quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Hannah Arendt - Epílogo ao livro "A Promessa da Política".



Este pequeno texto que transcrevo abaixo constitui a conclusão de um curso intitulado "A História da Teoria Política", ministrado na primavera de 1955. Ele faz parte do livro A promessa da Política, seleção póstuma de escritos que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) produziu durante a década de 1950. Faziam parte de um projeto da autora, talvez em dois livros que figurariam entre os clássicos Origens do Totalitarismo (1951) e A Condição Humana (1958). Por razões diversas, o projeto não prosperou. As obras versariam principalmente sobre a posição de Marx na tradição do pensamento político e filosófico, entre outros temas correlacionados. A coletânea organizada por Jerome Kohn, que foi assistente de Hannah Arendt e é diretor do Hannah Arendt Center, do The New School For Social Research sediado em New York., traz parte deste material.
Todavia, não é da crítica de Hannah Arendt a Marx e ao marxismo, por mais pertinente que seja que tratarei neste post, mas do texto de encerramento ao curso que mencionei acima. A decisão de Jerome Kohn em fazer dele o epílogo do livro foi muito feliz. O escrito, feito para uma exposição oral, mantém a coloquialidade e tem vida própria (na medida em que o leitor tenha conhecimento básico do pensamento arendtiano e seus conceitos, a apreciação ocorrerá de forma mais plena).
A analogia do mundo contemporâneo com o deserto é muito forte e eficaz, encaixando muito bem na argumentação da autora.
Outra coisa que me chamou a atenção foi sua crítica à psicologia. Seja no sentido de conhecimento sobre  a alma ou estudo do comportamento humano, disciplina que se pretende saber científico, o juízo é implacável. Quiçá, denominar a psicologia como "o exercício de adaptação da vida humana ao deserto", sendo o espaço geográfico do deserto a metáfora da negação da vida ativa, da política, da liberdade e do espaço público algo bastante inquietante para os espíritos sensíveis de nosso mundo psicologizado, ferindo suas certezas a respeito das pretensões deste saber que se pretende ciência.
O deserto, em sua aridez e esterilidade, é o domínio do instante, do aqui e agora; cria poderosas miragens que, sob ardis inocentes, apolíticos, constituem formas sutis de dominação totalitária. Um mundo conformista, sem história, sem compreensão e sem espírito pensante. Os oásis, neste contexto sombrio, são espaços frágeis e preciosos onde a resistência e a paixão crítica é possível. Nestes lugares, pode-se recuar desta inserção acrítica, irrefletida, no presente e, voltando o espírito para si mesmo, o sujeito pode compreender o que lhe acontece, problematizar a atualidade, confrontar criticamente o presente e elaborar significados. Desse modo é possível que a política retome seu sentido original, um espaço comum a todos, onde é possível falar, ouvir, discutir, decidir e agir. Enfim, pode-se fortalecer o  "amor mundi", que segundo Hanna Arendt, inspirada em Santo Agostinho, é a admiração pelas obras humanas das gerações passadas, e do desejo elas sejam "preservadas" para o futuro conhecimento daqueles que ainda virão a este mundo.



O moderno crescimento da ausência-de-mundo, a destruição de tudo que há entre nós, pode também ser descrito como a expansão do deserto. O fato de vivermos e nos movermos num mundo-deserto foi primeiramente percebido por Nietzsche, também o primeiro a se equivocar em seu diagnóstico. Como quase todos que vieram depois dele, Niestzsche acreditava que o deserto está em nós, assim se revelando não apenas um dos primeiros habitantes conscientes do deserto, mas também, por essa mesma razão, uma vítima de sua mais terrível ilusão. A moderna psicologia é a psicologia do deserto, quando perdemos a faculdade de julgar - sofrer e condenar - começamos a achar que há algo errado conosco por não conseguirmos viver sob as condições de vida do deserto. Na pretensão de nos "ajudar", a psicologia nos ajuda a nos "adaptarmos" a essas condições, tirando a nossa única esperança, a saber: que nós, que não somos do deserto, embora vivamos nele, podemos transformá-lo num mundo humano. A psicologia vira tudo de cabeça para baixo: precisamente porque sofremos nas condições do deserto é que ainda somos humanos e ainda estamos intactos; o perigo está em nos tornarmos verdadeiros habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa.
         O maior perigo é que no deserto há tempestades de areia e que o deserto não é sempre plácido como um cemitério, onde tudo, afinal, continua sendo possível, mas pode criar um movimento próprio. Essas tempestades são movimentos totalitários cuja principal característica é serem extremamente bem ajustados às condições do deserto. Na verdade, elas não contam com nada mais e parecem, consequentemente, a mais adequada forma política de vida no deserto. Tanto a psicologia, o exercício de adaptação da vida humana ao deserto, quanto os movimentos totalitários, as tempestades de areia em que falsas ou pseudoações irrompem subitamente da quietude, colocam em risco iminente as duas faculdades humanas que nos permitem transformar pacientemente o deserto, e não a nós mesmos: as faculdades conjugadas da paixão e da ação. É verdade que nas mãos dos movimentos totalitários ou das adaptações da psicologia moderna nós sofremos menos; perdemos a faculdade de sofrer e com ela a virtude da resistência. Só quem é capaz de padecer a paixão de viver sob as condições do deserto pode reunir em si mesmo a coragem que está na base da ação, a coragem de se tornar um ser ativo.
       As tempestades de areia ameaçam, além do mais, até mesmo os oásis do deserto sem os quais nenhum de nós poderia resistir, ao passo que a psicologia apenas procura nos tornar tão habituados à vida no deserto, que já não mais sentimos necessidade de oásis. Os oásis são as esferas da vida que existem independentemente, ao menos em larga medida, das condições políticas. O que deu errado foi a política, a nossa existência plural, não o que podemos fazer e criar em nossa existência no singular: no isolamento do artista, na solidão do filósofo, na relação intrinsecamente sem-mundo entre seres humanos tal como existe no amor e às vezes na amizade – quando um coração se abre diretamente para o outro, como na amizade, ou quando o interstício, o mundo, se incendeia, como no amor. Sem a incolumidade desses oásis não conseguiríamos respirar, coisa que os cientistas políticos deveriam saber. Se aqueles que tem de passar suas vidas no deserto, tentando fazer isso e aquilo preocupados com as condições do próprio deserto, não souberem usar os oásis  tornar-se-ão habitantes do deserto mesmo sem a ajuda da psicologia. Em outras palavras, os oásis, que não são lugares de “relaxamento”, mas fontes vitais que nos permitem viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele, secarão.
O perigo oposto é muito mais comum. Seu nome usual é escapismo: escapar do mundo do deserto, da política, para... o que quer que seja, é uma forma menos perigosa e mais sutil de arruinar os oásis do que as tempestades de areia que ameaçam exteriormente, por assim dizer, a sua existência. No afã de escapar, levamos a areia do deserto para o oásis – assim como Kierkegaard, no afã de escapar da dúvida, levou a própria dúvida para a religião ao dar o salto para a fé. A falta de resistência, a incapacidade de reconhecer e padecer a dúvida como uma das condições fundamentais da vida moderna, introduz a dúvida na única esfera onde ela jamais deveria entrar: a esfera religiosa, estritamente falando, a esfera da fé. Este é apenas um exemplo que mostra o que pode nos suceder no afã de escapar do deserto. Pelo fato de arruinarmos os oásis vitais quando vamos a eles com o propósito de escapar deles, às vezes é como se tudo conspirasse para generalizar as condições do deserto.
Também isto é uma ilusão. Em última análise, o mundo humano é sempre o produto do amor mundi do homem, um artifício humano cuja potencial imortalidade está sempre sujeita à mortalidade daqueles que constroem e à natalidade daqueles que vêm viver nele. É uma eterna verdade o que disse Hamlet: “O mundo está fora dos eixos: Ó que grande maldição / Eu ter nascido para trazê-lo à razão!” Neste sentido, na sua necessidade de iniciantes para que ele possa começar de novo, o mundo é sempre um deserto. Mas da condição de não-mundo que veio à luz na era moderna – que não deve ser confundida condição cristã de outro-mundo – proveio a pergunta de Leibniz, Schelling e Heidegger: por que existe alguma coisa em vez de nada? E das condições específicas de nosso mundo contemporâneo, que nos ameaça não apenas com o nada, mas também com o ninguém, talvez surja a pergunta: por que existe alguém em vez de ninguém? Estas perguntas podem parecer niilistas, mas não são. Ao contrário, são perguntas antiniilistas feitas numa situação objetiva de niilismo em que o nada e o ninguém ameaçam destruir o mundo.

Fonte: ARENDT, Hannah A promessa da política. organização e introdução de Jerome Kohn, tradução: Pedro Jorgensen Jr.  Rio de Janeiro: Difel, 2010   pp. 266-269


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