quinta-feira, 8 de setembro de 2016

José Mário Pires Azanha - Abstracionismo Pedagógico.




O filósofo e pedagogo José Mário Pires Azanha (1931-2004) destaca-se entre os grandes defensores do ensino publico brasileiro, ao lado de Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, entre outros. Natural de Santa Cruz do Rio Pardo (SP) Azanha foi professor primário, professor normalista, diretor de escola e, a partir de 1974, passou a lecionar na Faculdade de Educação da USP, aposentando-se em 2001.

Nos anos 1969-1970, coordenou a realização da reforma na rede pública de ensino paulista, que instituiu o ensino fundamental de oito anos, unificando os exames de admissão. Empreendimento de grande envergadura, e que gerou controvérsias que perduram até hoje, permitiu o ingresso nos ginásios da rede pública de uma clientela antes excluída do processo. Em 1983, no governo de Franco Montoro, participou novamente na reorganização da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, com a proposta de um plano de autonomia da escola pública.

Seu pensamento foi grandemente influenciado pela filosofia analítica anglo-saxônica; em especial: Gilbert Ryle, John R. Searle, Israel Scheffler, sir Patrick F. Strawson, Hillary Putnam, além de Karl Popper e Ludwig Wittgenstein, por quem tinha enorme apreço. Miguel de Unamuno, Émile Chartier (Alain), Hannah Arendt e Nietzsche também estão presentes em seuas reflexões.
Por fim, mobiliza um consistente repertório em ciências sociais e humanidades, sobremodo em aspectos do pensamento de Marx que escapam de seus seguidores mais obtusos e sectários.

Coerente com a tradição analítica, sua obra é predominantemente ensaística e, ao mesmo tempo, densa e destituída de jargões desnecessários, abrangendo ensaios, prefácios, projetos e estudos monográficos cuja principal característica é a preocupação com esclarecimento dos conceitos, contra o emprego generalista e arbitrário de expressões.

Esta trajetória intelectual e administrativa equiparam-no como poucos para a compreensão dos problemas da realidade educacional brasileira e o questionamento dos pressupostos do discurso pedagógico, seus modismos e lugares comuns e, o mais ousado, a crítica da pretensão de fundamentar o ato educacional em bases ditas “científicas”, em especial de origem psicológica, mas que no seu bojo se revelam um cientificismo herdeiro do positivismo do século XIX. E na ilusão do “método”, que orientaria a prática dos professores em qualquer ocasião. Contrapõe a esse ideário a complexidade das questões do campo educativo.

Foi um defensor da autonomia do professor para escolher os seus próprios caminhos entre a pluralidade de concepções pedagógicas, desde que compatíveis com uma política educacional democrática.

Para o professor Azanha a atitude científica é fundamentalmente crítica (tanto no sentido Kantiano quanto na tradição da filosofia analítica da análise linguística e conceitual como um modo de chegar à compreensão). Esta postura não opera num espaço vazio; é preciso dominar o conhecimento existente com relação ao que está sendo estudado, discutido.
Uma fé cega nos poderes ciência (antes de mais nada, um saber hipotético e provisório) como a única instância capaz de emitir diretrizes e resolver todos os problemas da educação brasileira constitui uma ilusão cientificista e não um legítimo trabalho intelectual. Na nossa situação acaba por obliterar a razão, desviando a atenção para problemas mais urgentes de natureza política (no bom sentido do termo).

Além da ilusão cientificista, José Mário Pires Azanha era um severo crítico dos slogans e mitificações educacionais que atravessam os discursos e práticas educativas. Expressões como “ensinar a ensinar”, “aprender a aprender”, “aprender fazendo”, “competência” e tantas outras, não são algo que tem valor a priori. Se possuem alguma pertinência tem que passar pelo paciente escopo da crítica. Do mesmo modo, a ilusão metodológica, crença de que a aplicação de métodos, especialmente de natureza psicológica, garantem um ensino mais eficiente são vistos com ceticsmo pelo autor de “Uma ideia de pesquisa educacional”.

Com base em historiadores e filósofos da ciência como Derek de Solla Price (1922-1983) Azanha problematiza a concepção equivocada de que o desenvolvimento tecnológico é consequência direta do desenvolvimento científico.

Talvez a única coisa que me incomoda negativamente no pensamento de J Azanha seja sua ênfase em rechaçar toda a crítica à democratização (ou massificação) do ensino como um exemplo do espírito classista e aristocrático que via com desdém a entrada da população pobre num espaço antes restrito. Poderíamos, provocativamente, seguindo seu pensamento, observar que também se trata de um “abstracionismo”, com sinal invertido. A memória de uma escola pública com certas “qualidades” que se perderam não é apenas um subterfúgio invocado por conservadores que desejam manter um ensino elitizado e classista. Intelectuais, políticos, escritores e pessoas comuns, liberais e pertencentes aos diversos ramos da esquerda evocam uma boa escola pública pré-reformas dos anos 1970 e 1980. Distinguir criticamente idealizações de fatos concretos é uma tarefa cuidadosa a ser feita. Pois o cotidiano escolar é um território quase inexplorado pelos pesquisadores. E muito se perdeu (documentação física e oral) e será descartado...

Tem-se a impressão que questionar os resultados desta necessária e justa expansão do ensino público significaria optar por uma concepção elitista (no sentido mais pejorativo do termo). Será que conhecemos bem a história desse sistema escolar anterior aos anos 1970? Ainda que poucos, pessoas oriundas das classes pobres não se beneficiaram desse ensino?

Se a “permanência de um padrão de ensino concebido para uma parcela da população intelectual ou economicamente privilegiada” (2) era inviável no processo de expansão de vagas, ista não desmerece o fato de que elementos (conteúdos, práticas, formas escolares…) desta educação restrita a poucos não possam ser relevantes para outras camadas da população.

Talvez parte do mal estar advenha do fato de que o processo de expansão foi levado a efeito pela Ditadura Civil-militar. Lembrando que foi um evento concomitante- coetâneo aos Acordos MEC-USAID, e todas as consequências deploráveis: substituição da História e Filosofia pela EMC e OSPB, aligeiramento da formação dos professores etc.

Enfim, talvez seja o único reparo que faria no pensamento deste autor. Debilmente tento imagino a tensão daqueles dias; interesses poderosos que ele contrariou, hesitações, excelentes ideias sacrificadas para que o processo pudesse continuar… Inexiste ainda o necessário distanciamento temporal para que possamos fazer uma avaliação ponderada.

Transcrevi o estudo “Abstracionismo Pedagógico”, segundo capítulo de Uma Ideia de Pesquisa Educacional (São Paulo: Edusp, 1992), sua Tese de Livre Docência. Utilizei elementos deste texto na postagem em que critico ideias de Viviane Mosé.

A categoria operacional “abstracionismo pedagógico” nas palavras do próprio professor Azanha designa: “veleidade de descrever, explicar ou compreender situações educacionais reais, desconsiderando as determinações específicas de sua concretude, para ater-se apenas a “princípios” ou “leis” gerais que na sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar conta das situações focalizadas.” (1)

Citando Karel Kosik, filósofo marxista de origem tcheca, o “abstracionismo pedagógico” opera uma distorção que:

se manifesta no método do princípio abstrato que despreza a riqueza do real, isto é, a sua contraditoriedade e multiplicidade de significados, para levar em conta apenas aqueles fatos que estão de acordo com o princípio abstrato . O princípio abstrato, erigido em totalidade, é totalidade vazia, que trata a riqueza do real como “resíduo” irracional e incompreensível. […] Assim fazendo rompo a integridade do fenômeno em causa porque o cinde em duas esferas independentes: uma parte que convém ao princípio e por ele é explicada; e uma outra parte que contradiz o princípio e que, portanto, permanece na sombra”(2)

Transcrevi e o texto completo e converti em arquivo PDF. Não segui a numeração das páginas (tenho a edição de 1992, e a reedição recente apresenta outra numeração).Embora possa ser lido separadamente do conjunto, convido o leitor a conhecer a obra completa e demais livros do autor:


Outros trabalhos escritos pelo professor José Mário Pires Azanha
A formação do educador e outros escritos. São Paulo: Senac, 2006
Educação: temas polêmicos. São Paulo: Martins Fontes, 1995
Educação: alguns escritos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987

José Mário Azanha / ensaio: José Sérgio Fonseca Carvalho. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010 (Coleção Educadores MEC) – seleção de textos e uma detalhada introdução do professor José Sérgio Carvalho da Faculdade de Educação da USP.

Destaco também o artigo da professora Carlota Boto (FE-USP): Nas trilhas de um mestre: o legado político e pedagógico de José Mário Pires Azanha. In Revista USP, São P aulo, n.93, p. 211-224, Março/Abril/Maio 2012


Notas:

1. AZANHA, J.M.P. “Abstracionismo Pedagógico” in Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Edusp, 1992, p. p. 41
2. AZANHA, J.M.P. , op. cit., p.42
3. “Considerações sobre a Política de Educação do Estado de São Paulo”, in Educação: Alguns Escritos. São Paulo, Nacional, 1987, p. 97



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