O
filósofo e pedagogo José Mário Pires Azanha (1931-2004) destaca-se
entre os grandes defensores do ensino publico brasileiro, ao lado de
Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, entre outros.
Natural de Santa Cruz do Rio Pardo (SP) Azanha foi professor
primário, professor normalista, diretor de escola e, a partir de
1974, passou a lecionar na Faculdade de Educação da USP,
aposentando-se em 2001.
Nos
anos 1969-1970, coordenou a realização da reforma na rede pública
de ensino paulista, que instituiu o ensino fundamental de oito anos,
unificando os exames de admissão. Empreendimento de grande
envergadura, e que gerou controvérsias que perduram até hoje,
permitiu o ingresso nos ginásios da rede pública de uma clientela
antes excluída do processo. Em 1983, no governo de Franco Montoro,
participou novamente na reorganização da rede pública de ensino do
Estado de São Paulo, com a proposta de um plano de autonomia da
escola pública.
Seu pensamento foi
grandemente influenciado pela filosofia analítica anglo-saxônica;
em especial: Gilbert Ryle, John R. Searle, Israel Scheffler, sir
Patrick F. Strawson, Hillary Putnam, além de Karl Popper e Ludwig
Wittgenstein, por quem tinha enorme apreço. Miguel de Unamuno,
Émile Chartier (Alain), Hannah Arendt e Nietzsche
também estão presentes em seuas reflexões.
Por fim, mobiliza um
consistente repertório em ciências sociais e humanidades, sobremodo
em aspectos do pensamento de Marx que escapam de seus seguidores mais
obtusos e sectários.
Coerente com a
tradição analítica, sua obra é predominantemente ensaística e,
ao mesmo tempo, densa e destituída de jargões desnecessários,
abrangendo ensaios, prefácios, projetos e estudos monográficos cuja
principal característica é a preocupação com esclarecimento dos
conceitos, contra o emprego generalista e arbitrário de expressões.
Esta trajetória
intelectual e administrativa equiparam-no como poucos para a
compreensão dos problemas da realidade educacional brasileira e o
questionamento dos pressupostos do discurso pedagógico, seus
modismos e lugares comuns e, o mais ousado, a crítica da pretensão
de fundamentar o ato educacional em bases ditas “científicas”,
em especial de origem psicológica, mas que no seu bojo se revelam um
cientificismo herdeiro do positivismo do século XIX. E na ilusão do
“método”, que orientaria a prática dos professores em qualquer
ocasião. Contrapõe a esse ideário a complexidade das questões do
campo educativo.
Foi
um defensor da autonomia do professor para escolher os seus próprios
caminhos entre a pluralidade de concepções pedagógicas, desde que
compatíveis com uma política educacional democrática.
Para
o professor Azanha a atitude científica é fundamentalmente crítica
(tanto no sentido Kantiano quanto na tradição da filosofia
analítica da análise linguística
e conceitual como
um modo de chegar à compreensão).
Esta postura não opera num espaço vazio; é preciso dominar o
conhecimento existente com relação ao que está sendo estudado,
discutido.
Uma
fé cega nos poderes ciência (antes de mais nada, um saber
hipotético e provisório) como a única instância capaz de emitir
diretrizes e resolver todos os problemas da educação brasileira
constitui uma ilusão cientificista e não um legítimo trabalho
intelectual. Na nossa situação acaba por obliterar a razão,
desviando a atenção para problemas mais urgentes de natureza
política (no bom sentido do termo).
Além
da ilusão cientificista, José Mário Pires Azanha era um severo
crítico dos slogans e mitificações educacionais que atravessam os
discursos e práticas educativas. Expressões como “ensinar a
ensinar”, “aprender a aprender”, “aprender fazendo”,
“competência” e tantas outras, não são
algo que tem valor a priori. Se possuem alguma pertinência
tem que passar pelo paciente escopo da crítica. Do mesmo modo, a
ilusão metodológica, crença de que a aplicação de métodos,
especialmente de natureza psicológica, garantem um ensino mais
eficiente são vistos com ceticsmo pelo autor de “Uma ideia de
pesquisa educacional”.
Com
base em historiadores e filósofos da ciência como Derek de Solla
Price (1922-1983) Azanha problematiza a concepção equivocada de que
o desenvolvimento tecnológico é consequência direta do
desenvolvimento científico.
Talvez
a única coisa que me incomoda negativamente no pensamento de J
Azanha seja sua ênfase em rechaçar toda a crítica à
democratização (ou massificação) do ensino como um exemplo do
espírito classista e aristocrático que via com desdém a entrada da
população pobre num espaço antes restrito. Poderíamos,
provocativamente, seguindo seu pensamento, observar que também se
trata de um “abstracionismo”, com sinal invertido. A memória de
uma escola pública com certas “qualidades” que se perderam não
é apenas um subterfúgio invocado por conservadores que desejam
manter um ensino elitizado e classista. Intelectuais, políticos,
escritores e pessoas comuns, liberais e pertencentes aos diversos
ramos da esquerda evocam uma boa escola pública pré-reformas dos
anos 1970 e 1980. Distinguir criticamente idealizações de fatos
concretos é uma tarefa cuidadosa a ser feita. Pois o cotidiano
escolar é um território quase inexplorado pelos pesquisadores. E
muito se perdeu (documentação física e oral) e será descartado...
Tem-se
a impressão que questionar os resultados desta necessária e justa
expansão do ensino público significaria optar por uma concepção
elitista (no sentido mais pejorativo do termo). Será que conhecemos
bem a história desse sistema escolar anterior aos anos 1970? Ainda
que poucos, pessoas oriundas das classes pobres não se beneficiaram
desse ensino?
Se a
“permanência de um padrão de ensino concebido para uma parcela
da população intelectual ou economicamente privilegiada” (2)
era inviável no processo de expansão de vagas, ista não
desmerece o fato de que elementos (conteúdos, práticas, formas
escolares…) desta educação restrita a poucos não possam ser
relevantes para outras camadas da população.
Talvez
parte do mal estar advenha do fato de que o processo de expansão foi
levado a efeito pela Ditadura Civil-militar. Lembrando que foi um
evento concomitante- coetâneo aos Acordos MEC-USAID, e todas as
consequências deploráveis: substituição da História e Filosofia
pela EMC e OSPB, aligeiramento da formação dos professores etc.
Enfim,
talvez seja o único reparo que faria no pensamento deste autor.
Debilmente tento imagino a tensão daqueles dias; interesses
poderosos que ele contrariou, hesitações, excelentes ideias
sacrificadas para que o processo pudesse continuar… Inexiste ainda
o necessário distanciamento temporal para que possamos fazer uma
avaliação ponderada.
Transcrevi
o estudo “Abstracionismo Pedagógico”, segundo capítulo de Uma
Ideia de Pesquisa Educacional (São Paulo: Edusp, 1992), sua Tese de
Livre Docência. Utilizei elementos deste texto na postagem em que
critico ideias de Viviane Mosé.
A
categoria operacional “abstracionismo pedagógico” nas palavras
do próprio professor Azanha designa: “veleidade de descrever,
explicar ou compreender situações educacionais reais,
desconsiderando as determinações específicas de sua concretude,
para ater-se apenas a “princípios” ou “leis” gerais que na
sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar
conta das situações focalizadas.” (1)
Citando
Karel Kosik, filósofo marxista de origem tcheca, o “abstracionismo
pedagógico” opera uma distorção que:
“se
manifesta no método do princípio abstrato que despreza a riqueza do
real, isto é, a sua contraditoriedade e multiplicidade de
significados, para levar em conta apenas aqueles fatos que estão de
acordo com o princípio abstrato . O princípio abstrato, erigido em
totalidade, é totalidade vazia,
que trata a riqueza do real como “resíduo” irracional e
incompreensível. […] Assim fazendo rompo a integridade do fenômeno
em causa porque o cinde em duas esferas independentes: uma parte que
convém ao princípio e por ele é explicada; e uma outra parte que
contradiz o princípio e que, portanto, permanece na sombra”(2)
Transcrevi
e o texto completo e converti em arquivo PDF. Não segui a numeração
das páginas (tenho a edição de 1992, e a reedição recente
apresenta outra numeração).Embora possa ser lido separadamente do
conjunto, convido o leitor a conhecer a obra completa e demais livros
do autor:
Outros
trabalhos escritos pelo professor José Mário Pires Azanha
A
formação do educador e outros escritos. São Paulo: Senac, 2006
Educação: temas polêmicos. São Paulo: Martins Fontes, 1995
Educação: alguns escritos. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1987
José
Mário Azanha / ensaio: José Sérgio Fonseca Carvalho. –
Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010 (Coleção
Educadores MEC) – seleção de textos e uma detalhada introdução
do professor José Sérgio Carvalho da Faculdade de Educação da
USP.
Destaco
também o artigo da professora Carlota Boto (FE-USP): Nas trilhas
de um mestre: o legado político e pedagógico de José Mário Pires
Azanha. In Revista USP, São P aulo, n.93, p. 211-224,
Março/Abril/Maio 2012
Notas:
1.
AZANHA, J.M.P. “Abstracionismo Pedagógico” in Uma ideia de
pesquisa educacional. São Paulo: Edusp, 1992, p. p. 41
2.
AZANHA, J.M.P. , op. cit., p.42
3.
“Considerações sobre a Política de Educação do Estado de São
Paulo”, in Educação: Alguns Escritos. São Paulo, Nacional, 1987,
p. 97
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