Publicado
originalmente no periódico La Nouvelk Revue des Deux Mondes, em
janeiro de 1975, “Palavras retardatárias sobre a criança
criadora”, constitui o desdobramento de uma mesa redonda
dedicada a “A escola e a criança criadora”. Este é o único
escrito do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) dedicado
exclusivamente ao tema da educação.
O tempo demasiado
curto para um debate aprofundado, pouco espaço para discussão com o
público e a falta de um fio condutor entre os participantes,
advindos de diversas áreas do conhecimento causaram certo
desconforto e insatisfação entre os presentes. Desse modo, ciente
da importância do assunto, o antropólogo belga decidiu voltar ao
tema, redigindo este artigo.
O que dizer? Em suas
poucas páginas, “Palavras retardatárias sobre a criança
criadora”, revela-se mais incisivo do que muitos artigos,
livros, palestras, congressos e seminários preocupadíssimos com a
educação, elaborados pelos especialistas propriamente ditos neste
ramo do saber…
Isto acaba
fortalecendo minha visão de que a educação é um tema urgente
demais para ficar nas mãos apenas dos pedagogos, psicólogos e
psicopedagogos. Não defendo voluntarismo irresponsável e
observações efetuadas sem um conhecimento básico do que está em
discussão.
Criatividade, há
tempos está na ordem do dia. Com a reconfiguração do mundo do
trabalho, o advento do ciberespaço e dos aparatos digitais, “ser
criativo” é a moeda corrente. Unido à resiliência,
flexibilidade, empreendedorismo, foco e outras expressões. A
educação escolar, neste contexto, será bastante requisitada para a
consecução dessas metas.
Lévi-Strauss
observa, a partir de seu olhar etnológico, que a criatividade
infantil é algo muito recente. Culturas e sociedades na maior parte
de sua história preocupavam-se em transmitir um legado aos pequenos.
Usando como exemplo os mestres artesãos, o autor observa que a
criatividade não ocorre num vazio, há códigos, disciplinas,
padrões, modos de proceder, que, se não são imutáveis, opressivos
e a-históricos, devem ser aprendidos e passados a diante. A criação
pessoal ocorre após o domínio de um repertório anterior, que não
pode ser ignorado. Do mesmo modo, a educação da criança não
prescinde de uma disciplina intelectual metódica e o contato com
grandes obras da cultura erudita.
Há reflexões sobre
os métodos de ensino, pejorativamente denominados “tradicionais”,
observações sobre leituras equivocadas das concepções
piagetianas, do imediatismo do cotidiano sob o peso da economia.
Enfim, reflexões fecundas elaboradas por um mestre.
Contrariamente
ao que o título da mesa-redonda poderia implicar, não parece então
que o problema da criança criadora resulte da imperfeição de um velho
sistema pedagógico. Durante muito tempo, o sistema que ainda e
teoricamente é o nosso resolveu-o de maneira satisfatória. Se
descobrimos, hoje em dia, que há um problema, a razão dele não é que
o sistema fosse mau. Era tão bom quanto um sistema colectivo pode
ser, mas deteriorou-se e, por razões exteriores a sua natureza, esta
agora afundado. Antes de ser pedagógico, o problema da criança
criadora poe-se em termos de civilização.
Também
se sabe porque razão, ao acolher uma clientela cada vez mais
numerosa, o ensino secundário viu a sua qualidade comprometida, tanto
ao nível dos professores, como ao dos alunos. Não somente, no
entanto, devido a dilatação dos efetivos e dos programas
sobrecarregados. O nascimento e desenvolvimento daquilo a que se
chama comunicação de massa alterou profundamente as condições em que
o saber era transmitido noutros tempos. Ele já não e filtrado
lentamente de uma geração para a outra no seio do meio familiar ou
profissional, antes se propaga com uma rapidez desconcertante no
sentido horizontal e em planos entre os quais surgem soluções de
continuidade: de ora em diante, cada geração comunica com todos os
seus membros com muito mais facilidade do que com a que a precede ou
se lhe segue. Ainda fiel a antiga formula, a escola vê-se
ultrapassada em todos os seus aspectos e, pelo facto de a família ter
perdido uma das suas funções essenciais, a escola não pode mais
prolongar essa função e alarga-la. Ela já não esta a altura de
servir, como outrora, de elo de ligação entre o passado e o presente
no sentido vertical e, no sentido horizontal, entre a família e a
sociedade.
Mas
falta entendermo-nos sobre as causas: o que torna a reforma oportuna
não é que os métodos tradicionais fossem maus, mas que o contexto
social, cultural e econômico se modificou. Encontramo-nos, entre nós,
em condições comparáveis aquelas que encontram educadores europeus
quando vão dispensar instrução as crianças de sociedades exóticas. Os
resultados decepcionam-nos e concluem, quer que os povos em questão
tem uma inteligência inferior por razoes congênitas, quer que as
modalidades da sua existência pratica bloqueiam o seu desenvolvimento
mental. Em ambas as hipóteses, chocar-se-iam com uma inferioridade de
facto. Ora nos sabemos que isto não e assim: as crianças
escolarizadas dessas sociedades limitam-se a aprender de cor,
esquecem depressa e fazem poucos progressos porque não lhes deram os
meios de organizarem e estruturarem os seus novos conhecimentos
segundo as normas intelectuais em vigor na sua civilização. Desde que
se faça um esforço nesse sentido, os resultados melhoram de maneira espetacular.
Seria
então preciso que os nossos educadores se improvisassem em etnógrafos
de uma sociedade que já não é aquela onde os métodos que eles
aprenderam se aplicavam. Mas se novos métodos permitem interessar a
criança naquilo que faz, a ajudam a compreender e a apreciar o que
lhe ensinam, em lugar de o aprender de cor, a finalidade tradicional
da escola não sera por isso modificada. Para a criança, tratar-se-a
sempre de aprender; melhor, sem duvida, e de maneira mais inteligente
do que conseguia anteriormente, mais aprender na mesma, ou seja,
assimilar conhecimentos e outras aquisições do passado.
E
não e o mais grave. Com efeito, teve-se muitas vezes a impressão de
que, para outros participantes e certos elementos do publico, se
tratava, de maneira aberta ou insidiosa, de contestar a missão
tradicional da escola. Como se desejar que a criança aprenda
constituísse, ao mesmo tempo, um empreendimento inútil e um atentado
a sua liberdade; e como se os recursos intelectuais e espontaneidade
próprios a criança se bastassem a si mesmas, excluindo toda a obrigação e deixassem a escola, como único papel, não entravar o seu
livre desenvolvimento. Em apoio desta tese, ouviu-se mesmo alguém invocar os trabalhos justamente celebres de Piaget. O mestre de
Genebra sem duvida que teria ficado muitíssimo surpreendido com isto,
pois jamais pretendeu que as estruturas mentais cada vez mais
complexas que surgem, segundo ele, nos sucessivos estádios de
desenvolvimento da criança pudessem organizar-se e ordenar-se na
ausência de toda a disciplina externa. De resto estas estruturas tem
um carácter formal e ficariam vazias e inoperantes se não se
exercessem sobre um adquirido de conhecimentos cujo aprovisionamento
constitui um dos objetivos da escola. Mas há mais; porque hoje se
apercebem de que os resultados de Piaget, dos quais ninguém sonha em
minimizar a importância, devem ser interpretados em função de uma problemática muito diferente, que se relaciona a neurofisiologia.
Pelo menos entre os vertebrados superiores, apos o nascimento e
durante a maior parte da infância, as estruturas cerebrais
conservam uma grande plasticidade.
No
entanto, os mesmos educadores que achavam admirável que
se exercite a criança a bater-se contra objetos materiais como
pigmentos coloridos, papel, pinceis, barro, tabuas e perpianhos,
indignam-se que se lhe possa pedir que reaja, numa composição francesa, ao texto de um autor morto ou vivo, porque dizem-nos, a
criança não o pensou ela própria. Como pode não se ver que a situação e a mesma, num e noutro caso? Em ambos, convida-se a criança a
defrontar uma realidade ou um conjunto de realidades estranhas, de
natureza material ou espiritual; espera-se dela que comece por se
aperceber das suas propriedades características, que as assimile;
enfim, contra as resistências que elas lhe opõem — quer seja ao
manipula-las, quer seja ao compreende-las —, que ela faca obra
pessoal ao produzir uma síntese original a partir de todos esses
elementos.
A
coação da escola, que se comprazem em denunciar, não
e senão um aspecto ou uma expressão da coação que toda a realidade —
e a sociedade e uma — exerce normalmente sobre os seus membros. E
de bom tom ridicularizar ou estigmatizar a resistência que o meio
social opõe as obras inovadoras. E não ver que, no seu estadio final,
essas obras devem tanto a este meio como ao impulso criador que as
leva a contornar as regras tradicionais e, em caso de necessidade, a
viola-las. Toda a obra memorável a também feita das regras que obstam
ao seu nascimento — e que ela teve que transgredir —• e de
regras novas que, uma vez reconhecida, ela imporá por seu turno.
Escutemos, a este respeito, a lição de um grande criador, numa obra
que e, ela própria, consagrada a criação: refiro-me a Richard Wagner
e aos Mestres
Cantores (1), com
as minhas desculpas pela desajeitada tradução:
Aprendei
as regras dos mestres
Vara
que elas vos ajudem a preservar
O
que nos vossos mais verdes anos
A
primavera e o amor vos tenham revelado.
E
mais adiante:
Criai
as vossas próprias regras, mas segui-as.
Que
não há contestação possível se não houver nada para contestar, e
uma lapalissada; mas ela tem o mérito de sublinhar que a resistência
e o esforco para a vencer são necessários ao mesmo título. Para que
as Flores do Mal e Madame Bovary pudessem existir, foi
preciso, primeiro, que existissem Baudelaire e Flaubert, mas também
teve que haver uma coação exercida hic et nunc que obrigava a
desvios pelas vias da imaginação; senão, essas vias nunca teriam sido
abertas. E, em todo o caso, te-lo-iam sido de outra maneira. Porque a
obra criadora resulta de uma arbitragem e de um
compromisso: entre a intenção inicial do criador — mas, neste
estadio, ainda informulável — e as resistências que ele teve que
vencer para a exprimir. Estas são as resistências que ao artista
opõem a técnica, as ferramentas, o material; ao escritor, o
vocabulário, a gramatica, a sintaxe; mas também, a ambos a opinião e
as leis. Toda a obra de arte e revolucionaria, seja, mas não o pode
ser senão ao atuar sobre o que subverteu. O seu caracter inovador
(que desapareceria se nada houvesse perante ela) vem-lhe de ela
morder no obstaculo, mas não sem lhe ceder e se modelar, ainda que
pouco, sobre ele. A obra-prima e então feita, ao mesmo tempo, daquilo
que e e daquilo que nega, do terreno que conquista e da resistência
que encontra. Resulta de forcas antagônicas que compõe, mas a cujo
impulso e contra-impulso fica a dever esta vibração e esta tensão que
nela admiramos.
Os etnólogos estudam sociedades a quem não se poe o problema
da criança criadora; e a escola também não existe nelas. Naquelas que
eu conheci, as crianças ou brincavam pouco, ou não brincavam
absolutamente nada. Com maior rigor,
as suas brincadeiras consistiam na imitação dos adultos. Esta imitação levava-as de maneira insensível a participar a serio nas
tarefas produtoras: quer fosse para contribuir, na medida do que
podiam, na procura de alimentos, quer fosse para cuidar dos mais
novos e distrai-los, quer fosse para fabricar objetos. Mas, na maior
parte das sociedades ditas primitivas, esta aprendizagem difusa não
basta. E também preciso que, num momento determinado da infância ou
da adolescência, se desencadeie uma experiência traumática, cuja duração varia, conforme os casos, entre algumas semanas e vários
meses. Entremeada de provas freqüentemente muito duras, esta iniciação, como lhe chamam os etnólogos, grava no espirito dos
noviços os conhecimentos que o seu grupo social tem por sagrados. E também poe em ação aquilo a que chamarei a virtude das emoções fortes —ansiedade, medo e orgulho — para consolidar, de maneira
brutal e definitiva, os ensinamentos recebidos no decurso dos anos em
estado diluído.
As
sociedades estudadas pelos etnólogos tem pouco gosto pela
novidade: elas justificam os seus costumes pela antiguidade que lhes
atribuem. Pelo menos para aquelas cujo efetivo demográfico não
ultrapassa alguns milhares de indivíduos e que, por vezes, nem chegam
a atingir a centena, o ideal — impossível, claro, de respeitar —
seria permanecer tal como, segundo os mitos, os deuses as criaram no
alvor dos tempos. No entanto, nessas sociedades não industriais, cada
um sabe criar por si mesmo todos os objetos artesanais que lhe
apetece usar. Que não se fale, aqui, de imitação instintiva: as mais
humildes técnicas dos chamados primitivos fazem apelo a operações manuais e intelectuais de uma grande complexidade que e preciso ter
compreendido e aprendido e que, de cada vez que se executam, reclamam
inteligencia, iniciativa e gosto. Não e qualquer arvore que e própria para fazer um arco, nem mesmo qualquer parte da arvore; a exposição do tronco, o momento do ano ou do mês em que a abatem iao-pouco são indiferentes. Os gestos feitos para desbastar, trabalhar e polir a
madeira, preparar a fibra destinada a corda e aos ligamentos, enrolar
e apertar estes, tudo isto implica experiência, jeito, julgamento. O
homem consagra-se inteiramente a estas tarefas, investe nelas o seu
saber, a sua habilidade, a sua personalidade; o mesmo quanto a
ceramista ou a tecedeira. As diferenças em relação a obra do vizinho
podem ser minimas, indiscerníveis a vista não treinada. O pratico
distingue-as e elas inspiram no seu autor um legitimo orgulho.
Ao
querermos fazer dos nossos filhos criadores, estaremos a
espera somente que, como o selvagem ou o camponês das idades
pré-industriais, ele saiba fazer sozinho o que o seu vizinho também faz, mas no respeito por normas estabelecidas de uma vez por todas,
ou pedimos-lhe algo mais? Reservaríamos então o nome de criação para
aquilo que, no plano material ou espiritual, represente uma
verdadeira inovação. Os grandes inovadores são, e claro, necessários a vida e a evolução das sociedades: para alem de um tal talento poder
— e disso nada sabemos —• ter bases genéticas (pondo de parte
que ele exista em estado latente em toda a gente), também nos devemos
interrogar sobre a viabilidade de uma sociedade que desejasse que
todos os seus membros fossem inovadores. Parece muitíssimo duvidoso
que uma tal sociedade se possa reproduzir e ainda menos progredir,
uma vez que se entregaria permanentemente a dissipar as suas aquisições.
Talvez
tenhamos assistido a um fenômeno desta ordem em
certos sectores da nossa própria cultura, no das artes plasticas em
particular. Desvairados com as duas inovações maiores constituídas,
na pintura, pelo impressionismo e pelo cubismo, que se sucederam uma
a outra no lapso de poucos anos, atormentados sobretudo pelos
remorsos de não as termos sabido reconhecer logo de principio,
impusemo-nos como ideal, não o que inovações fecundas poderiam ainda
produzir, mas sim a inovação em si mesma. Não contentes por a termos
de algum modo divinizado, imploramos diariamente que ela nos traga
novos testemunhos da sua omnipotência. O resultado esta a vista: uma
cavalgada desenfreada de estilos e maneiras, ate na obra de cada
artista. Afinal de contas, foi a pintura como gênero que não
sobreviveu as pressões incoerentes que se exerceram sobre ela, para
que não cessasse de se renovar. Outros domínios da criação sofrem o
mesmo destino: toda a arte contemporânea esta presentemente numa situação aflitiva. Que a recente evolução da pintura atue com tao
grande peso sobre os métodos pedagógicos que pretendem libertar a criança e estimular os seus dons criadores e razão mais do que
suficiente para que estes respirem alguma desconfiança.
Regressemos então ao sentido subjectivo, mas meçamos também a largura do fosso que, na nossa civilização, separa a ambição, mesmo
modesta, que este sentido implica, das oportunidades que temos de a
traduzir na pratica. Lembro--me da exaltação de duas jovens
americanas durante uma estadia em Franca, quando lhes revelaram que a
baunilha e uma vagem e como, a partir de um ovo, qualquer um pode
fazer uma maionese por suas mãos. Para elas, essas substancias e os
seus respectivos sabores pertenciam ate então a um reportório anonimo, feito de carteiras e caixas a cujo conteúdo atribuíam, em
algumas doses, uma mesma uniformidade de origem. Logo que conexões insuspeitadas se estabeleceram no seu universo mental, sentiram-se
reintegradas num devir histórico. Ao cumprirem gestos humildes,
participavam numa criação.
Este
exemplo trivial faz-nos por o dedo no
drama
de civilização,
que, muito antes de se repercutir em crise pedagógica, esta na raiz
de um problema a que não pudemos fazer mais do que sobrevoar. Os
nossos filhos nascem e crescem num mundo feito por nos, que antecipa
as suas necessidades, previne as suas perguntas, os encharca de soluções. A este respeito, não vejo diferença entre os produtores
industriais que nos inundam e os ≪museus imaginarios≫ que, sob a
forma de coleções de livros de bolso, de álbuns de reproduções e de exposições temporárias em jacto continuo desvitalizam e embotam o
gosto, minimizam o esforco, baralham o saber: vãs tentativas para
acalmar o apetite bulímico de um publico sobre o qual desabam
desordenadamente todas as produções espirituais da humanidade. Que,
neste mundo de facilidades e desperdício, a escola continue a ser o
único sitio em que e preciso ter trabalho, sofrer uma disciplina,
passar por vexames, progredir passo a passo, viver, como se costuma
dizer, ≪no duro≫, não e coisa que as crianças aceitem, pois já não a podem compreender. Dai a desmoralização que as invade, quando
sofrem toda a especie de coações para as quais tanto a família como
a sociedade não as prepararam e as consequências por vezes trágicas desta inadaptação.
Resta
saber se e a escola que esta errada, se e uma sociedade que perde
cada vez mais e todos os dias o sentido da sua função. Ao pormos o problema da criança criadora, enganamo- nos
no tema: porque somos nos próprios, tornados consumidores
desenfreados, quem se mostra cada vez menos capaz de criar.
Angustiados pela nossa carência, esperamos a vinda do homem criador.
E como não nos apercebemos dele em parte alguma, viramo-nos, em
desespero de causa, para os nossos filhos.
Temamos,
no entanto, que, ao sacrificarmos as rudes necessidades
da aprendizagem aos nossos sonhos egoístas, acabemos por lançar a
escola pela borda fora, com tudo aquilo que ela ainda representa, e
que venhamos a privar os nossos sucessores do pouco que ainda
permanece solido e substancial na herança que podemos deixar-lhes.
Seria aberrante pretender iniciar os nossos filhos na criação pelas
vias da arte, recorrendo a métodos pedagógicos inspirados pelos
frutos ilusórios da nossa esterilidade. Reconheçamos ao menos que procuramos nisso uma consolação: ao fazermos da criança a medida do criador, damos a nos próprios uma desculpa por termos deixado a arte
regredir ao estadio do jogo, mas sem termos tido o cuidado de não abrirmos a porta a confusões muito mais graves entre o jogo e os
outros aspectos sérios da vida. Ai de nos, nem tudo na vida e jogo. E
aos jovens espíritos que nos incumbe formar que se fica a dever esta lição fundamental que nos convidam a calar, para a satisfação, na
verdade bem ingenua, de justificar aquilo a que ainda se chama arte
pelos exercícios atraentes de que, sob o colorido de reforma pedagógica, proporciona ocasião as crianças; exercícios em que, no
entanto, os próprios adultos podem encontrar — e nada mais — um
muito vivo agrado.
Fonte: LÉVI-STRAUSS,
Claude – “Palavras retardatárias sobre a criança
criadora” In O Olhar Distanciado. Tradução de Carmen
de Carvalho. Lisboa: Edições 70, 1986 (Perspectivas do Homem; 24)
pp. 373-386