos problemas e, acima de tudo, dão origem continuadamente à experiência - uma categoria que por mais imperfeita que seja, é indispensável ao historiador, já que compreende a resposta mental e emocional seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento.” 2

“(...) a experiência é valida e efetiva, mas dentro de determinados limites: o agricultor 'conhece' suas estações, o marinheiro 'conhece' seus mares, mas ambos permanecem mistificados em relação à monarquia e à cosmologia.” 3

“Mas a questão que temos imediatamente à nossa frente não é a dos limites da experiência, mas a maneira de alcançá-la e produzi-la. A experiência surge espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo. Se tivermos de empregar (a difícil) noção de que o ser social determina a consciência social, como iremos supor que isto se dá? Certamente não iremos supor que o 'ser' está aqui, como uma materialidade grosseira da qual toda idealidade foi abstraída, e que a 'consciência' (como idealidade abstrata) está ali. Pois não podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus conceitos e expectativas organizadores, nem poderia o ser social reproduzir-se por um único dia sem o pensamento. O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante, no sentido de que exerce pressões sobre a consciência social existente, propõe novas questões e, proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. A experiência, ao que se supõe, constitui uma parte da matéria-prima oferecida aos processos do discurso científico da demonstração. E mesmo alguns intelectuais atuantes sofreram, eles próprios, experiências.” 4

“(...) Mas devo lembrar a um filósofo marxista que conhecimentos se formaram, ainda se formam, fora dos procedimentos acadêmicos. E tampouco eles tem sido, no teste da prática, desprezíveis. Ajudaram homens e mulheres a trabalhar os campos, a construir casas, a manter complicadas organizações sociais, e mesmo, ocasionalmente, a questionar eficazmente as conclusões do pensamento acadêmico.” 5

“(...) A experiência não espera discretamente, fora de seus gabinetes, o momento em que o discurso da demonstração convocará a sua presença. A experiência entra sem bater a porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas estão famintas: seus sobreviventes tem novos modos de pensar em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão, pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essa experiências gerais, velhos sistemas conceituais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em impor sua presença.” 6

“O que Althusser negligencia é o diálogo entre o ser social e a consciência social. Obviamente, esse diálogo se processa em ambas as direções. Se o ser social não é uma mesa inerte que não pode refutar o filósofo com suas pernas, tampouco a consciência social é um recipiente passivo de 'reflexões' daquela mesa. Evidentemente a consciência, seja como cultura não autoconsciente, ou como mito, ou como ciência, ou lei, ou ideologia articulada, atua de volta sobre o ser, por sua vez: assim como o ser é pensado, também o pensamento é vivido – as pessoas podem, dentro de limites, viver as expectativas sociais ou sexuais que lhes são impostas pelas categorias conceituais dominantes.” 7

“(...)Numa tal equação, o “pensamento' (se é 'verdadeiro') só pode representar o que é adequado às propriedades determinadas de seu objeto real, e deve operar dentro desse campo determinado. Se escapa a isto, então se transforma num remendar malfeito, extravagante e especulativo, e na extrapolação de um 'conhecimento' de mesas, a partir de um fanatismo preexistente.” 8

“Essas dificuldades são imensas. Mas as dificuldades se multiplicam muitas vezes quando examinamos não um fato ou conceito (realeza) mas aqueles acontecimentos que a maioria dos historiadores considera centrais para seu estudo: o 'processo' histórico, a inter-relação de fenômenos díspares (como economias e ideologias), a causação. A relação entre o pensamento e seu objeto torna-se agora extremamente complexa e mediata; e, ademais, o conhecimento histórico resultante estabelece relações entre fenômenos que nunca poderiam ser vistos, sentidos ou experimentados pelos atores desse modo naquela época; e organiza as constatações de acordo com conceitos e dentro de categorias que eram desconhecidos dos homens e mulheres cujos atos constituem o objeto de estudo - toda essas dificuldades são tão imensas que se torna evidente que a história 'real' e o conhecimento histórico são coisas totalmente distintas. E certamente são. Que mais poderiam ser? Não poderá o objeto (história real) permanecer ainda numa relação 'objetiva' (empiricamente verificável) com seu conhecimento, uma relação que é (dentro de limites) determinante?” 9

“Os conhecimentos e regras históricas são, com frequência, dessa ordem. Exibem extrema elasticidade e permitem grande irregularidade; o historiador parece estar fugindo ao rigor, ao mergulhar por um momento nas mais amplas generalizações, quando no momento seguinte se perde nas particularidades das qualificações em qualquer caso especial. Isto provoca desconfiança, e mesmo hilaridade, em outras disciplinas. (...)A história não conhece verbos regulares.” 10

“A história não é uma fábrica para a manufatura da Grande Teoria, como um Concorde do ar global; também não é uma linha de montagem para a produção em série de pequenas teorias. Tampouco é uma gigantesca estação experimental na qual as teorias de manufatura estrangeira possam ser 'aplicadas', 'testadas' e 'confirmadas'. Esta não é absolutamente sua função. Seu objetivo é reconstituir, 'explicar', e 'compreender' seu objeto: a história real. As teorias que os historiadores apresentam são dirigidas a esse objetivo, dentro dos termos da lógica histórica, e não há cirurgia que não possa transplantar teorias estrangeiras, como órgãos inalterados, para outras lógicas estátícas, conceituais, ou vice-versa. Nosso objetivo é o conhecimento histórico; nossas teorias são apresentadas para explicar tal formação social particular no passado, tal sequência particular de causações” 11

“A explicação histórica não pode tratar de absolutos e não pode apresentar causas suficientes, o que irrita muito algumas almas simples e impacientes. Elas supõem que, como a explicação histórica não pode ser Tudo, é portanto Nada, apenas uma narração fenomenológica consecutiva. É um engano tolo. A explicação histórica não revela como a história deveria ter se processado, mas porque se processou dessa maneira, e não de outra; que o processo não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos tipos de conhecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionam-se, não de qualquer maneira que nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades; que certas formações sociais não obedecem a uma 'lei', nem são os 'efeitos' de um teorema estrutural estático, mas se caracterizam por determinadas relações e por uma lógica particular de processo. E assim por diante. E muito mais. Nosso conhecimento pode satisfazer a alguns filósofos, mas é o bastante para nos manter ocupados.” 12


Notas:


1. A Formação da Classe Operária Inglesa ─ E. P. Thompson, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1987-1988, 3 vols., tradução de Denise Bottman; Senhores e caçadores: as origens da lei negra.Rio de Janeiro, Paz e Terra,1987 tradução de Denise Bottman;A Miséria da teoria. ..... miséria da teoria ou um planetário de erros. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de. Janeiro: Zahar, 1981; Costumes em Comum:Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. tradução de Rosaura Eichemberg São Paulo: Companhia das Letras, 1998
2. E.P. Thompson A Miséria da teoria, p.15
3.op cit. p.16
4.op cit. p.16
5.op cit p.17
6.op cit. p.17
7.op cit. p.17
8.op cit.  p.17
9.op cit. p. 28
10.op cit. p.57
11.op cit. p. 57
12. op cit. p. 61

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