segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O que uma pessoa deveria aprender antes de opinar sobre educação.





(…) Ninguém que adora a educação aproveitou máximo dela, ninguém que sacrifica tudo pela educação é sequer educado. Não preciso mencionar aqui os muitos exemplos recentes dessa monomania, que rapidamente se torna uma perseguição louca, como a absurda perseguição das pessoas que vivem em barcos. O que está errado é o desprezo de um princípio; e o princípio é que sem um gentil desprezo pela educação, nenhuma educação de um gentil-homem está completa. (…)A educação deve ser uma lanterna dada a um homem para explorar tudo, mas muito especialmente as coisas mais distantes dele. A educação tende a ser um holofote que está centrado em si mesmo. Alguns aprimoramentos podem ser feitos colocando holofotes igualmente luminosos e talvez vulgares nas outras pessoas. Mas a cura final é desligar as luzes da ribalta e deixá-lo perceber as estrelas. 

Gilbert Keith Chesterton A superstição da escola. 

Não tenhas qualquer hesitação, que seus ouvintes não são ignorantes, nem incrédulos, nem mal-intencionados. 

Platão – República, 450d4 


 Aquilo sobre o qual não podemos falar devemos silenciar. 


Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus,7



 A filósofa Viviane Mosé (ou, pelo menos, é assim que ela é anunciada) é uma autora que nunca chamou minha atenção. Tempos atrás, vi menção a um livro de sua autoria, A escola e os desafios contemporâneos (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013). Entretanto, num breve lapso (que Deus me perdoe!), confundi seu sobrenome com o da historiadora francesa Claude Mossé, já nonagenária, acreditando que a renomada helenista dedicou-se a uma temática contemporânea. A diferença foi um “s”. Desfeita a gafe, noto que é produto nacional, cujo conteúdo não atendia meus critérios de qualidade e rigor intelectual, deixei de lado.
No final de julho deste ano, terminado o recesso escolar, volto a lecionar. Na reunião de planejamento a coordenadora pedagógica anuncia a exibição de um vídeo de Viviane Mosé, via YouTube. Tratava-se de sua participação num Café Filosófico de 2009 intitulado prescritivamente “O que a escola deve aprender antes de ensinar”. O vídeo de 49 minutos, edição de uma palestra de mais de duas horas, também disponível no YouTube, apresenta as concepções da filósofa sobre a função da escola.
Após cerca de 10 minutos de exibição, meus colegas já demonstravam insatisfação e mesmo indignação com as ideias de Mosé e sua maneira de apresentá-las. “Ela nunca entrou numa sala de aula… como ela é niilista!”. Devido ao adiantado da hora, a exibição foi interrompida, para ser retomada na íntegra mais tarde num ATPC (1), uma semana depois. A exibição do vídeo não alterou a percepção negativa de meus colegas, e também as minhas. Não poderia ser diferente. Numa atmosfera onde predomina o desencanto e pessimismo, como a rede estadual paulista, um discurso que parece tratar os educadores como idiotas, igualando-os a carcereiros e que pede para o professor renunciar o ato de educar em nome de uma psicologia barata disfarçada de filosofia merece todo repúdio.
Não tenho o costume de escrever e publicar no “calor da hora”, porém, as concepções de Viviane Mosé vão de encontro a valores que me são caros na reflexão educacional e, sua maneira equivocada de apresentar as questões merecem algumas considerações críticas de minha parte. E após longo tempo enfrentando bloqueio momentâneo da escrita, o dever se impõe e retomo meus textos autorais no Labirintos do Ser. Nada melhor do que recomeçar com um tema que mobiliza minhas forças. Um mês depois, está aqui o resultado de minhas reflexões. Tudo o que está redigido aqui é de minha inteira responsabilidades.
Sinto muitíssimo a quem é admirador incondicional da figura a quem vou criticar. O que seriam algus parágrafos, um mes  atrás, tornou-se este ensaio. No entanto, é imperioso desmontar um discurso que aprisiona os professores em armadilhas equivocadas quanto às práticas educacionais. Talvez isto nada signifique por quem considera paradigma de verdade (ou pelo menos, veracidade) personalidades midiáticas de retórica vazia e escasso estofo intelectual. Mas falo a partir de minhas convicções, afinidades intelectuais, conhecimentos e leituras acumulados; pois, o que você sabe, conheceu, aprendeu e conquistou pelos próprios esforços, ninguém vai tirar. É difícil lutar para ser um bom professor diante de discursos que só nos faz sentir piores. Encaro minha pequenez diante de potestades midiáticas e acadêmicas e defendo o que acredito. O professor do ensino fundamental e médio precisa se assumir como intelectual (por mais desgastada que esteja essa palavra) e produzir e publicar seus próprios constructos discursivos, falar em nome próprio.

A autora em questão, nascida em Vitória (Espírito Santo) no ano de 1964, cuja formação básica é em psicologia e psicanálise (embora tenha encontrado muito pouco de propriamente psicanalítico nesta conferência), não é propriamente uma especialista em educação, no sentido de alguém dedicado a pesquisa, reflexão e ensino de aspectos da filosofia, história e sociologia da educação, nos seus aspectos teóricos e empíricos, ou que versa sobre didática e administração escolar. O que não significa que um catedrático em alguns destes campos esteja isento de pronunciar bobagens. O que se espera do especialista é o rigor empírico e conceitual no trato dos temas complexos em discussão.
 Sua formação inclui especialização em “Elaboração e implementação de políticas públicas” pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, além de mestrado e doutorado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Sua pós-graduação em filosofia versa sobre aspectos da filosofia de Nietzsche. Também é comentarista da CBN e apresentou um quadro no Fantástico anos atrás, além de participações no programa de Fátima Bernardes. Mais uma psicóloga que fala sobre educação, além de colunista global não me animaria muito a escrever,
Creio que seu interesse pela educação venha do fato de ter lecionado psicologia do desenvolvimento para professores do ensino fundamental, maternal e jardins de infância. Não localizei um currículo lattes, no estilo do da CNPq, da filósofa capixaba, deduzindo que não é uma pessoa ligada à academia, porém mais próxima do terceiro setor e à mídia. Esse fato produz um viés que comentarei no decorrer de minha exposição. Incluo Viviane Mosé na categoria que denomino de “pensadores midiáticos”, no sentido mais vago da expressão pensador.

O centro da argumentação de Mosé pode ser resumido da seguinte forma:

A escola é uma instituição que veicula um saber abstrato (fruto da tradição platônica), fragmentado, segmentado, isolado da sociedade; conteudista, desvinculado da realidade concreta dos alunos; moldada por relações hierárquicas, na qual somente os alunos precisam respeitar os professores e não o contrário. Diante desta realidade, a escola, que teria o dever de formar pessoas para enfrentar problemas do dia a dia, sejam políticos, econômicos, afetivos entre outros, produz apenas “imaturos políticos”. Essa expressão ela toma emprestado de um psicólogo português, Rui Canário (2), doutor em Ciências da Educação e professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Segundo este autor:

A crescente escolarização das nossas sociedades se concomitante com o agravamento de problemas de natureza social (…). As promessas iluministas do triunfo da razão, de que a escola é, historicamente, herdeira e executadora, e cuja concretização a ciência e a técnica deveriam facilitar, encontram na imaturidade política dos nossos modos de governo social um obstáculo intransponível. (…) Na centralidade da missão atribuída à escola na promoção da cidadania que contrasta com um fenômeno de retrocesso na participação política, nas sociedades mais ricas e escolarizadas (…) A crescente insatisfação com a escola traduz-se por uma intensidade da procura e pela opção por per­cursos escolares mais longos, como se a escola se tivesse transformado num ´mal necessário´. (…) essa perda de coerência é externa, na medida em que a escola foi historicamente produzida em consonância com um mundo que deixou de existir. (…) o funcionamento interno da escola não é compatível com a diversidade dos públicos com que passou a estar confrontada, nem com as missões “im­possíveis” que lhe são atribuídas. (…) a escola participa de um fenômeno de “desinstitucionalização” que é indissociável do declínio da sua articulação com o Estado-Nação. (…) para alguns a escola já não é uma instituição e quer a organização escolar, quer a forma escolar, aparecem feridas de uma irreversível obsolescência. A consequência desta mutação é uma perda de sentido do trabalho realizado na escola (…) exprimem-se pela ´violência escolar´, a ´indisciplina´, o absentismo, o abandono, os baixos níveis de li­teracia, após muitos anos de escola. Do ponto de vista dos professores são conhecidas as manifestações de ´mal-estar docente” (3).

Considero vago e impreciso o termo “imaturidade política” (a não ser que se pretenda um uso metafórico). Seria possível mensurá-la de alguma forma? Em especial em tempos maniqueístas como o atual, onde vigora o “nós” contra “eles”. Padece de um certo organicismo, bem de acordo com a formação de psicólogo de Rui Canário. A consciência e participação acontecem num plano prático. Certamente alguém que vota num candidato em troca de uma cesta básica ou algo parecido, ou ainda porque achou a aparência do sujeito agradável é bem diferente daqueles que escolhem com base em suas convicções, leituras e reflexões. As pessoas se orientam, algumas por teorias, outras por informações clicadas aqui e ali, bem ou mal refletidas. Há uma parte de cálculo racional, outras motivações mais inconscientes, preconceitos, afinidades eletivas. Não é um processo totalmente mensurável.

Hannah Arendt considera a política uma relação entre adultos, pessoas já educadas. À escola está reservada outra prioridade. A formação de um sujeito que vai herdar o mundo. O dispositivo escolar não é simplesmente um microcosmo da sociedade adulta Vejo um peso desnecessário colocado sobre a escola e professores nas colocações de Canário. Mas discutirei esse tópico noutra ocasião (4).

Por fim, faz menção a crítica de Edgar Morin à educação contemporânea, sintetizada num documento que produziu para a Unesco. Acredito que não foi feita muita justiça ao pensador da complexidade, cujas reflexões foram associadas de modo apressado ao famigerado “aprender a aprender”, slogan da pedagogia neoliberal, viés que não tem relação alguma com o pensamento de Morin. Curiosamente, os conceitos desse filósofo são apropriados de forma bem pouco “complexa”; servindo mais para justificar certas opções teórico e metodológicas e estigmatizar posturas divergentes. De modo que Morin instituiu algo “novo’, que não se sabe bem o que é, mas que tudo o que veio antes deve ser descartado por causa disso.

Acredito que vale a pena problematizar esta ênfase negativa atribuída à “fragmentação” e/ou “especialização” do conhecimento. Provocativamente podemos argumentar que nem tudo é tão interdependente assim: alguns saberes são elaborados de uma forma, enquanto outros de forma distinta; alguns têm componentes bastante estritos e outros componentes diversos, alguns são antiquíssimos, enquanto outros surgiram mais recentemente. Pretender abarcar esses conhecimentos apenas enquanto conjunto significa ater-se aos aspectos mais comuns, sacrificando as particularidades inerentes a cada conhecimento, sociedade ou cultura. Há diálogos ricos, outros pouco relvantes, e mesmo inviáveis. Certamente a especialização é ambivalente: permite à humanidade usufruir mais conhecimento do que antes, mas pode estreitar o intelecto e inviabiliza a visão de conjunto e as relações entre os saberes. Há custos e ganhos intelectuais na fragmentação e especialização. O tom um tanto romântico e apocalíptico de Morin parece desproporcional e merece uma avaliação mais rigorosa (e não da forma quase mítica como seu pensamento vem sendo apropriado em certos círculos intelectuais brasileiros).

Basicamente a palestra se resume a slogans, facilmente reconhecíveis por quem já frequentou um curso de pedagogia ou licenciatura ou acompanha os lançamentos e noticiário sobre educação. Redundantes, cito umas frases pinçadas do discurso de Mosé:

A escola não ensina para a vida em sociedade, nem afeto para viver. “não fala de morte, de afeto, de vida”. “Não prepara para o mercado”.
Deve-se “inverter a lógica escolar”. A palavra ensinar deve ser eliminada do vocabulário do educador.
Quando o professor, ele é o centro da questão” (…) “[exerce um] poder hierárquico que atrapalha a relação de conhecimento. “
Só aprendemos o que nos toca afetivamente”
Ninguém ensina o que o outro não percebe (…)” [ou] seja estimulado”

[falando do momento global, com a ostensividade das mídias digitais] “o professor não tem condições de saber mais que o aluno”. Hoje “todo mundo sabe”

Todo este conteúdo é apresentado num discurso um tanto afetado e pedante, onde pouco espaço é concedido à contradição e à dúvida, de modo que “a escola sempre foi assim...”; “o mundo contemporâneo tem a seguinte configuração”. Como salientei acima, as informações são apresentadas de forma categóricas, quase imperativas,. O tom afirmativo é amplificado pelo ambiente artificial e asséptico do Café Filosófico da /Cultura. O público, atencioso, mas não parece interessado em encostar a participante na parede com questionamentos mais afiados e melindrosos. Fica a impressão de que a palestrante está vendendo seu produto, esperando que todos concordem com ela. Enquanto os ouvintes apenas comparecendo a um evento descolado e esperando seus certificados de participação.

Há uma associação bastante infeliz do termo “disciplina” reduzindo-a ao seu aspecto mais caricato e degradante, isto é, àquela dos quartéis ou das galés ou o mero condicionamento de tipo behaviorista ou pavloviano. Falta-lhe conhecimentos etimológicos. Não é demérito alguns nas matérias ensinadas nas escolas e faculdades serem chamadas de disciplinas. Não parece atentar para a polissemia da palavra disciplina. Nenhuma sugestão à tenacidade, preparação minuciosa para um determinado objetivo… O que dizer dos atletas, iogues, monges, artistas plásticos que se esmeram em aperfeiçoar suas artes e formas de espiritualidade? Seriam todas vítimas inconscientes de algum sistema de opressão? Do mesmo modo a indignação de Mosé com a expressão “grade curricular” beira o ridículo. , pois dá a impressão de que professores e alunos de determinado curso estariam impedidos de tomar contato com outros professores e estudantes de outra disciplina. A expressão remete à organização das disciplinas de determinado curso, entre as obrigatórias e optativas, interdepartamentais ou não. Usando outra expressão a realidade muda pouco, pois não se inicia na medicina, história, engenharia e demais saberes sem elementos básicos. Pode-se construir pontes interdisciplinares noutro patamar.

Poderíamos entender as disciplinas (acadêmicas e escolares) da maneira proposta pelo historiador Peter Burke, “como artefatos históricos, gradualmente construídos num determinado tempo e lugar para responder a desafios e resolver problemas.” (Uma história social do conhecimento II, da Enciclopédia à Wikipédia, tradução: Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Zahar,2012, 212). definidas desta forma, estão longe

André Chervel, historiador, linguista e gramático francês, num importante estudo sobre a história das disciplinas escolares, apresenta uma genealogia e transformações do conceito:

No seu uso escolar, o termo “disciplina” e a expressão “disciplina escolar” não designam, até a fim do século XIX mais do que a vigilância dos estabelecimentos, a repressão das condutas prejudiciais à sua boa ordem e aquela parte da educação dos alunos que contribui para isso.(5)
(...)Na realidade, essa nova acepção da palavra é trazida por uma larga corrente de pensamento pedagógico que se manifesta, na segunda metade do século XIX, em estreita ligação com a renovação das finalidades do ensino secundário e do ensino primário. Ela faz par com o verbo disciplinar, e se propaga primeiro como um sinônimo de ginástica intelectual, novo conceito recentemente introduzido no debate. É durante a década de 1850, que marca o começo da crise dos estudos clássicos, que os partidários das línguas antigas começam a defender a idéia de que, na falta de uma cultura, o latim traz ao menos uma “ginástica intelectual”, indispensável ao homem cultivado. (…) As disciplinas são esses modos de transmissão cultural que se dirigem aos alunos. (...) Fruto de um diálogo secular entre os mestres e os alunos, elas constituem por assim dizer o código que duas gerações, lentamente, minuciosamente, elaboraram em conjunto para permitir a uma delas transmitir à outra uma cultura determinada. A importância dessa criação cultural é proporcional à aposta feita: não se trata nada menos do que da perenização da sociedade. As disciplinas são o preço que a sociedade deve pagar à sua cultura para poder transmiti-la no contexto da escola ou do colégio.(6) (…) quando a escola recusa, ou expulsa depois de uma rodada, a ciência moderna, não é certamente por incapacidade dos mestres de se adaptar, é simplesmente porque seu verdadeiro papel está em outro lugar, e ao querer servir de reposição para alguns “saberes eruditos”, ela se arriscaria a não cumprir sua missão., p. 182 (7)

Me estendi um tanto longamente no texto de Chervel para mostrar como o tema da disciplina é complexo e está além da mera associação à submissão e docilidade, muito comuns no discurso corrente. Dito de outra forma, por dois autores mais recentes: “(…) o estudo e a prática exigem esforço, uma espécie de disciplina. Se a atenção e o interesse estão presentes entre os alunos, então, eles estão dispostos a pagar o preço. Ou melhor, estudo e prática consistem em pagar esse preço repetidas vezes em momentos de dificuldade, e esse sacrifício merece o esforço porque o foco está sobre uma coisa mais importante.”(8)

Talvez o aspecto mais lamentável e destrutivo para o trabalho do professor de toda palestra seja a atribuição negativa a todo ato de ensinar que um professor proponha realizar. Friedrich Nietzsche e Edgar Morin não tem nada a ver com isto. Aqui temos uma apropriação degenerada do pensamento de Paulo Freire ( por si só bastante discutível quanto a sua viabilidade para públicos para os quais não foi elaborado, lembrando que o educador pernambucano fundamentou sua carreira na educação de adultos). Ensinar estaria no contra fluxo da “vida” e só produziria os “imaturos” de Rui Canário. Ensinar qualquer conteúdo, desde operações aritméticas ou como interpretar e resumir um texto constituiria uma espécie de violência. Aqui estamos diante de uma banalização do conceito de violência simbólica. No processo de constituição do sujeito existem certas imposições e interditos que são necessários e estruturantes. Não se trata de espancamentos e castigos, mas do estabelecimento da lei simbólica, que se apresenta ao sujeito na situação de aprendizagem e no confronto com o limite.  

O leitor pode se aprofundar neste tópico a partir do livro da psicanalista Maria Cristina Machado Kupfer Educação para o futuro: psicanálise e educação. (São Paulo: Escuta,1999, pp.167-168).

Este tipo de afirmação é inaceitável e falaciosa. É pedir para o professor abrir mão de sua característica profissional mais importante e também revela a desconsideração de um dado antropológico inerente às sociedades humanas, que é a transmissão de certos saberes, valores, tradições, normas e hábitos; sem os quais não haveria continuidade da cultura humana. É uma relação assimétrica com o Outro. Não é uma via de mão única, arbitrária. As rupturas, as mudanças, as revoluções acontecem porque existe este background internalizado, de onde se pode criar uma diferença que não emerge sobre um vazio. A criança não é igual ao adulto, no sentido ingênuo e caricato que se pretende impingir. Do mesmo modo, o processo educativo pressupõe certa hierarquia, entendida mais como organização e distribuição de funções, bem distante de uma devoção irracional.
Não há nada de original nas formulações abstrusas de Mosé. A concepção negativa do ato de ensinar e a ojeriza ao termo transmissão de conhecimento há décadas mobiliza parte da intelligentsia pedagógica. O professor Newton Duarte, da Unesp, num artigo sugestivamente denominado “Concepções Afirmativas e Negativas Sobre o Ato de Ensinar” enfrenta a questão da seguinte forma:
É muito instigante indagar sobre as razões que levariam tantos educadores e psicólogos a desvalorizarem algo que constitui a especificidade da atividade humana perante o comportamento animal: a capacidade de acumular e transmitir experiência, conhecimento. Luria é bastante claro ao afirmar que a grande maioria de nossos conhecimentos provém da transmissão da experiência acumulada historicamente. Se é assim, por que a prática pedagógica deveria rejeitar tal transmissão, ou tê-la como um objetivo menor? Tornou-se tabu no meio pedagógico falar em transmissão de conhecimentos já existentes. Aceita-se até que tal transmissão possa existir, desde que seja apenas um momento para se alcançar o mais desejável, a aprendizagem por si só. Não há dúvidas de que tal concepção revela a força que o ideário escolanovista tem até hoje.(9)
A forma pela qual Viviane Mosé pretende discorrer sobre o papel da escola pode ser caracterizada como uma variante do “abstracionismo pedagógico”, expressão utilizada pelo filósofo José Mario Pires Azanha para designar a “veleidade de descrever, explicar ou compreender situações educacionais reais, desconsiderando as determinações específicas de sua concretude, para ater-se apenas a “princípios” ou “leis” gerais que na sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar conta das situações focalizadas.”(10) Azanha não se refere a abstração enquanto operação intelectual mas, numa variação pervertida que despreza a riqueza do real, em sua multiplicidade de significados e contradições, levando em consideração apenas elementos que estão de acordo com o princípio abstrato. O “abstracionismo pedagógico” mobiliza constantemente “um jargão emprestado de teorias interessantes e por isso mesmo mais facilmente mistificadora e perniciosa.(11)
No entanto, “muitas vezes, o abstracionismo é apenas uma forma ingênua de encaminhamento do exame de um assunto, no qual o estudo da realidade é substituído por um jogo verbal semanticamente vazio. Outras vezes, porém, o abstracionismo mais parece ser um claro golpe de astúcia, ideológica ou não.(12). Não tenho dúvidas de que o assunto em questão pertence ao segundo caso.
Viviane Mosé, no início do vídeo, até que arrisca uma discussão interessante. Faz uma comparação entre o sistema escolar brasileiro dos anos 1950 e até meados da década de 1960; que possuía uma configuração sólida: humanidades, francês, línguas mortas, história e filosofia, artes plásticas e ofícios manuais. Havia uma preocupação com a formação do aluno. Esta foi a chamada “Escola Tradicional”, embora esse termo, salvo engano não seja mencionado. Naturalmente, há um contraponto, que era seu elitismo representado pelo exame de admissão.

Em seguida a filósofa trata da escola massificada pela Ditadura Militar, fenômeno também apresentado como uma democratização da escola pública (inclusive por eminentes sociólogos de esquerda como Celso de Rui Beisiegel, Marília Sposito e outros, fundamentados no fato de que existiam reivindicações populares por acesso à escola). A partir deste ponto a educação incorpora o paradigma taylorista, direcionado à formação de mão de obras de modo impessoal, homogeneizante, sob o tacão do esquema da linha de montagem fordista. Feito isso, Mosé passa para outro assunto e depois outro, quebrando o ritmo…
A questão da “escola tradicional”, conteudista, com clara assimetria entre professor e aluno, sem o contato com demandas mais imediatistas do mundo externo, constitui um dos temas mais melindrosos e truncados do campo educacional brasileiro. Se a massificação (ou democratização) permitiu o acesso a uma enorme parcela do povo brasileiro, cujo direito ao ensino era negado ou continuamente postergado, não resultou em crianças e adolescentes com bom rendimento quanto à alfabetização, letramento, operações matemáticas, uma cultura científica e humanística mínima, isso é aceito e discutido quanto às razões. Todavia, reconhecer algum valor na escola anterior à alegada democratização, em que pese o acesso restrito, é algo tratado como se estivéssemos caminhando numa calçada cheia de ovos espalhados. Ou o assunto é adiado por algum motivo (convém lembrar que é uma temática pouco pesquisada) ou você acabará acusado de “elitista”, discriminador e preconceituoso quanto o modo de vida das camadas mais pobres da nação, entre outras acusações vazias, porém de enorme efeito retórico. Um belo tema desperdiçado.(13)
Não se trata de negar que o dispositivo escolar produz e reproduz situações de violência, distinções e preconceitos de classe…Todavia ele não se reduz a apenas a isto, uma máquina de constrangimentos.

O que de fato se entende por escola? Uma instituição constituída por espaço físico, corpos e ideias? Que, configura e é transformada pela ação de sujeitos e suas relações, discursos e práticas. Inscrita no tempo e no espaço, mutável … Há muito de anacronismo neste tipo de julgamento. A escola contemporânea é um fenômeno complexo, derivado de vários processos, contraditórios e vale lembrar que:
Também uma escola é uma escola, e escola brasileira é escola brasileira, porém, a escola pública ou privada situada numa favela da periferia de São Paulo é distinta de outras escolas, públicas ou privadas, em condições socioeconômicas diferentes, ainda que todas se situem no Brasil, na mesma época.” (14)



Em 1984, o linguista francês Jean-Claude Milner publicou um livro que causou impacto muito forte e serviu de referência àqueles que não se conformam com um discurso ideológico calcado nas injunções da grande mídia, empresariado e correntes pedagógicas com forte acento psicologizante na instituição escolar e no trabalho do educador. A obra, singelamente intitulado “De L’École” (Da Escola) diz o seguinte a respeito da função primordial do dispositivo escolar:
Falar de escola, é falar de quatro coisas: (1) conhecimento; (2) transmissão de conhecimento; (3) Especialistas responsáveis ​​pela transmissão de conhecimento; (4) uma instituição reconhecida, que tem a função de unir, de uma maneira regulamentada, especialistas que transmitem e os temas a que é transmitido. Cada uma destas quatro coisas é necessária, de modo que negar uma delas é negar a existência da escola.” (15)
Assim, não quero dizer que todo o conhecimento seja transmissível; nem mesmo dizer que todo o conhecimento transmitido é ou deveria ser transmitidos pela escola; isso não quer dizer que os especialistas que o transmitem saibam de tudo o que há para saber, (….). Sem dúvida, você pode sempre adicionar outras determinações às quatro determinações essenciais. Por exemplo, pode-se desejar que a escola possa tornar o aluno feliz, contribuir para a boa saúde física e mental, permitir um uso racional do telefone ou televisão, etc. Não há nada a de errado com isso, desde que lembrar que são benefícios adicionais, secundários: tornar as determinações adicionais nas principais funções da escola significa realmente renunciar determinações essenciais. Assim será o fim da escola.” (16)
A abordagem educacional veiculada pela palestrante e autores assemelhados é escancaradamente dogmática e, ainda mais, maniqueísta. "Tradição" contra "inovação"; "Autoridade" contra "não-diretivo", "educação" contra a "aprendizagem" como se não houvessem gradações de cinza. Esvazia e paradoxalmente superdimensiona o poder da escola. Omite o que é o principal e põe em evidência elementos secundários que poderiam abordados por outras instâncias, fora da escola.
Com toda sinceridade, não vi nada de excepcional no conteúdo deste Café Filosófico. Apenas um endosso, requentado, da crítica escolanovista à chamada escola tradicional ( …), do mesmo modo remete à sociologia francesa dos anos 1969-1970, em especial Bourdieu e Passeron, apropriada no Brasil da forma superficial e mecanicista possível, além de elementos do relatório de Jacques Delors para a UNESCO. Ecos do supervalorizado Vigiar e Punir de Michel Foucault ainda animam os bem-pensantes a equiparar o trabalho do professor ao do carcereiro. 



Mosé se vale de um método muito utilizado pela grande mídia e consultores do mundo corporativo: trata-se de apontar uma tese a priori e buscar argumentos que a reforcem, ignorando raciocínios que problematizem e contradigam suas premissas. No mais, são slogans psicológicos estereotipados, saturados de determinismo, que distorcem aspectos históricos, conceituais e a prática cotidiana do educador. 
De uma doutora em filosofia esperava um construto mais elaborado, nuançado, aberto à contradição e ao inesperado. Mas assisti apenas um arremedo do pior que o pensamento pedagógico de certa parte da esquerda e dos setores mais mercantilistas da educação podem conceber. Querer justificar este engodo afirmando o tempo delimitado de um programa televisivo e o auditório heterogêneo por si só impediu maiores aprofundamentos é uma piada de mau gosto.
Talvez exista um motivo a mais para a hostilidade de Mosé com ralação ao pensamento de Platão e seus desdobramentos na cultura ocidental (e para além da crítica nietzschiana, por mais pertinente que seja). O filósofo grego criou o termo “doxósofo”, que foi retomado contemporaneamente pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). doxosófo, segundo Bourdieu (17), é o técnico-da-opinião-que-se-crê-cientista, que filosofa a partir da aparência das coisas, e constrói conjecturas que, por força dos interesses econômicos, corporativos ou de classe que expressam, adquirem um estatuto de teses “respeitáveis” ou “científicas” enunciadas em nome da “sociedade” ou do “povo”. Criticar e despojar essas construções de sua aura de “conhecimento inquestionável” é a tarefa que propus fazer neste ensaio, dentro de minhas limitações.
Mais do que filosofia, predominou um discurso centrado na mais rasteira psicologia do desenvolvimento, que coloniza o campo educacional há décadas.. Considero a psicologia um saber pobre, sem identidade que, no contexto brasileiro, serve apenas para estigmatizar determinadas crianças e jovens e desqualificar o trabalho do educador. Georges Canguilhem, filósofo francês, qualifica a psicologia como: "uma filosofia sem rigor, uma ética sem exigências e uma medicina sem controle." (O que é a Psicologia? Conferência no Collège Philosophique em 18/12/1956. Revista Tempo Brasileiro n. 30-31, 1973, p.105). Voltarei a este assunto.
Seria tentador insinuar que todos os “pensadores midiáticos” estão interessados na busca por reconhecimento intelectual, vaidade e prestígio acadêmico ou meramente encher o próprio bolso (o que por si mesmo não é problema algum). Mas não é algo tão simples assim.

A educação é um tema que todo mundo adora opinar, independente de posição política, formação acadêmica ou profissional. Todo mundo que passou por uma formação escolar e guarda lembranças dos mais diversos tons. Não é um mal dar pitacos sobre o assunto, mas a mera experiência pessoal e achismo são insuficientes para formar algo pertinente. Torna a pessoa uma “alma decente”, conectada com as demandas mais prementes da contemporaneidade: justiça, cidadania, equidade, direito de construir o seu destino, trabalhar etc., mesmo que esteja pronunciando obviedades ou ideias que não tenham ligação alguma com o assunto tratado.
Entretanto, destrinchar os meandros da política educacional em seus aspectos, administrativos, jurídicos e econômicos, pouca gente tem coragem de fazer. Mas do alto de uma cátedra afirmar o que o professor deve ou não fazer ou julgar dado fato que apareceu na mídia é algo muito fácil. Há uma necessidade imediatista de respostas, por vezes simplista, para questões urgentes, que demandam enormes ponderações, que não acompanham o ritmo acelerado das mídias e das redes sociais. A educação é uma delas. Não dá retorno imediato e alivia as consciências...



Enfim foi um café requentado – destinado a paladares pouco exigentes, espíritos mornos – cujo sabor pode ser amargo para quem deixa o senso crítico do lado de fora. Afinal, dos verdadeiros cafés filosóficos do século das Luzes e das boêmias dos séculos XIX e XX podia se esperar embates mais aguerridos e bem menos assépticos. Algo ocorreu no seu processamento dos grãos que acabou comprometendo sua qualidade. Talvez seja um produto de origem duvidosa (mais humilde) apresentado como gourmet.
Não há dúvida de que existam intelectuais, acadêmicos ou fora das salas de aula, que possuam um pensamento mais elaborado e comprometido com as reais dificuldades do campo educacional (entre outros assuntos). Mas dificilmente seriam convidados para um café filosófico.

PS: A imagem que ilustra a postagem é do fotógrafo francês Robert Doisneau (1912-1994) chamada La Libellule, École de la rue de Verneuil, Paris, mai 1956. Faz parte de uma série de imagens captadas nos anos 1950, sobre o cotidiano de escolas francesas. Facilmente encontráveis no Google estas fotos passam certa ideia de que o ensino escolar é um fim em si mesmo, lugar dos professores e alunos. Bem distante do quadro caricato pintado por Viviane Mosé e outros. Trata-se de um ideal da Escola da República, muito forte na sociedade francesa, oriundo do século XIX. Passa por uma crise severa, mas pode ser reconfigurado sem perder sua identidade. Escola pública, gratuita e laica, distinta das demandas familiares e do imediatismo da sociedade, que transmita conhecimentos sólidos é a escola de que precisamos.


Notas:
1. ATPC (Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo) é uma atividade desenvolvida na unidade escolar, pelos professores e os Professores Coordenadores Pedagógicos, visando o desenvolvimento das atividades coletivas da unidade escolar implementando o seu trabalho pedagógico, o acompanhamento e avaliação do processo de ensino e aprendizagem, a reflexão sobre a prática docente, além do perfeiçoamento individual e coletivo dos educadores.
2. Dentre os pedagogos portugueses que tem certa presença no campo brasileiro, como António Nóvoa e Izabel Alarcão, Rui Canário é o mais próximo do pensamento de Paulo Freire. Não noto muita diferença entre ele e o que é produzido aqui no Brasil, por vezes, de manira mais pertinente. Talvez pelo acentuado teor psicologizante de suas concepções. De sua autoria há o capítulo: Canário, R. Escola – crise ou mutação? In A. Prost., A. Antunes & A. Nóvoa (orgs), Espaços de educação tempos de formação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 141-151. Serve como uma síntese de suas ideias.
3. CANÁRIO, Rui . Escola – crise ou mutação? In A. Prost., A. Antunes & A. Nóvoa (orgs), Espaços de educação tempos de formação . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002 p.146
4. Remeto ao clássico e fundamental artigo de Hannah Arendt “A crise na Educação”. In Entre o Passado e o Futuro, São Paulo: Perspectiva, 1972 , pp.221-247
5. CHERVEL, A História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, 1990
6. André Chervel op. cit., p. 225. Logo após a I Guerra Mundial, enfim, o termo "disciplina" vai perder a força que o caracterizava até então. Toma-se uma pura e simples rubrica que classifica as matérias de ensino, fora de qualquer referência às exigências da formação do espírito.
7. A. Chervel, op. cit, p. 225
8. J. Masschelein, M. Simons Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 127
9. DUARTE, Newton Concepções Afirmativas e Negativas Sobre o Ato de Ensinar”. Cadernos CEDES, vol. 19, nº 44 Campinas, abril de 1998 p. 103.
10 AZANHA, J.M.P. Abstracionismo pedagógico. In Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Edusp,1992, p. 42
11. .AZANHA, J.M.P., op. cit, p.43
12. Idem, p.43
13. A este respeito é imprescindível o artigo de Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza. A sombra do fracasso escolar: a psicologia e as práticas pedagógicas. In: Estilos da Clínica, ano 3, nº 5, 2º semestre de 1998, pp.63-83
14. AZANHA, J.M.P., op cit, p. 55
15. MILNER, J. C. De L’École. Paris: Éditions du Seuil, 1984, p. 9 ,
16. MILNER, J. C., op cit., p.10
17. Bourdieu, P.. (…)Para mim, os doxósofos são os eruditos aparentes da opinião ou das aparências, isto é, os pesquisadores e os analistas de pesquisas, essas pessoas que nos fazem acreditar que o povo fala, que o povo não cessa de falar sobre todos os temas importantes. Mas o que jamais é colocado em questão é a produção dos problemas que são postos para o povo. Os usos sociais das ciências. Tradução: Denice Bárbara Catani. São Paulo: Editora Unesp,2004, p. 83

2 comentários:

Anônimo disse...

Quase fiquei cego lendo esse artigo com letra branca em fundo preto.
Podem melhorar!

MARCELO disse...

Vamos ver se fica bom assim.