sábado, 10 de setembro de 2016

Claude Kappler Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média.



Um presente para os meus leitores.

Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média, de Claude Kappler . (tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1994; Coleção O Homem e a História) é um daqueles livros fundamentais que são sempre mencionados e recomendados mas que se encontram inexplicavelmente fora de catálogo.

Claude-Claire Kappler (n. em 1946) é uma  medievalista e orientalista francesa. Pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) na área de literatura medieval. Ela também é especializada em literatura persa clássica e sobre as relações entre o Oriente e o Ocidente.

A ideia deste livro teve origem na contemplação das pinturas de Hieronymus Bosch. A autora indagava: o que era o monstro na Idade Média? Como ele era compreendido? Que papel desempenhava?
O problema que orientou sua pesquisa, em suas palavras: “o que para nós é obscuro parece ter sido claro naqueles tempos” [pois] estavam inseridos num contexto que a esclarece e a explica.", p.3

Portanto, seu objeto de estudo consiste no monstro na imaginação, e não na natureza (pois a atitude adotada em relação ao primeiro item pode ser parcialmente explicada pelo segundo).
 A pesquisa foi realizada principalmente nas bibliotecas universitárias de Basiléia, Estrasburgo e Genebra. o enorme corpus documental abrangeu fontes literárias e iconográficas (muitas, até aquele momento inéditas). de modo que compreendia o seguinte:grandes obras/textos – o monstro aparece de forma esparsa e rara. Narrativas de viagens: “aparecem com uma constância e uma naturalidade que lhes conferem existência própria” p.4 --- séculos XIII-XIV-XVI... África e Ásia – "afinidades naturais entre viagens, contos e mitos: a imaginação é muito estimulada"., p.4

 Não havia uma definição de monstro, mas tentativas de defini-lo que variavam de acordo com os autores e fundamentalmente segundo às épocas. Geralmente o monstro é definido em relação à norma pp. 292-293; também o monstro é aquele cujo aspecto não estamos acostumados. É um desvio da forma... Na literatura o monstro pode ter várias funções: narrativa, simbólica (com finalidade moral) e uma função catártica. (que permite combater o mal e o excesso)

A palavra “monstro”, do latim monstrum: “prodígio / milagre” surgiu durante a primeira metade do século XII e é empregada para designar criaturas disformes que eram exibidas nos circos ou nas feiras.

No século XIX surge a teratologia, “ciência” dos seres monstruosos, ou mais precisamente estudo das anomalias do desenvolvimento embrionário. Segundo o zoólogo e naturalista francês Étienne Geoffory Saint-Hilaire (1772-1844) “o monstro é um homem inacabado”.

Na definição corrente: monstro é um ser vivo cuja conformação difere consideravelmente da dos indivíduos de sua espécie, por excesso, por falta ou pela posição anormal de certas partes de seu corpo.

Finalmente o termo “monstro” também remete às criaturas fantásticas e terríveis das lendas e das mitologias (Centauro, Quimera, Minotauro...). Sem olvidarmos do imaginário contemporâneo, cujo suporte é o cinema, a literatura de terror, as histórias em quadrinhos. Mas esse aspecto foge do livro em questão.

Para Claude Kappler a qualificação de “monstro” baseia-se em três tipos de argumentos:

O argumento genético, que leva em consideração as causas (Aristóteles, “Geração dos animais”; e também Ambrósio Paré)
O argumento teológico e estético, que se apoia na harmonia do universo (Santo Agostinho, “Cidade de Deus”; XVI,8)
O argumento exemplarista ou normativo, que se refere a modelos dos quais os monstros se afastariam como se fossem “más reproduções”.

O monstro existe em todos os níveis da Criação, tanto no reino humano, como nos reinos animal, vegetal e mineral.

Santo Agostinho interessava-se somente pelos monstros humanos. A questão que o mobiliza é saber se as raças monstruosas descendem de Adão, o que põe em dúvida a legitimidade da perfeição da Criação. O bispo de Hipona se vale de uma interessante noção de diversidade: nada ocorre ao acaso e Deus criou o Universo como um tecido onde a semelhança e a diversidade entre as partes se entrelaçam. Portanto o monstro representa uma espécie de contrapeso, enquanto criatura distinta do protótipo humano.

Segundo a perspectiva medieval os monstros são parte integrante da Criação, sendo contados entre a fervilhante população do Universo.
Quanto à atitude medieval com relação aos monstros. O imaginário medieval estabeleceu uma tipologia dos monstros que observa certos critérios:
  1. o monstro como símbolo do antiético, do “completamente outro”;
  2. o monstro como criatura “fraca” (a quem falta algo de essencial ou que apresenta uma deformidade dos órgãos;
  3. o monstro como fusão dos reinos animal, vegetal e mineral, ou ainda como fusão dos sexos;
  4. o monstro como criatura todo-poderosa ou destruidora.
Os modernos consideram o monstro um mistério, escândalo, espécie maldita e ligada a uma patologia.  

Enfim, uma obra muito rica de insights e muito bem escrita, constituindo excelente fonte de aprendizado sobre um imaginário sempre presente na contemporaneidade, via cinema, seriados, HQs e demais artes. 







sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Karl Sanders – Of The Sleep Of Ishtar




Of The Sleep Of Ishtar é a segunda faixa de Saurian Meditations, álbum solo de Karl Sanders, membro fundador do Nile, banda norte-americana de Technical Death Metal.A letra faz menção à aspectos dramáticos da saga da deusa suméria Inanna (aqui trata-se da contraparte acadiana Ishtar) para a “terra sem retorno”, submundo governado por sua irmã Ereshkigal, onde a deusa mesopotâmica do amor, da fertilidade e da guerra reivindicará o governo desta região.







Ishtar Mistress of the Gods
Whose yes is truly yes
 Ishtar queen of harlots
Lady of Babylon
Ishtar sweet jewel of Sodom
Beloved daughter of Sin  Ishtar [x3]
 Ishtar unlocked the seven gates

 Covenant of Absu
Impaled
Naked and Bleeding
Hung left to die upon a Stake
 Ishtar Suffer in Darkness
 Unheard you cry,
Cry for dawn [x3]

 Ishtar Senhora dos Deuses
De quem é verdadeiramente sim
Ishtar rainha das hierodulas
Senhora da Babilônia
 Ishtar doce joia de Sodoma
filha amada de Sin
Ishtar [x3]
Ishtar destrancou as sete portas

 Pacto de Absu
Impalada
Nua e sangrando
Deixada para morrer em cima de uma estaca
Ishtar Padecendo na Escuridão
Desapercebida você chora,
Grita a caminho da aurora[x3]


Claude Lévi-Strauss: Palavras retardatárias sobre a criança criadora.




Publicado originalmente no periódico La Nouvelk Revue des Deux Mondes, em janeiro de 1975, Palavras retardatárias sobre a criança criadora”, constitui o desdobramento de uma mesa redonda dedicada a “A escola e a criança criadora”. Este é o único escrito do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) dedicado exclusivamente ao tema da educação.

O tempo demasiado curto para um debate aprofundado, pouco espaço para discussão com o público e a falta de um fio condutor entre os participantes, advindos de diversas áreas do conhecimento causaram certo desconforto e insatisfação entre os presentes. Desse modo, ciente da importância do assunto, o antropólogo belga decidiu voltar ao tema, redigindo este artigo.

O que dizer? Em suas poucas páginas,Palavras retardatárias sobre a criança criadora”, revela-se mais incisivo do que muitos artigos, livros, palestras, congressos e seminários preocupadíssimos com a educação, elaborados pelos especialistas propriamente ditos neste ramo do saber…
Isto acaba fortalecendo minha visão de que a educação é um tema urgente demais para ficar nas mãos apenas dos pedagogos, psicólogos e psicopedagogos. Não defendo voluntarismo irresponsável e observações efetuadas sem um conhecimento básico do que está em discussão.

Criatividade, há tempos está na ordem do dia. Com a reconfiguração do mundo do trabalho, o advento do ciberespaço e dos aparatos digitais, “ser criativo” é a moeda corrente. Unido à resiliência, flexibilidade, empreendedorismo, foco e outras expressões. A educação escolar, neste contexto, será bastante requisitada para a consecução dessas metas.
Lévi-Strauss observa, a partir de seu olhar etnológico, que a criatividade infantil é algo muito recente. Culturas e sociedades na maior parte de sua história preocupavam-se em transmitir um legado aos pequenos. Usando como exemplo os mestres artesãos, o autor observa que a criatividade não ocorre num vazio, há códigos, disciplinas, padrões, modos de proceder, que, se não são imutáveis, opressivos e a-históricos, devem ser aprendidos e passados a diante. A criação pessoal ocorre após o domínio de um repertório anterior, que não pode ser ignorado. Do mesmo modo, a educação da criança não prescinde de uma disciplina intelectual metódica e o contato com grandes obras da cultura erudita.


Há reflexões sobre os métodos de ensino, pejorativamente denominados “tradicionais”, observações sobre leituras equivocadas das concepções piagetianas, do imediatismo do cotidiano sob o peso da economia. Enfim, reflexões fecundas elaboradas por um mestre.



Contrariamente ao que o título da mesa-redonda poderia implicar, não parece então que o problema da criança criadora resulte da imperfeição de um velho sistema pedagógico. Durante muito tempo, o sistema que ainda e teoricamente é o nosso resolveu-o de maneira satisfatória. Se descobrimos, hoje em dia, que um problema, a razão dele não é que o sistema fosse mau. Era tão bom quanto um sistema colectivo pode ser, mas deteriorou-se e, por razões exteriores a sua natureza, esta agora afundado. Antes de ser pedagógico, o problema da criança criadora poe-se em termos de civilização.

Também se sabe porque razão, ao acolher uma clientela cada vez mais numerosa, o ensino secundário viu a sua qualidade comprometida, tanto ao nível dos professores, como ao dos alunos. Não somente, no entanto, devido a dilatação dos efetivos e dos programas sobrecarregados. O nascimento e desenvolvimento daquilo a que se chama comunicação de massa alterou profundamente as condições em que o saber era transmitido noutros tempos. Ele já não e filtrado lentamente de uma geração para a outra no seio do meio familiar ou profissional, antes se propaga com uma rapidez desconcertante no sentido horizontal e em planos entre os quais surgem soluções de continuidade: de ora em diante, cada geração comunica com todos os seus membros com muito mais facilidade do que com a que a precede ou se lhe segue. Ainda fiel a antiga formula, a escola -se ultrapassada em todos os seus aspectos e, pelo facto de a família ter perdido uma das suas funções essenciais, a escola não pode mais prolongar essa função e alarga-la. Ela já não esta a altura de servir, como outrora, de elo de ligação entre o passado e o presente no sentido vertical e, no sentido horizontal, entre a família e a sociedade.

Mas falta entendermo-nos sobre as causas: o que torna a reforma oportuna não é que os métodos tradicionais fossem maus, mas que o contexto social, cultural e econômico se modificou. Encontramo-nos, entre nós, em condições comparáveis aquelas que encontram educadores europeus quando vão dispensar instrução as crianças de sociedades exóticas. Os resultados decepcionam-nos e concluem, quer que os povos em questão tem uma inteligência inferior por razoes congênitas, quer que as modalidades da sua existência pratica bloqueiam o seu desenvolvimento mental. Em ambas as hipóteses, chocar-se-iam com uma inferioridade de facto. Ora nos sabemos que isto não e assim: as crianças escolarizadas dessas sociedades limitam-se a aprender de cor, esquecem depressa e fazem poucos progressos porque não lhes deram os meios de organizarem e estruturarem os seus novos conhecimentos segundo as normas intelectuais em vigor na sua civilização. Desde que se faça um esforço nesse sentido, os resultados melhoram de maneira espetacular.

Seria então preciso que os nossos educadores se improvisassem em etnógrafos de uma sociedade que já não é aquela onde os métodos que eles aprenderam se aplicavam. Mas se novos métodos permitem interessar a criança naquilo que faz, a ajudam a compreender e a apreciar o que lhe ensinam, em lugar de o aprender de cor, a finalidade tradicional da escola não sera por isso modificada. Para a criança, tratar-se-a sempre de aprender; melhor, sem duvida, e de maneira mais inteligente do que conseguia anteriormente, mais aprender na mesma, ou seja, assimilar conhecimentos e outras aquisições do passado.
E não e o mais grave. Com efeito, teve-se muitas vezes a impressão de que, para outros participantes e certos elementos do publico, se tratava, de maneira aberta ou insidiosa, de contestar a missão tradicional da escola. Como se desejar que a criança aprenda constituísse, ao mesmo tempo, um empreendimento inútil e um atentado a sua liberdade; e como se os recursos intelectuais e espontaneidade próprios a criança se bastassem a si mesmas, excluindo toda a obrigação e deixassem a escola, como único papel, não entravar o seu livre desenvolvimento. Em apoio desta tese, ouviu-se mesmo alguém invocar os trabalhos justamente celebres de Piaget. O mestre de Genebra sem duvida que teria ficado muitíssimo surpreendido com isto, pois jamais pretendeu que as estruturas mentais cada vez mais complexas que surgem, segundo ele, nos sucessivos estádios de desenvolvimento da criança pudessem organizar-se e ordenar-se na ausência de toda a disciplina externa. De resto estas estruturas tem um carácter formal e ficariam vazias e inoperantes se não se exercessem sobre um adquirido de conhecimentos cujo aprovisionamento constitui um dos objetivos da escola. Mas mais; porque hoje se apercebem de que os resultados de Piaget, dos quais ninguém sonha em minimizar a importância, devem ser interpretados em função de uma problemática muito diferente, que se relaciona a neurofisiologia. Pelo menos entre os vertebrados superiores, apos o nascimento e durante a maior parte da infância, as estruturas cerebrais conservam uma grande plasticidade.

No entanto, os mesmos educadores que achavam admirável que se exercite a criança a bater-se contra objetos materiais como pigmentos coloridos, papel, pinceis, barro, tabuas e perpianhos, indignam-se que se lhe possa pedir que reaja, numa composição francesa, ao texto de um autor morto ou vivo, porque dizem-nos, a criança não o pensou ela própria. Como pode não se ver que a situação e a mesma, num e noutro caso? Em ambos, convida-se a criança a defrontar uma realidade ou um conjunto de realidades estranhas, de natureza material ou espiritual; espera-se dela que comece por se aperceber das suas propriedades características, que as assimile; enfim, contra as resistências que elas lhe opõem — quer seja ao manipula-las, quer seja ao compreende-las —, que ela faca obra pessoal ao produzir uma síntese original a partir de todos esses elementos.

A coação da escola, que se comprazem em denunciar, não e senão um aspecto ou uma expressão da coação que toda a realidade — e a sociedade e uma — exerce normalmente sobre os seus membros. E de bom tom ridicularizar ou estigmatizar a resistência que o meio social opõe as obras inovadoras. E não ver que, no seu estadio final, essas obras devem tanto a este meio como ao impulso criador que as leva a contornar as regras tradicionais e, em caso de necessidade, a viola-las. Toda a obra memorável a também feita das regras que obstam ao seu nascimento — e que ela teve que transgredir —• e de regras novas que, uma vez reconhecida, ela imporá por seu turno. Escutemos, a este respeito, a lição de um grande criador, numa obra que e, ela própria, consagrada a criação: refiro-me a Richard Wagner e aos Mestres Cantores (1), com as minhas desculpas pela desajeitada tradução:

Aprendei as regras dos mestres
Vara que elas vos ajudem a preservar
O que nos vossos mais verdes anos
A primavera e o amor vos tenham revelado.
E mais adiante:

Criai as vossas próprias regras, mas segui-as.

Que não há contestação possível se não houver nada para contestar, e uma lapalissada; mas ela tem o mérito de sublinhar que a resistência e o esforco para a vencer são necessários ao mesmo título. Para que as Flores do Mal e Madame Bovary pudessem existir, foi preciso, primeiro, que existissem Baudelaire e Flaubert, mas também teve que haver uma coação exercida hic et nunc que obrigava a desvios pelas vias da imaginação; senão, essas vias nunca teriam sido abertas. E, em todo o caso, te-lo-iam sido de outra maneira. Porque a obra criadora resulta de uma arbitragem e de um compromisso: entre a intenção inicial do criador — mas, neste estadio, ainda informulável — e as resistências que ele teve que vencer para a exprimir. Estas são as resistências que ao artista opõem a técnica, as ferramentas, o material; ao escritor, o vocabulário, a gramatica, a sintaxe; mas também, a ambos a opinião e as leis. Toda a obra de arte e revolucionaria, seja, mas não o pode ser senão ao atuar sobre o que subverteu. O seu caracter inovador (que desapareceria se nada houvesse perante ela) vem-lhe de ela morder no obstaculo, mas não sem lhe ceder e se modelar, ainda que pouco, sobre ele. A obra-prima e então feita, ao mesmo tempo, daquilo que e e daquilo que nega, do terreno que conquista e da resistência que encontra. Resulta de forcas antagônicas que compõe, mas a cujo impulso e contra-impulso fica a dever esta vibração e esta tensão que nela admiramos.

Os etnólogos estudam sociedades a quem não se poe o problema da criança criadora; e a escola também não existe nelas. Naquelas que eu conheci, as crianças ou brincavam pouco, ou não brincavam absolutamente nada. Com maior rigor, as suas brincadeiras consistiam na imitação dos adultos. Esta imitação levava-as de maneira insensível a participar a serio nas tarefas produtoras: quer fosse para contribuir, na medida do que podiam, na procura de alimentos, quer fosse para cuidar dos mais novos e distrai-los, quer fosse para fabricar objetos. Mas, na maior parte das sociedades ditas primitivas, esta aprendizagem difusa não basta. E também preciso que, num momento determinado da infância ou da adolescência, se desencadeie uma experiência traumática, cuja duração varia, conforme os casos, entre algumas semanas e vários meses. Entremeada de provas freqüentemente muito duras, esta iniciação, como lhe chamam os etnólogos, grava no espirito dos noviços os conhecimentos que o seu grupo social tem por sagrados. E também poe em ação aquilo a que chamarei a virtude das emoções fortes —ansiedade, medo e orgulho — para consolidar, de maneira brutal e definitiva, os ensinamentos recebidos no decurso dos anos em estado diluído.

As sociedades estudadas pelos etnólogos tem pouco gosto pela novidade: elas justificam os seus costumes pela antiguidade que lhes atribuem. Pelo menos para aquelas cujo efetivo demográfico não ultrapassa alguns milhares de indivíduos e que, por vezes, nem chegam a atingir a centena, o ideal — impossível, claro, de respeitar — seria permanecer tal como, segundo os mitos, os deuses as criaram no alvor dos tempos. No entanto, nessas sociedades não industriais, cada um sabe criar por si mesmo todos os objetos artesanais que lhe apetece usar. Que não se fale, aqui, de imitação instintiva: as mais humildes técnicas dos chamados primitivos fazem apelo a operações manuais e intelectuais de uma grande complexidade que e preciso ter compreendido e aprendido e que, de cada vez que se executam, reclamam inteligencia, iniciativa e gosto. Não e qualquer arvore que e própria para fazer um arco, nem mesmo qualquer parte da arvore; a exposição do tronco, o momento do ano ou do mês em que a abatem iao-pouco são indiferentes. Os gestos feitos para desbastar, trabalhar e polir a madeira, preparar a fibra destinada a corda e aos ligamentos, enrolar e apertar estes, tudo isto implica experiência, jeito, julgamento. O homem consagra-se inteiramente a estas tarefas, investe nelas o seu saber, a sua habilidade, a sua personalidade; o mesmo quanto a ceramista ou a tecedeira. As diferenças em relação a obra do vizinho podem ser minimas, indiscerníveis a vista não treinada. O pratico distingue-as e elas inspiram no seu autor um legitimo orgulho.

Ao querermos fazer dos nossos filhos criadores, estaremos a espera somente que, como o selvagem ou o camponês das idades pré-industriais, ele saiba fazer sozinho o que o seu vizinho também faz, mas no respeito por normas estabelecidas de uma vez por todas, ou pedimos-lhe algo mais? Reservaríamos então o nome de criação para aquilo que, no plano material ou espiritual, represente uma verdadeira inovação. Os grandes inovadores são, e claro, necessários a vida e a evolução das sociedades: para alem de um tal talento poder — e disso nada sabemos —• ter bases genéticas (pondo de parte que ele exista em estado latente em toda a gente), também nos devemos interrogar sobre a viabilidade de uma sociedade que desejasse que todos os seus membros fossem inovadores. Parece muitíssimo duvidoso que uma tal sociedade se possa reproduzir e ainda menos progredir, uma vez que se entregaria permanentemente a dissipar as suas aquisições.

Talvez tenhamos assistido a um fenômeno desta ordem em certos sectores da nossa própria cultura, no das artes plasticas em particular. Desvairados com as duas inovações maiores constituídas, na pintura, pelo impressionismo e pelo cubismo, que se sucederam uma a outra no lapso de poucos anos, atormentados sobretudo pelos remorsos de não as termos sabido reconhecer logo de principio, impusemo-nos como ideal, não o que inovações fecundas poderiam ainda produzir, mas sim a inovação em si mesma. Não contentes por a termos de algum modo divinizado, imploramos diariamente que ela nos traga novos testemunhos da sua omnipotência. O resultado esta a vista: uma cavalgada desenfreada de estilos e maneiras, ate na obra de cada artista. Afinal de contas, foi a pintura como gênero que não sobreviveu as pressões incoerentes que se exerceram sobre ela, para que não cessasse de se renovar. Outros domínios da criação sofrem o mesmo destino: toda a arte contemporânea esta presentemente numa situação aflitiva. Que a recente evolução da pintura atue com tao grande peso sobre os métodos pedagógicos que pretendem libertar a criança e estimular os seus dons criadores razão mais do que suficiente para que estes respirem alguma desconfiança.

Regressemos então ao sentido subjectivo, mas meçamos também a largura do fosso que, na nossa civilização, separa a ambição, mesmo modesta, que este sentido implica, das oportunidades que temos de a traduzir na pratica. Lembro--me da exaltação de duas jovens americanas durante uma estadia em Franca, quando lhes revelaram que a baunilha e uma vagem e como, a partir de um ovo, qualquer um pode fazer uma maionese por suas mãos. Para elas, essas substancias e os seus respectivos sabores pertenciam ate então a um reportório anonimo, feito de carteiras e caixas a cujo conteúdo atribuíam, em algumas doses, uma mesma uniformidade de origem. Logo que conexões insuspeitadas se estabeleceram no seu universo mental, sentiram-se reintegradas num devir histórico. Ao cumprirem gestos humildes, participavam numa criação.

Este exemplo trivial faz-nos por o dedo no drama de civilização, que, muito antes de se repercutir em crise pedagógica, esta na raiz de um problema a que não pudemos fazer mais do que sobrevoar. Os nossos filhos nascem e crescem num mundo feito por nos, que antecipa as suas necessidades, previne as suas perguntas, os encharca de soluções. A este respeito, não vejo diferença entre os produtores industriais que nos inundam e os ≪museus imaginarios≫ que, sob a forma de coleções de livros de bolso, de álbuns de reproduções e de exposições temporárias em jacto continuo desvitalizam e embotam o gosto, minimizam o esforco, baralham o saber: vãs tentativas para acalmar o apetite bulímico de um publico sobre o qual desabam desordenadamente todas as produções espirituais da humanidade. Que, neste mundo de facilidades e desperdício, a escola continue a ser o único sitio em que e preciso ter trabalho, sofrer uma disciplina, passar por vexames, progredir passo a passo, viver, como se costuma dizer, ≪no duro≫, não e coisa que as crianças aceitem, pois  não a podem compreender. Dai a desmoralização que as invade, quando sofrem toda a especie de coações para as quais tanto a família como a sociedade não as prepararam e as consequências por vezes trágicas desta inadaptação.
Resta saber se e a escola que esta errada, se e uma sociedade que perde cada vez mais e todos os dias o sentido da sua função. Ao pormos o problema da criança criadora, enganamo- nos no tema: porque somos nos próprios, tornados consumidores desenfreados, quem se mostra cada vez menos capaz de criar. Angustiados pela nossa carência, esperamos a vinda do homem criador. E como não nos apercebemos dele em parte alguma, viramo-nos, em desespero de causa, para os nossos filhos.



Temamos, no entanto, que, ao sacrificarmos as rudes necessidades da aprendizagem aos nossos sonhos egoístas, acabemos por lançar a escola pela borda fora, com tudo aquilo que ela ainda representa, e que venhamos a privar os nossos sucessores do pouco que ainda permanece solido e substancial na herança que podemos deixar-lhes. Seria aberrante pretender iniciar os nossos filhos na criação pelas vias da arte, recorrendo a métodos pedagógicos inspirados pelos frutos ilusórios da nossa esterilidade. Reconheçamos ao menos que procuramos nisso uma consolação: ao fazermos da criança a medida do criador, damos a nos próprios uma desculpa por termos deixado a arte regredir ao estadio do jogo, mas sem termos tido o cuidado de não abrirmos a porta a confusões muito mais graves entre o jogo e os outros aspectos sérios da vida. Ai de nos, nem tudo na vida e jogo. E aos jovens espíritos que nos incumbe formar que se fica a dever esta lição fundamental que nos convidam a calar, para a satisfação, na verdade bem ingenua, de justificar aquilo a que ainda se chama arte pelos exercícios atraentes de que, sob o colorido de reforma pedagógica, proporciona ocasião as criançasexercícios em que, no entanto, os próprios adultos podem encontrar — e nada mais — um muito vivo agrado.


Fonte: LÉVI-STRAUSS, Claude – Palavras retardatárias sobre a criança criadora” In O Olhar Distanciado. Tradução de Carmen de Carvalho. Lisboa: Edições 70, 1986 (Perspectivas do Homem; 24) pp. 373-386

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

José Mário Pires Azanha - Abstracionismo Pedagógico.




O filósofo e pedagogo José Mário Pires Azanha (1931-2004) destaca-se entre os grandes defensores do ensino publico brasileiro, ao lado de Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, entre outros. Natural de Santa Cruz do Rio Pardo (SP) Azanha foi professor primário, professor normalista, diretor de escola e, a partir de 1974, passou a lecionar na Faculdade de Educação da USP, aposentando-se em 2001.

Nos anos 1969-1970, coordenou a realização da reforma na rede pública de ensino paulista, que instituiu o ensino fundamental de oito anos, unificando os exames de admissão. Empreendimento de grande envergadura, e que gerou controvérsias que perduram até hoje, permitiu o ingresso nos ginásios da rede pública de uma clientela antes excluída do processo. Em 1983, no governo de Franco Montoro, participou novamente na reorganização da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, com a proposta de um plano de autonomia da escola pública.

Seu pensamento foi grandemente influenciado pela filosofia analítica anglo-saxônica; em especial: Gilbert Ryle, John R. Searle, Israel Scheffler, sir Patrick F. Strawson, Hillary Putnam, além de Karl Popper e Ludwig Wittgenstein, por quem tinha enorme apreço. Miguel de Unamuno, Émile Chartier (Alain), Hannah Arendt e Nietzsche também estão presentes em seuas reflexões.
Por fim, mobiliza um consistente repertório em ciências sociais e humanidades, sobremodo em aspectos do pensamento de Marx que escapam de seus seguidores mais obtusos e sectários.

Coerente com a tradição analítica, sua obra é predominantemente ensaística e, ao mesmo tempo, densa e destituída de jargões desnecessários, abrangendo ensaios, prefácios, projetos e estudos monográficos cuja principal característica é a preocupação com esclarecimento dos conceitos, contra o emprego generalista e arbitrário de expressões.

Esta trajetória intelectual e administrativa equiparam-no como poucos para a compreensão dos problemas da realidade educacional brasileira e o questionamento dos pressupostos do discurso pedagógico, seus modismos e lugares comuns e, o mais ousado, a crítica da pretensão de fundamentar o ato educacional em bases ditas “científicas”, em especial de origem psicológica, mas que no seu bojo se revelam um cientificismo herdeiro do positivismo do século XIX. E na ilusão do “método”, que orientaria a prática dos professores em qualquer ocasião. Contrapõe a esse ideário a complexidade das questões do campo educativo.

Foi um defensor da autonomia do professor para escolher os seus próprios caminhos entre a pluralidade de concepções pedagógicas, desde que compatíveis com uma política educacional democrática.

Para o professor Azanha a atitude científica é fundamentalmente crítica (tanto no sentido Kantiano quanto na tradição da filosofia analítica da análise linguística e conceitual como um modo de chegar à compreensão). Esta postura não opera num espaço vazio; é preciso dominar o conhecimento existente com relação ao que está sendo estudado, discutido.
Uma fé cega nos poderes ciência (antes de mais nada, um saber hipotético e provisório) como a única instância capaz de emitir diretrizes e resolver todos os problemas da educação brasileira constitui uma ilusão cientificista e não um legítimo trabalho intelectual. Na nossa situação acaba por obliterar a razão, desviando a atenção para problemas mais urgentes de natureza política (no bom sentido do termo).

Além da ilusão cientificista, José Mário Pires Azanha era um severo crítico dos slogans e mitificações educacionais que atravessam os discursos e práticas educativas. Expressões como “ensinar a ensinar”, “aprender a aprender”, “aprender fazendo”, “competência” e tantas outras, não são algo que tem valor a priori. Se possuem alguma pertinência tem que passar pelo paciente escopo da crítica. Do mesmo modo, a ilusão metodológica, crença de que a aplicação de métodos, especialmente de natureza psicológica, garantem um ensino mais eficiente são vistos com ceticsmo pelo autor de “Uma ideia de pesquisa educacional”.

Com base em historiadores e filósofos da ciência como Derek de Solla Price (1922-1983) Azanha problematiza a concepção equivocada de que o desenvolvimento tecnológico é consequência direta do desenvolvimento científico.

Talvez a única coisa que me incomoda negativamente no pensamento de J Azanha seja sua ênfase em rechaçar toda a crítica à democratização (ou massificação) do ensino como um exemplo do espírito classista e aristocrático que via com desdém a entrada da população pobre num espaço antes restrito. Poderíamos, provocativamente, seguindo seu pensamento, observar que também se trata de um “abstracionismo”, com sinal invertido. A memória de uma escola pública com certas “qualidades” que se perderam não é apenas um subterfúgio invocado por conservadores que desejam manter um ensino elitizado e classista. Intelectuais, políticos, escritores e pessoas comuns, liberais e pertencentes aos diversos ramos da esquerda evocam uma boa escola pública pré-reformas dos anos 1970 e 1980. Distinguir criticamente idealizações de fatos concretos é uma tarefa cuidadosa a ser feita. Pois o cotidiano escolar é um território quase inexplorado pelos pesquisadores. E muito se perdeu (documentação física e oral) e será descartado...

Tem-se a impressão que questionar os resultados desta necessária e justa expansão do ensino público significaria optar por uma concepção elitista (no sentido mais pejorativo do termo). Será que conhecemos bem a história desse sistema escolar anterior aos anos 1970? Ainda que poucos, pessoas oriundas das classes pobres não se beneficiaram desse ensino?

Se a “permanência de um padrão de ensino concebido para uma parcela da população intelectual ou economicamente privilegiada” (2) era inviável no processo de expansão de vagas, ista não desmerece o fato de que elementos (conteúdos, práticas, formas escolares…) desta educação restrita a poucos não possam ser relevantes para outras camadas da população.

Talvez parte do mal estar advenha do fato de que o processo de expansão foi levado a efeito pela Ditadura Civil-militar. Lembrando que foi um evento concomitante- coetâneo aos Acordos MEC-USAID, e todas as consequências deploráveis: substituição da História e Filosofia pela EMC e OSPB, aligeiramento da formação dos professores etc.

Enfim, talvez seja o único reparo que faria no pensamento deste autor. Debilmente tento imagino a tensão daqueles dias; interesses poderosos que ele contrariou, hesitações, excelentes ideias sacrificadas para que o processo pudesse continuar… Inexiste ainda o necessário distanciamento temporal para que possamos fazer uma avaliação ponderada.

Transcrevi o estudo “Abstracionismo Pedagógico”, segundo capítulo de Uma Ideia de Pesquisa Educacional (São Paulo: Edusp, 1992), sua Tese de Livre Docência. Utilizei elementos deste texto na postagem em que critico ideias de Viviane Mosé.

A categoria operacional “abstracionismo pedagógico” nas palavras do próprio professor Azanha designa: “veleidade de descrever, explicar ou compreender situações educacionais reais, desconsiderando as determinações específicas de sua concretude, para ater-se apenas a “princípios” ou “leis” gerais que na sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar conta das situações focalizadas.” (1)

Citando Karel Kosik, filósofo marxista de origem tcheca, o “abstracionismo pedagógico” opera uma distorção que:

se manifesta no método do princípio abstrato que despreza a riqueza do real, isto é, a sua contraditoriedade e multiplicidade de significados, para levar em conta apenas aqueles fatos que estão de acordo com o princípio abstrato . O princípio abstrato, erigido em totalidade, é totalidade vazia, que trata a riqueza do real como “resíduo” irracional e incompreensível. […] Assim fazendo rompo a integridade do fenômeno em causa porque o cinde em duas esferas independentes: uma parte que convém ao princípio e por ele é explicada; e uma outra parte que contradiz o princípio e que, portanto, permanece na sombra”(2)

Transcrevi e o texto completo e converti em arquivo PDF. Não segui a numeração das páginas (tenho a edição de 1992, e a reedição recente apresenta outra numeração).Embora possa ser lido separadamente do conjunto, convido o leitor a conhecer a obra completa e demais livros do autor:


Outros trabalhos escritos pelo professor José Mário Pires Azanha
A formação do educador e outros escritos. São Paulo: Senac, 2006
Educação: temas polêmicos. São Paulo: Martins Fontes, 1995
Educação: alguns escritos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987

José Mário Azanha / ensaio: José Sérgio Fonseca Carvalho. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010 (Coleção Educadores MEC) – seleção de textos e uma detalhada introdução do professor José Sérgio Carvalho da Faculdade de Educação da USP.

Destaco também o artigo da professora Carlota Boto (FE-USP): Nas trilhas de um mestre: o legado político e pedagógico de José Mário Pires Azanha. In Revista USP, São P aulo, n.93, p. 211-224, Março/Abril/Maio 2012


Notas:

1. AZANHA, J.M.P. “Abstracionismo Pedagógico” in Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Edusp, 1992, p. p. 41
2. AZANHA, J.M.P. , op. cit., p.42
3. “Considerações sobre a Política de Educação do Estado de São Paulo”, in Educação: Alguns Escritos. São Paulo, Nacional, 1987, p. 97



quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Hannah Arendt - Epílogo ao livro "A Promessa da Política".



Este pequeno texto que transcrevo abaixo constitui a conclusão de um curso intitulado "A História da Teoria Política", ministrado na primavera de 1955. Ele faz parte do livro A promessa da Política, seleção póstuma de escritos que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) produziu durante a década de 1950. Faziam parte de um projeto da autora, talvez em dois livros que figurariam entre os clássicos Origens do Totalitarismo (1951) e A Condição Humana (1958). Por razões diversas, o projeto não prosperou. As obras versariam principalmente sobre a posição de Marx na tradição do pensamento político e filosófico, entre outros temas correlacionados. A coletânea organizada por Jerome Kohn, que foi assistente de Hannah Arendt e é diretor do Hannah Arendt Center, do The New School For Social Research sediado em New York., traz parte deste material.
Todavia, não é da crítica de Hannah Arendt a Marx e ao marxismo, por mais pertinente que seja que tratarei neste post, mas do texto de encerramento ao curso que mencionei acima. A decisão de Jerome Kohn em fazer dele o epílogo do livro foi muito feliz. O escrito, feito para uma exposição oral, mantém a coloquialidade e tem vida própria (na medida em que o leitor tenha conhecimento básico do pensamento arendtiano e seus conceitos, a apreciação ocorrerá de forma mais plena).
A analogia do mundo contemporâneo com o deserto é muito forte e eficaz, encaixando muito bem na argumentação da autora.
Outra coisa que me chamou a atenção foi sua crítica à psicologia. Seja no sentido de conhecimento sobre  a alma ou estudo do comportamento humano, disciplina que se pretende saber científico, o juízo é implacável. Quiçá, denominar a psicologia como "o exercício de adaptação da vida humana ao deserto", sendo o espaço geográfico do deserto a metáfora da negação da vida ativa, da política, da liberdade e do espaço público algo bastante inquietante para os espíritos sensíveis de nosso mundo psicologizado, ferindo suas certezas a respeito das pretensões deste saber que se pretende ciência.
O deserto, em sua aridez e esterilidade, é o domínio do instante, do aqui e agora; cria poderosas miragens que, sob ardis inocentes, apolíticos, constituem formas sutis de dominação totalitária. Um mundo conformista, sem história, sem compreensão e sem espírito pensante. Os oásis, neste contexto sombrio, são espaços frágeis e preciosos onde a resistência e a paixão crítica é possível. Nestes lugares, pode-se recuar desta inserção acrítica, irrefletida, no presente e, voltando o espírito para si mesmo, o sujeito pode compreender o que lhe acontece, problematizar a atualidade, confrontar criticamente o presente e elaborar significados. Desse modo é possível que a política retome seu sentido original, um espaço comum a todos, onde é possível falar, ouvir, discutir, decidir e agir. Enfim, pode-se fortalecer o  "amor mundi", que segundo Hanna Arendt, inspirada em Santo Agostinho, é a admiração pelas obras humanas das gerações passadas, e do desejo elas sejam "preservadas" para o futuro conhecimento daqueles que ainda virão a este mundo.



O moderno crescimento da ausência-de-mundo, a destruição de tudo que há entre nós, pode também ser descrito como a expansão do deserto. O fato de vivermos e nos movermos num mundo-deserto foi primeiramente percebido por Nietzsche, também o primeiro a se equivocar em seu diagnóstico. Como quase todos que vieram depois dele, Niestzsche acreditava que o deserto está em nós, assim se revelando não apenas um dos primeiros habitantes conscientes do deserto, mas também, por essa mesma razão, uma vítima de sua mais terrível ilusão. A moderna psicologia é a psicologia do deserto, quando perdemos a faculdade de julgar - sofrer e condenar - começamos a achar que há algo errado conosco por não conseguirmos viver sob as condições de vida do deserto. Na pretensão de nos "ajudar", a psicologia nos ajuda a nos "adaptarmos" a essas condições, tirando a nossa única esperança, a saber: que nós, que não somos do deserto, embora vivamos nele, podemos transformá-lo num mundo humano. A psicologia vira tudo de cabeça para baixo: precisamente porque sofremos nas condições do deserto é que ainda somos humanos e ainda estamos intactos; o perigo está em nos tornarmos verdadeiros habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa.
         O maior perigo é que no deserto há tempestades de areia e que o deserto não é sempre plácido como um cemitério, onde tudo, afinal, continua sendo possível, mas pode criar um movimento próprio. Essas tempestades são movimentos totalitários cuja principal característica é serem extremamente bem ajustados às condições do deserto. Na verdade, elas não contam com nada mais e parecem, consequentemente, a mais adequada forma política de vida no deserto. Tanto a psicologia, o exercício de adaptação da vida humana ao deserto, quanto os movimentos totalitários, as tempestades de areia em que falsas ou pseudoações irrompem subitamente da quietude, colocam em risco iminente as duas faculdades humanas que nos permitem transformar pacientemente o deserto, e não a nós mesmos: as faculdades conjugadas da paixão e da ação. É verdade que nas mãos dos movimentos totalitários ou das adaptações da psicologia moderna nós sofremos menos; perdemos a faculdade de sofrer e com ela a virtude da resistência. Só quem é capaz de padecer a paixão de viver sob as condições do deserto pode reunir em si mesmo a coragem que está na base da ação, a coragem de se tornar um ser ativo.
       As tempestades de areia ameaçam, além do mais, até mesmo os oásis do deserto sem os quais nenhum de nós poderia resistir, ao passo que a psicologia apenas procura nos tornar tão habituados à vida no deserto, que já não mais sentimos necessidade de oásis. Os oásis são as esferas da vida que existem independentemente, ao menos em larga medida, das condições políticas. O que deu errado foi a política, a nossa existência plural, não o que podemos fazer e criar em nossa existência no singular: no isolamento do artista, na solidão do filósofo, na relação intrinsecamente sem-mundo entre seres humanos tal como existe no amor e às vezes na amizade – quando um coração se abre diretamente para o outro, como na amizade, ou quando o interstício, o mundo, se incendeia, como no amor. Sem a incolumidade desses oásis não conseguiríamos respirar, coisa que os cientistas políticos deveriam saber. Se aqueles que tem de passar suas vidas no deserto, tentando fazer isso e aquilo preocupados com as condições do próprio deserto, não souberem usar os oásis  tornar-se-ão habitantes do deserto mesmo sem a ajuda da psicologia. Em outras palavras, os oásis, que não são lugares de “relaxamento”, mas fontes vitais que nos permitem viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele, secarão.
O perigo oposto é muito mais comum. Seu nome usual é escapismo: escapar do mundo do deserto, da política, para... o que quer que seja, é uma forma menos perigosa e mais sutil de arruinar os oásis do que as tempestades de areia que ameaçam exteriormente, por assim dizer, a sua existência. No afã de escapar, levamos a areia do deserto para o oásis – assim como Kierkegaard, no afã de escapar da dúvida, levou a própria dúvida para a religião ao dar o salto para a fé. A falta de resistência, a incapacidade de reconhecer e padecer a dúvida como uma das condições fundamentais da vida moderna, introduz a dúvida na única esfera onde ela jamais deveria entrar: a esfera religiosa, estritamente falando, a esfera da fé. Este é apenas um exemplo que mostra o que pode nos suceder no afã de escapar do deserto. Pelo fato de arruinarmos os oásis vitais quando vamos a eles com o propósito de escapar deles, às vezes é como se tudo conspirasse para generalizar as condições do deserto.
Também isto é uma ilusão. Em última análise, o mundo humano é sempre o produto do amor mundi do homem, um artifício humano cuja potencial imortalidade está sempre sujeita à mortalidade daqueles que constroem e à natalidade daqueles que vêm viver nele. É uma eterna verdade o que disse Hamlet: “O mundo está fora dos eixos: Ó que grande maldição / Eu ter nascido para trazê-lo à razão!” Neste sentido, na sua necessidade de iniciantes para que ele possa começar de novo, o mundo é sempre um deserto. Mas da condição de não-mundo que veio à luz na era moderna – que não deve ser confundida condição cristã de outro-mundo – proveio a pergunta de Leibniz, Schelling e Heidegger: por que existe alguma coisa em vez de nada? E das condições específicas de nosso mundo contemporâneo, que nos ameaça não apenas com o nada, mas também com o ninguém, talvez surja a pergunta: por que existe alguém em vez de ninguém? Estas perguntas podem parecer niilistas, mas não são. Ao contrário, são perguntas antiniilistas feitas numa situação objetiva de niilismo em que o nada e o ninguém ameaçam destruir o mundo.

Fonte: ARENDT, Hannah A promessa da política. organização e introdução de Jerome Kohn, tradução: Pedro Jorgensen Jr.  Rio de Janeiro: Difel, 2010   pp. 266-269