quarta-feira, 29 de junho de 2011

O Mínimo Eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis - Christopher Lasch - arquivo para download


Finalmente coloco à disposição dos leitores o arquivo para download deste importante livro de Christopher Lasch, “O Mínimo Eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis.” traduzido por João Roberto Martins Filho e Ana Maria L. Ioratti (tradução das notas bibliográficas) e publicado no Brasil pela Editora Brasiliense em 1986. Do mesmo modo que A cultura do narcisismo, também se encontra fora de catálogo, embora não seja tão raro quanto o primeiro.

Publicado originalmente em 1984, o Mínimo eu procura clarear e aprofundar pontos que ficaram obscuros e subentendidos no livro “A cultura do narcisismo” de 1979.
Aqui, Lasch acentua sua confiança na psicanálise como veículo de análise da contemporaneidade. Em especial, reportando aos escritos de Freud, seus discípulos e comentaristas, mesmo que certos conceitos decisivos tenham que ser criticados e reelaborados. Sua apropriação da psicanálise está inserida na tradição da psicologia norte-americana (o que não o impede de tecer críticas a este legado). Isto talvez provoque alguma estranheza nos leitores acostumados com a forma como a psicanálise é abordada no campo acadêmico brasileiro, fortemente influenciado por Lacan e demais analistas franceses. Também estão presentes ideias de D. W. Winnicott e da francesa Janine Chasseguet-Smirgel. De modo geral a psicanálise francófona não lhe desperta muita simpatia. A esquerda psicanalítica francesa (Althusser, Deleuze, Guattari, Kristeva, Luce Irigaray, entre outros), como Lasch a denomina, tende a “despir” o pensamento de Freud de seu conteúdo crítico. 1
Nas palavras do autor, a tese de seu livro pode ser resumida assim:

“Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trás, por medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; e quando se olha para frente, é para ver como se garantir contra os desastres que todos aguardam. Em tais condições, a individualidade transforma-se numa espécie de bem de luxo, fora de lugar em uma era de iminente austeridade. A individualidade supõe uma história pessoal, amigos, família, um sentido de situação. Sob assédio, o eu se contrai num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional exige um eu mínimo, não o eu soberano do passado.(…) a preocupação com o indivíduo, tão característica de nossa época, assume a forma de uma preocupação com a sobrevivência psíquica. Perdeu-se a confiança no futuro. (…) O risco de desintegração individual estimula um sentido de individualidade que não é 'soberano' ou 'narcisista', mas simplesmente sitiado” 2


Esta “mentalidade de sobrevivência” manifesta-se em produtos da indústria cultural, da psicologia banalizada de jornais, rádios e programas televisivos (e hoje, na internet), manuais de auto ajuda, reportagens e análises sociais, na literatura (notadamente a ficção científica). Possui um lado pertinente, como que uma antena ligada, captando os problemas do mundo. Todavia ela acaba atestando um descrédito da política e do ideal de bem comum, valores universais e cooperação. Assim as mobilizações contra os armamentos nucleares e pelo meio ambiente podem ocasionar efeitos contrários aos pretendidos, acentuando o encasulamento na mentalidade sobrevivencialista. Essa configuração social e psíquica tem ressonâncias no mundo do trabalho, na estrutura familiar (apagamento da figura paterna e dependência de instituições extra-familiares) e concepção de infância e adolescência.

Diferentemente da Cultura do Narcisismo,que é a reunião de artigos escritos em tempos distintos, embora com temas que se correlacionam, O Mínimo eu foi estruturado como um estudo mais aprofundado. Todavia, mantém um tom ensaístico,denso mas acessível, com a prosa elegante de Christopher Lasch evitando o recurso ao jargão acadêmico mais esotérico.

Em linhas gerais Lasch esquematiza o seu ensaio da seguinte forma:

“As controvérsias recentes em torno da cultura contemporânea do 'narcisismo' trouxeram à tona duas fontes de confusão totalmente diversas. A primeira, (…) será examinada com cuidado no primeiro dos capítulos seguinte, é a confusão de narcisismo com egoísmo e auto interesse. Uma análise da mentalidade sitiada e das estratégias de sobrevivência psíquica por ela incentivadas (tema dos capítulos 2, 3 e 4) servirá não apenas para identificar certos traços característicos de nossa cultura – nossa ironia defensiva e nosso descompromisso emocional, nossa relutância em assumir compromissos emocionais de longo tempo, nosso sentido de impotência e sacrifício, nossa fascinação pelas situações extremas e pela possibilidade de aplicação de suas lições à vida cotidiana, nossa percepção das organizações de larga escala enquanto sistemas de controle total - , como também será útil para diferenciar o narcisismo do mero auto interesse. Mostrará como as condições sociais vigentes, especialmente as fantásticas imagens da produção de massas que formam as nossas concepções do mundo, não somente encorajam uma contração defensiva do eu como colaboram para apagar as fronteiras entre o indivíduo e seu meio. Como nos lembra a lenda grega, é esta confusão entre o eu e o não eu --- e não o 'egoísmo' --- que distingue o apuro de narciso. O eu mínimo ou narcisista é, antes de tudo, um eu inseguro de seus próprios limites, que ora almeja reconstruir o mundo à sua própria imagem, ora anseia fundir-se em seu ambiente numa extasiada união. A atual preocupação com a 'identidade' expressa em certa medida esse embaraço em se definir as fronteiras da individualidade. E também o faz o estilo minimalista da arte e da literatura contemporâneas, que extrai grande parte de seus motivos da cultura popular, em particular da invasão da experiência pelas imagens, e deste modo ajuda-nos a ver que a individualidade mínima não é só uma resposta defensiva ao perigo mas se origina de uma transformação social mais profunda: a substituição de um mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de imagens oscilantes que torna cada vez mais difícil a distinção entre realidade e fantasia.
corretivo do egoísmo masculino. Os últimos três capítulos deste ensaio procuram, entre outras coisas, explicar por que o desejo narcisista de união não pode ser atribuído a um sexo e por que, acima de tudo, não pode ser concebido como um remédio contra a vontade de potencia faustiana. Tentarei argumentar que a própria tecnologia faustiana e prometeica se origina – até onde é possível traçar suas raízes psicológicas – da tentativa de restaurar as ilusões narcisistas de onipotência. Mas não tenho nenhuma intenção de polemizar com a crescente influência da mulher na política e nos locais de trabalho; tampouco a minha análise dos elementos narcisistas da cultura contemporânea deve ser mal-entendida como um ataque à 'feminização da sociedade americana'. O narcisismo não tem nada a ver com a feminilidade ou a masculinidade. Na verdade, este recusa qualquer conhecimento das diferenças sexuais, bem como rejeita a diferença entre o eu e o mundo que o circunda. Procura restaurar a satisfação indiferenciada do útero materno. Busca tanto a auto-suficiência como a auto-aniquilação: aspectos opostos da mesma experiência arcaica de unicidade com o mundo.
A realização da individualidade, que a nossa cultura torna tão difícil, pode ser definida como o conhecimento de nossa separação da fonte original da vida, associada a uma luta contínua para recuperar um sentido de união primitiva mediante uma atividade que nós dá uma compreensão e um domínio provisório do mundo sem rejeitar as nossas limitações e dependência. A individualidade é a dolorosa consciência da tensão entre as nossas aspirações ilimitadas e a nossa compreensão
limitada, entre nossas sugestões originais de imortalidade e o nosso estado cativo, entre a unidade e a separação. Uma nova cultura – uma cultura pós-industrial, se se gosta do termo – deve se fundamentar num reconhecimento destas contradições na experiência humana, não em uma tecnologia que tenta restaurar a ilusão da auto-suficiência; ou, por outro lado, em uma recusa radical da individualidade que procura restaurar a ilusão da unidade absoluta com a natureza. Nem Prometeu nem Narciso podem nos tirar de nosso apuro presente. Irmãos sob a mesma pele, podem somente conduzir-nos mais longe na estrada na qual já vamos bem avançados.” 3



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Notas:

1 - O mínimo eu, p. 282 Do mesmo modo, Lasch lê criticamente Hannah Arendt, Karl Popper, entre outros.
2 - op. cit, p. 9-10
3- ibdem, pp. 12-14



sexta-feira, 24 de junho de 2011

Hino a Mithra.






Mithra (ou Mithras ou também Mitra) foi um deus popular no Império Romano entre os séculos II e IV da Era Cristã. Seu culto foi mais intenso nas regiões fronteiriças, tais como ao longo dos rios Reno e Danúbio, no norte da África e em Roma e no porto romano de Óstia. Talvez, o mitraísmo tenha se espalhado do oriente do império para o ocidente,com a movimentação das tropas, pois inicialmente ele foi cultuado por legionários que conheceram o culto da divindade Mithras como parte do zoroastrismo nas províncias orientais do império, especialmente na Ásia Menor (atual Turquia moderna). Tolerado pelo Estado o culto era popular entre soldados, funcionários, comerciantes. As mulheres eram excluídas das cerimônias. A espiritualidade mitraica era ascética e disciplinada.

Mithras é o nome romano para o deus Indo-iraniano Mitra , ou Mithra, como era chamado pelos persas. Mitra faz parte do panteão hindu, e Mithra é um dos vários Yazatas (divindades menores), sob Ahura-Mazda no panteão zoroastriano.No Irã, Mithra é associado a Ahura (Senhor) que após o advento do Zoroastrismo torna-se Ahura-Mazda. Mithra é o deus da luz e intermediário entre o céu e a terra, mas ele também está associado com a luz do sol, e com contratos, promessas, pactos e mediações. Nem no hinduísmo, nem no Zoroastrismo Mitra / Mithra tem seu próprio culto. Mitra é mencionado nos Vedas hindus, enquanto que Mithra é o tema de Yashts (hinos) no livro zoroastriano Avesta , um texto compilado durante o período de Sassanida ( 224 - 640 dC), que preserva uma tradição oral muito mais antiga.

É desconhecida a presença desta religião de mistérios ligada à Mithra no período helenístico e no tempo anterior ao século II d.C. O que reforça a tese de que os soldados foram o seu principal vetor de difusão no Império Romano. No entanto, se de fato existiam conexões reais entre o Mithra romano e o Zoroastrismo persa é um tema que divide os especialistas. É certo que o mitraísmo não era um rival/concorrente do cristianismo. Embora ambas religiões abrangessem fiéis de diversas camadas da sociedade romana, o fator de impedimento da participação feminina limitava sua propagação. Enquanto no cristianismo primitivo,a participação das mulheres era mais efetiva. Com as restrições aos cultos pagãos no final do século IV, o mitraísmo foi aos poucos desaparecendo.

O culto romano de Mithra é conhecido como uma “religião de mistério”, o que significa dizer que seus membros mantiveram a liturgia e as atividades de culto em sigilo, e mais importante, que eles tinham que participar de uma cerimônia de iniciação para se tornar membros da religião. Desse modo, não há nenhum texto sobrevivente central do mitraísmo análogo à Bíblia cristã ou ao Talmude judaico, por exemplo, assim como não há nenhum texto  que descreva a liturgia.

As evidências deste culto, portanto, são na maior parte arqueológicas, compostas de restos de templos mitraicos, inscrições dedicatórias e representações iconográficas do deus e outros aspectos do culto em escultura de pedra, relevos, ex-votos, pintura mural e mosaico. As evidências textualis são extremamente escassas e fragmentadas. Quando aparecem, estão muito filtradas por idealizações e preconceitos, tanto de autores pagãos quanto de cristãos primitivos, como Pseudo-Plutarco, Porfírio, Justino.

A estrutura do culto era hierárquica.Circunscrito somente aos homens, seus membros passavam por uma série de sete graus, cada qual com um símbolo especial e um planeta tutelar.Do menor para o maior destes graus foram Corax (Corvo, sob Mercurio), Nymphus (versão masculina de ninfa, sob Vênus), Miles (o soldado, sob Marte), Leo (o leão, sob Júpiter), Perses ( o persa, sob Luna, a lua), Heliodromus (mensageiro do Sol) e, finalmente, Pater (pai, sob Saturno). Aquele que atingia o grau mais alto, Pater , poderia se tornar o chefe de uma congregação. O progresso de grau em grau relacionava-se à ascensão das almas através das esferas planetárias.

Os templos mitráicos romanos, denominados Mithraeum (ou Mitreu), foram construídos de forma a conservar, artificialmente, o aspecto de uma caverna natural (a caverna cósmita que imitava o universo, simbolizando a cúpula do céu, ou o cosmos.); simulação que se completava através de pedras espalhadas em torno do lugar onde era colocada a imagem do deus. Mithra era considerado o criador e pai de todos, salvador dos homens. O ponto central do Mithraeum consiste num relevo ou escultura que mostrava Mithra sacrificando o touro (tauroctonia). A cena do sacrifício seguia geralmente este esquema:

Mithra está vestido com uma túnica, calça, capa e um barrete frígio. Metade do corpo de frente para o espectador, enquanto a outra metade abrangendo a parte traseira de um touro, puxa a cabeça do animal por suas narinas com a mão esquerda, e mergulha em um punhal no pescoço do touro com a direita.Várias figuras cercam este acontecimento dramático. Um cão lambe o sangue escorrendo da ferida e um escorpião ataca os testículos do bovino. Muitas vezes a cauda do touro termina em espigas de trigo e um corvo está empoleirado nas costas do touro, ou em algum suporte próximo à Mitra.À esquerda do espectador está uma figura masculina chamada Cautes, vestindo o traje igual ao de Mitra e erguendo uma tocha acesa. Acima dele, no canto superior esquerdo, é o deus Sol, no seu carro. À esquerda do espectador, há outra figura masculina, Cautopates, que também é vestida como Mithras é e segura uma tocha que está apagada e apontada para baixo. Há uma serpente e um copo. Acima de Cautopates, no canto superior direito está a Lua. Esta configuração é quase sempre presente, porém, há variações, dos quais o mais comum é uma linha adicional de signos do zodíaco ao longo do topo da cena do sacrifício.

Cada figura e elemento na cena se correlacionam com constelações específicas, aos sete planetas reconhecidos pelos antigos romanos, e para a posição destes em relação ao equador celeste, particularmente na época dos equinócios e os solstícios. Há representações de outras divindades e cenas, como Mithras nascendo de uma rocha, Mithras segurando esfera cósmica e a rotação do zodíaco, Mithras como Atlas e a representação de um deus com cabeça de leão, de pé sobre um globo em que está marcada com a cruz que representa dois círculos do zodíaco e o equador celeste, entre outras.

A tauroctonia foi interpretada de formas diversas por estudiosos das religiões orientais e clássicas e provavelmente pelos diferentes mitraístas, como ato de criação, ou de salvação, e também de significação astrológica esotérica. Algo ligado a fertilidade do solo também está presente.

Copiei o presente trecho de um "Hino a Mitra" da antologia "Textos Sacros.", que pertence a coleção "As Grandes Religiões" que a Abril Cultural publicou no começo da década de 1970. Não há uma indicação da fonte original, seja primária ou secundária. Não tenho muitas dúvidas de que seja um fragmento do Avesta relacionado a Mithra, pois comparei com os escritos do zoroastrismo compilado neste site: http://www.avesta.org/




HINO A MITHRA

“Nós honramos a Mitra,
verídico e sábio, de mil orelhas,
perfeito com dez mil olhos,
o deus erguido ereto, que não dorme e está sempre vigilante (…)
Nós honramos a Mitra (…)
a quem os guerreiros em marcha,
sobre o lombo de seus cavalos, sacrificam,
pedindo vigor para as guarnições,
para os corpos, saúde,
rogando-lhe que por toda a parte espie os inimigos,
abata os malfeitores,
dizime os guerreiros adversários
empenhados em causar danos.(…)
Nós honramos a Mitra (…)
que sustenta as colmatas dos altos edifícios
e os torna sólidos, inabaláveis. (…)


“Tu, Mitra, és o mal,
e o melhor dos bens para as regiões,
como também o és para os homens. (…)
Tornas gloriosas as casas por suas mulheres,
gloriosas por seus carros,
belos pelos tapetes que as enfeitam,
pelas almofadas aí dispostas; enormes.
Fazes também gloriosa e bela e segura
a morada as quem, fiel à lei,
te presta culto invocando teu nome,
pronunciando as palavras adequadas,
apresentando-te oferendas como convém.
Eu quero te honrar,
invocando teu nome,
pronunciando as devidas palavras,
fazendo-te oferendas, ó poderoso Mitra!
Também eu quero te honrar por este culto,
ó benfazejo Mitra, também eu quero te honrar,
ó tu, a quem não se pode enganar. (…)


“Honramos a Mitra (…)
Deus do elmo de prata,
couraça de ouro, punhal na mão,
valente, guerreiro, senhor das vidas!
Brilhantes são os caminhos de Mitra
quando ele percorre a região
e transforma os desfiladeiros em campos férteis.
Ele circula por seus domínios,
governando como quer os rebanhos
e os homens que lhe pertencem. (…)
Nós honramos a Mitra (…)
que vem para as regiões.
Honramos a Mitra que está no seio das regiões.
Honramos a Mitra que está acima das regiões,
Mitra que está abaixo, adiante e atrás das regiões (…)
Por estas bençãos quero
prestar honra e glória, poder e força
a Mitra das vastas campinas,
a Mitras que tem mil orelhas e dez mil olhos! (…)

Bibliografia:

BURKERT,Walter Antigos cultos de misterio. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Edusp, 1992
HINNELLS, John R. (Org.) Dicionário das Religiões. Tradução: Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1989
SCARPI, Paolo Politeísmos: as religiões do mundo antigo. Tradução: Camila Kintzel São Paulo: Hedra, 2004
VVAA. Textos Sacros. São Paulo: Abril Cultural, 1973 pp. 186-187 [tradução do Hino a Mitras pelo Prof. Antônio Flávio de Oliveira Pierucci]

e

http://www.well.com/user/davidu/mithras.html [MITHRAISM: The Cosmic Mysteries of Mithras]










quarta-feira, 22 de junho de 2011

Paulo, o Simples, trecho da "História Lausíaca, de Paládio.


O termo Padres do Deserto compreende um grupo de eremitas, ascetas, monges e monjas que se estabeleceram no deserto do Egito a partir do século III d.C., consolidando-se no século seguinte. Viviam de forma solítária1 em celas (nome dado aos recintos que consistiam em grutas escavadas em rochas ou mesmo buracos na areia no deserto ou alguma forma de construção que lhes possibilitasse o necessário isolamento)em torno de uma igreja. Desse modo, em várias partes do deserto egípcio, surgiram as primeiras comunidades monásticas, sob a orientação de um pai espiritual. Paulo de Tebas é o primeiro eremita conhecido, que estabeleceu uma tradição do ascetismo e contemplação monástica, enquanto Pacômio de Tebaida é considerado o fundador do cenobitismo, do monasticismo primitivo. Entretanto, cabe a Santo Antão do Egito o estabelecimento de um protótipo de santidade reclusa e heroísmo religioso, notadamente para a Igreja Oriental. Influência que se intensificou com a sua biografia, escrita por Atanásio de Alexandria, intitulada Vita Antonii .

Todavia, cabe salientar que o fenômeno monástico ocorreu em diversas partes do mundo mediterrâneo, notadamente na Mesopotâmia, Síria e Palestina. De qualquer forma, o Egito permaneceu como um ponto de referência para os outros monaquismos cristãos. Assim, as biografias dos monges siríacos sempre mencionam uma “viagem-peregrinação” ao Egito para uma busca espiritual mais intensa.

A vida austera dos Padres do Deserto atraiu um grande número de seguidores devido à simplicidade, disciplina individualista, severa e concentrada busca pela salvação e união com Deus. Eram muito solicitados para direção espiritual e conselho aos seus discípulos.

O texto que transcrevo aqui é um pequeno trecho da História Lausíaca, obra escrita por Paládio de Helenópolis. Nascido na Galácia (Ásia Menor) em 363 ou 364, Paládio tornou-se monge em 386. Tendo vivido entre os ascetas da Palestina e do Egito por cerca de 14 anos, Desse modo, manteve contato direto com expoentes do movimento monástico à época, como Dídimo, o Cego, Evágrio Pôntico e Melânia. Por volta de 400, é consagrado bispo de Helenópolis, na Bitínia. A data de sua morte é incerta.

Entre 419-420, Paládio escreve a História Lausíaca, obra que vai dedicada a Lauso, alto funcionário da corte de Teodósio II. Tributária,entre outros documentos, da História dos monges do Egito, de autoria desconhecida e reelaborada por Rufino entre 404 e 410 e enriquecida com as memórias de viagem do próprio Paládio pelo Egito e Palestina. Em setenta e um capítulos, narra as ações piedosas de um conjunto de monges do Egito e da Síria-Palestina. A obra tornou-se muito influente nos círculos monásticos. O fragmento que selecionei reporta à decisão de Paulo consagrar-se monge, indo ao encontro de Antão, que no início considera-o inapto para esta função, tentando assim, demovê-lo da ideia, porém, a persistência e fé intensa de Paulo convence o experiente eremita. É um ótimo documento sobre os habitus religioso, social e cultural de um grupo específico da Antiguidade Tardia. Não esquecer que o escrito possui certo grau de fabulação e idealização de personagens e situaçãoes, típico da literatura hagiográfica.


22. Paulo, o simples.

1)Ainda de Crônio, como também de Hierax e de muitos outros, é que soube o que direi a respeito de Paulo, este agricultor extremamente simples e sem malícia. Era ele casado com uma mulher muito bela,mas depravada, que, durante muito tempo lhe escondeu suas faltas. Um dia, em que ele voltava de improviso do campo, encontrou-a com um outro, quando iam pecar. Isso aconteceu para que Paulo fosse conduzido pela graça ao que lhe seria vantajoso. Pondo-se docemente a rir, ele os interpela: "Bem, bem! Em verdade isso não me perturba. Por Jesus, eu não a tomo mais. Guarda-a com seus filhos. Quanto a mim, retiro-me e me faço monge".

2) Sem nada dizer a ninguém,ele se apressa em realizar o seu intento. Vai procurar Antão e bate a sua porta. Este sai e lhe pergunta: "Que queres?" - "Quero tornar-me monge". "Tens 60 anos", responde Antão, "não podes tornar-te monge aqui. Vai à cidade, trabalha e vive, como um operário, dando graças a Deus, porque não és capaz de sustentar as provações do deserto." O velho replicou: "Farei tudo o que ordenares".

3)Antão replicou: "Já te disse que és velho e não és mais capaz. Se verdadeiramente queres ser monge, vai a uma comunidade de irmãos mais numerosos, que poderão suportar tua fraqueza. Eu habito sozinho, como de 5 em 5 dias, sem me saciar".Com essas e outras palavras semelhantes, procurava afastar Paulo. Como não o atendia, Antão fechou a porta e não saiu durante 3 dias nem mesmo para as suas necessidades. Mas Paulo não se foi embora.

4)No 4o.dia, constrangido por suas necessidades, Antão saiu e disse novamente a Paulo: "Vai-te daqui, velho!Por que queres forçar-me? Não podes ficar aqui". "Para mim é impossível morrer em outro lugar, a não ser aqui", respondeu Paulo. Antão observou, então, que o homem não trazia alimento algum consigo, nem pão nem água. E já se haviam passado 4 dias em que ele jejuava! Temendo que ele morresse e não desejando responder por isso, Antão o aceitou. E adotou, então, um regime de vida como nunca tivera, nem mesmo na sua juventude.

5) Após ter feito molhar folhas de palmeira, ordenou a Paulo: "Toma-as e trança-as como eu". O velho trançou 15 braças, até a hora nona, com muito esforço. Antão examinou o trabalho e não ficou satisfeito. "Está mal feito", disse ele. "Desmancha e torna a tecer desde o começo". Embora Paulo estivesse em jejum e estenuado, Antão lhe impôs esta tarefa desagradável para que o velho perdesse a paciência e se fosse dali. Mas ele desfez e trançou de novo as mesmas folhas que, amassadas, se haviam tornardo mais difíceis de serem trabalhadas. Não o vendo queixar-se nem desencorajar-se nem indignar-se, Antão comoveu-se.

6) Como o sol havia baixado, ele lhe perguntou: "Queres que comamos um pedaço de pão?" - "Como quiseres, abba" respondeu Paulo. De novo Antão comoveu-se por ver que o velho não acorrera precipitadamente ao anúncio de alimento, mas lhe deixara a escolha. Ele pôs a mesa e trouxe pães. Eram pedaços de 6 onças. Ele umedeceu um para si - porque estavam secos - e 3 para Paulo. Depois entoou o salmo que sabia de cor e após têlo-lo salmodiado 12 vezes, repetiu 12 vezes uma oração, para provar Paulo.

7)Mas esse uniu-se com fervor À prece. Creio que ele teria ainda preferido apascentar escorpiões a viver com uma mulher adúltera. Após 12 orações, eles se assentaram para comer. A noite adiantava-se. Antão comeu um pedaço de pão e não tomou outro. O velho comia mais lentamente. Antão, depois que ele terminou, lhe disse: "Toma outro pedaço, paizinho!" "Se comeres, também comerei, mas se não comeres, também não o farei". Antão respondeu: "Isso me basta, porque sou monge".

8) "Isso me basta igualmente, porque quero tornar-me monge", respondeu Paulo. Antão levantou-se, recitou 12 orações e salmodiou 12 salmos. Depois de ter dormido um pouco um primeiro sono, ele se levantou de novo, no meio da noite, para salmodiar até o amanhecer. Vendo que o velho havia seguido com ardor o seu modo de proceder, disse-lhe: "Se podes fazer isso todos os dias, fica comigo!" Paulo respondeu: "Se houver outra coisa mais, nada sei dela. Mas o que vi, faço-o sem dificuldade". No dia seguinte, Antão lhe disse: "Tu te tornaste monge".

9) No fim de alguns meses, Antão compreendeu que Paulo era uma alma perfeita, de inteira simplicidade e guiada pela graça. Construi-lhe uma cela a 3 ou 4 milhas, mais ou menos, da sua, e lhe disse: "Agora és monge. Deves ficar só para seres provado pelos demônios". Depois de ter morado um ano nessa cela, Paulo mereceu receber o dom de expulsar demônios e curar as doenças. Um dia, levaram a Antão um possesso horrível: era possesso de um dos espíritos mais fortes e amaldiçoava até o céu.

10) Antão o examinou e disse aos que o haviam trazido: "Não é trabalho para mim, porque não recebi o poder de expulsar esse gênero de demônios. Isso compete ao Paulo".
Ele os levou a Paulo. "Abba Paulo", disse ele "expulsa o demônio deste homem , para que ele volte curado!" "Mas por que não o expulsas?" "Não tenho tempo, tenho outro trabalho". Antão se despediu e voltou para outra cela.

11) O velho levantou-se recitou uma prece com fervor e depois ordenou ao demônio: "Abba Antão diz: Sai deste homem!" Mas o demônio se põs a blasfemar e gritar: "Não sairei, velho mau!"
Paulo tomou o seu manto e com ele batia nas costas do possesso: "Sai, disse o abbá Antão!" O demônio o injuriou ainda mais, a ele e a Antão. Finalmente, Paulo lhe disse: "Sai ou contarei ao Cristo. Por Jesus, se não sais neste instante, vou dizer a Cristo e te acontecerá uma desgraça!"

12) Mas o demônio gritava, blasfemando: "Não sairei!" Paulo, então, indignado com o demônio, saiu de sua cela, em pleno meio-dia. Ora, o calor do Egito é como a fornalha da Babilônia. Ele subiu a um rochedo da montanha e rezou assim: "Tu, Jesus Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos, sabes que não descerei do rochedo, não comerei nem beberei, ainda que morra, se não expulsares o demônio deste homem e o libertares!" Antes mesmo que ele tivesse acabado de falar, o demônio soltou um grito: "Violência! Estou expulso!A simplicidade de Paulo me expulsa! Para onde irei?"
O demônio saiu e se transformou num dragão de 70 côvados, que se arrastou até o Mar Vermelho. Assim se cumpriu a palavra: "O justo proclamará uma fé que se prova por atos" (Pr 12,17)2.
Tal foi o milagre de Paulo, apelidado o Simples, por toda a comunidade dos irmãos.

Fonte: Paládio Os monges do Deserto,História Lausíaca. Tradução do francês "Les Moines du désert, Histoire lausiaque", Coleção "Les Pères dans foi", Desclée de Brower, 1981, pelas Monjas Beneditinas do Mosteiro de Nossa Senhora da Paz, de Itapecerica da Serra, São Paulo, CIMBRA,1986
pp. 68-73

Notas:

1. O sentido original de "monge" é do que vive em solidão. Quando o monaquismo se estruturou para maior comunidade de vida, a palavra foi ampliando seu sentido. Denota qualquer monge, viva solitário ou em mosteiro.
2. Não encontrei referência mais detalhada desta citação.




Antonio Vivaldi - Inverno


Concerto No. 4 In F Minor, Rv 297 'Inverno'
I. Allegro Non Molto
II. Largo
III. Allegro

Iconografia: Francesco Albani (1578-1660) Inverno 1616-1617
Pieter Paul Rubens (1577-1640) Winter - The interior of a barn, ca. 1618
Giuseppe Arcimboldo (1527-1593) - Winter, 1573 (vídeo do YouTube)





sábado, 18 de junho de 2011

Zygmunt Bauman - Sobre a arte da vida.



A afirmação “a vida é uma obra de arte” não é um postulado ou advertência (do tipo “tente tornar sua vida bela, harmoniosa, sensata e cheia de significado – tal como os pintores tentam fazer suas pinturas, ou os músicos suas composições”), mas uma declaração de um fato. A vida não pode deixar de ser uma obra de arte se é uma vida humana – a vida de um ser dotado de vontade e liberdade de escolha. Vontade e escolha deixam suas marcas na forma da vida, a despeito de toda e qualquer tentativa de negar sua presença e/ou ocultar seu poder atribuindo o papel causal à pressão esmagadora de forças externas que impõem um “eu devo” onde deveria estar “eu quero”, e assim reduzem a escala das escolhas plausíveis.

Ser um indivíduo (ou seja, ser responsável por sua escolha de vida, sua escolha entre as escolhas, e pelas consequências das escolhas que fez) não é em si uma questão de escolha, mas um decreto do destino. Com muita frequência, porém, é preciso exercer essa responsabilidade em condições que fogem inteiramente ao nosso alcance, seja intelectual ou prático. A vida humana consiste num confronto perpétuo entre as “condições externas” (percebidas como “realidade”, por definição um assunto sempre resistente, e muitas vezes desafiador, à vontade do agente) e designa seus autores/atores: seu propósito de superar a resistência, o desafio e/ou inércia, ativos ou passivos, da matéria e reconstruir a realidade de acordo com a visão da “boa vida” que escolheram. Sobre essa visão, Paul Ricoeur diz que é uma “névoa de ideias e sonhos de realização”, sob cuja luz opaca o grau de sucesso ou fracasso na vida é registrado e determinado. Sob essa luz, certos passos e seus resultados, embora não outros, são avaliados como sensatos, e certos propósitos, mas não outros, destacados como não apenas úteis, mas “autotélicos”, ou seja, “bons por direito próprio”, sem necessidade de serem justificados e defendidos como meios de implementação de outro objetivo, mais elevado.

As visões da boa vida são comparadas por Ricoeur a uma nebulosa. As nebulosas são cheias de estrelas, não é possível contar todas elas, e incontáveis estrelas brilhando e cintilando atraem e encantam. Entre elas, as estrelas podem mitigar suficientemente a escuridão para permitir aos andarilhos traçar um caminho na imensidão – algum tipo de caminho. Mas que estrela deve orientar os passos de alguém? E em que ponto alguém deve decidir se selecionar essa estrela para guia entre uma multiplicidade delas foi uma escolha acertada ou infeliz? Quando se deve concluir que o caminho escolhido não leva a lugar algum, e que chegou a hora de abandoná-lo, voltar e fazer outra escolha melhor, espera-se? Não obstante os desconfortos já provocados por trilhar a rota previamente selecionada, tal resolução pode ser um passo imprudente: abandonar a estrela que até então se seguia pode revelar-se um erro ainda maior e mais lamentável, e você pode descobrir que o caminho alternativo conduz a dificuldades ainda maiores – você não sabe, nem é provável que saiba ao certo tudo isso. Cara ou coroa, suas chances de ganhar ou perder parecem iguais.

Não existe remédio direto ou inequívoco para esses dilemas. Não importa o quanto se tente em contrário, a vida se passa na companhia da incerteza. Cada decisão tende a permanecer arbitrária; ninguém estará livre de riscos e seguro contra o fracasso e desapontamentos posteriores. Para cada argumento em favor de uma escolha, pode-se encontrar um contra-argumento não menos considerável. Não importa o brilho da nebulosa, ele não vai nos assegurar contra a eventualidade de ser forçado a, ou querer, retornar ao ponto de partida. Ao embarcar em nossa jornada para uma vida decente, digna, satisfatória, valorosa (e,sim,feliz), tentamos evitar erros e fugir da incerteza confiando numa estrela, escolhida por seu brilho tranquilizador, para nos guiar. Tudo isso, porém, só para descobrir que nossa escolha da estrela-guia foi, no final das contas, nossa escolha, cheia de riscos como todas as escolhas foram e tendem a ser – e nossa escolha, feita por responsabilidade nossa, ela continuará sendo até o fim...

Fonte: BAUMAN, Zygmunt A arte da vida. tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,2009
pp. 72-74

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Karl Philipp Moritz - Meditação sobre o esqueleto (1786)




É a ossatura do homem, despojada da carne, que nos apresenta a imagem da morte.
A natureza inteira parece ter empregado todas as suas forças para manter, durante um certo tempo, no âmbito deste crânio e desta estrutura óssea, a maravilhosa textura de pensamentos e sensações. Nisso ela como que excede a si própria, alcançando a culminação da sua beleza e perfeição, em um ser pensante, capaz de conceber a ideia e de alegrar-se por ela.
E agora a própria natureza destroçou este precioso espelho que, antes, reproduzia, de modo tão grandioso, sua formosura.
No lugar dos olhos que tantas vezes retratavam o semblante do sol, agora nos fitam duas aberturas ocas e horripilantes.
Os lábios, nos quais habitavam a alegria e o sorriso, desapareceram.
As fibras macias que recebiam as brandas impressões do mundo e as conduziam até a sede do pensar, já se desprenderam da dura matéria da ossatura, enquanto esta resiste, durante algum tempo, à destruição total, mostrando ainda nesta destruição resquícios da dignidade que reside no andar e na posição ereta do homem, igual às ruínas de um templo desmoronado que continuam inspirando admiração e respeito.
Aqui teríamos o ponto final da criação do homem?
Com esta triste metamorfose tudo estaria terminado?
A natureza, geralmente tão econômica, teria feito tantos esforços só para ter uma destruição mais imponente ainda?
Ela teria engendrado em cada indivíduo uma nova criação, apenas para destruí-la cada vez de novo?
Se fosse assim, os esqueletos humanos e animais seriam a última e permanente finalidade da criação perpétua da natureza. Apenas para acumular um número cada vez maior de esqueletos, ela faria nascer milhões de seres, todos destinados a serem devorados pela goela da tumba?
Será que a estrutura óssea dura mais que o homem pensante, a obra mestra da natureza?
O esqueleto faz surgir, como muralhas, as divisões mais radicais que existem no âmbito dos nossos pensamentos e ideias:

VIDA e MORTE

se defrontam num contraste medonho.
No esqueleto temos os escombros de um mundo sujeito à destruição.

INÍCIO e FIM

da existência,

ambos para nós estão igualmente envoltos em trevas.
Aqui, o nosso pensamento chega, de dois lados, ao seu ponto final.
Aqui o horizonte declina até o solo, impedindo a nossa visão.
Ao contemplarmos o esqueleto, tudo esvanece: torres, cidades, desejos, esperanças, ciências, artes, tudo desaparece na escuridão noturna, submerge no caos primitivo das coisas.
Perdemos os nossos pensamentos, ao imaginarmos-nos no lugar desta estrutura óssea.
Nosso espanto cresce sem cessar – não vemos possibilidade alguma para uma tal transformação do nosso ser.
Essa transformação radical nos parece em si, uma contradição.
Estamos inclinados a crer, que é apenas o envólucro do nosso ser íntimo, e não este ser que foi assim transformado.

HOMEM PENSANTE – ESQUELETO:

é inconcebível a transformação de um para o outro!
O que já chegou a pensar, nunca poderá ser transformado desta maneira.
Assim como da destruição exsurge a vida nova, a contemplação meditativa do esqueleto engendra, na alma, um pensamento sublime, um conceito novo que, de vez, afasta os terrores da morte.
O meu Eu pensante é tão diferente daquilo que vejo no esqueleto, que nunca se poderá trenasformar nele.
Aqui vejo um conjunto de matéria corpórea, rígida e dura, que se apresenta ao tato como se fosse madeira ou pedra; esta estrutura material foi removida do âmago do meu corpo e agora está diante de mim, como objeto da minha contemplação.
E estes pensamentos que vivem dentro de mim, isto é, no meu ato de contemplar e observar – como são infinitamente diferentes do objeto que está diante de mim!
Necessariamente, devo dar àquilo que, dentro de mim, está observando e contemplando um outro nome do que aquele que dou a esta materia corpórea tão rígida e dura.
Devo dar um nome cujo significado abranja: vida e movimento, poder de pensar e agir.
Sinto-me impelido a traçar, no âmbito das minhas ideias, uma linha divisória entre:

CORPO e ESPÍRITO

Nas trevas da meia-noite a aurora principia a brilhar; da destruição do mundo corpóreo surge:

O MUNDO DOS ESPÍRITOS

A contemplação meditativa da morte nos permite lançar um olhar para além da cortina que encobre, para o nosso olhar, o mistério daquilo que se encontra do outro lado da tumba.
Outra vez se amplia o nosso horizonte, e se descerram, ao longe, serenas perspectivas.
Será verdade, então, que a natureza edifica apenas para depois poder destruir?
Muito pelo contrário: ela destrói para depois edificar. Na edificação, ou seja, na formação, consiste a finalidade da natureza; a destruição é apenas seu meio.
Em cada outono as folhas tombam do jovem tronco da árvore, mas outras brotam, já na próxima primavera; o tronco, entrementes, cresce de ano em ano, cada vez mais sólido e vigoroso.
Seres humanos nascem e morrem; o pó em que se transformam se mistura ao pó de milhões que já morreram; mas em meio da destruição surge o Mundo dos Espíritos, lutando vitoriosamente para se arrebatar da esfera da morte e devastação, e crescendo de geração em geração.
O perpétuo aperfeiçoamento do Mundo dos Espíritos é o que chamamos de progresso da natureza. Sem este progresso os ciclos da evolução não teriam finalidade alguma e seriam apenas um jogo desprovido de intenções.
O que adianta a roda eternamente girar em torno de si, sem que o veículo avance?
O próprio globo terrestre possui um movimento duplo: perpetuamente gira em torno do seu eixo.
O eterno ciclo da natureza consiste em:

VIDA e MORTE,
JUVENTUDE e VELHICE,
FORMAÇÃO e DESTRUIÇÃO.

A isto corresponde na natureza a rotação em torno do eixo, ou ainda, a alternância de dia e noite.
Assim como a jovem aurora, com a juventude de um ser humano ascende um mundo jovem que, no fim do percurso, retorna à escuridão da tumba.
Em que consiste, então, o progresso deste ciclo eterno, dessa rotação em torno de um eixo? Aonde encontramos nisto o progresso, necessário para o universo não ser um mero jogo sem finalidade?
É isto: o perpétuo crescimento e aperfeiçoamento do Mundo dos Espíritos que se dá cada vez que um ciclo está consumado.
Aqui se abre o panorama de um campo imenso, a perspectiva consoladora de uma trama infinita, repleta tanto de diversidade como de unidade; na sua contemplação o espírito humano pode deter-se sem jamais se cansar.
Tradução: Gusmão de Oliveira Manzur


sexta-feira, 10 de junho de 2011

Therion - The Invincible


Quinta faixa do álbum "Deggial", de 1999.



The blaze of northern light
Reflect the dawn of gods
Of ancient pantheons
Who rest no more in peace.

Faith of the old, the strong one from above:
The invincible.

All the gods of the sky and the earth
Proclaim this day, this day.
See the signs in the day and the night,
Foretell the one, the one.

Open up the runa of belief of the strong and the brave
Open up! let the gods of your heart and your soul show the way.

The eye of the high one
Have seen the dawn of gods
In the well of Mimer [Mimir]
(and) through the flight of ravens

A chama da luz do norte
reflete o amanhecer dos deuses
de antigos Panteões,
que não descansam mais em paz.

Fé no Antigo, o poderoso dos céus acima:
O Invencível

Todos os deuses do Céu e da Terra
proclamam este dia, este dia.
Veja os sinais que, de dia e à noite,
que predizem o único, o único.

Abra a Runa e a fé no Forte e destemido.
Se abra! Deixe os deuses do seu coração e sua mente mostrarem o caminho.

O olho do que está nas alturas
viu o amanhecer dos deuses
No poço de Mimer
(e) pelo voo dos Corvos.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Jean Hébrard - O objetivo da escola é a cultura, não a vida mesma.




"(...)A vida não é um objeto para a escola. O objeto da escola é a cultura, não é a vida. Você não pode trabalhar com a vida, a vida viva. A vida não serve para trabalhar. Na escola, é preciso haver um objeto fixo, que não mude demais. Não é a a vida. A vida é impossível."

Esta afirmação audaciosa é o título de uma entrevista concedida por J. Hébrard à revista mineira Presença Pedagógica, v.6, n. 33, maio/junho de 2000, que coloco a disposição dos leitores neste link.

O francês Jean Hébrard é um grande historiador da educação. Especializado no estudo da cultura escrita (em especial a história de práticas de leitura e de sua transmissão), é Professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e da Universidade de Michigan (EUA), Hébrard já foi inspetor-geral da Educação Nacional da França. Possui laços profundos com o Brasil (seu neto é brasileiro), participou da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o que não o impede de tecer críticas a estes documentos, como esta:

"Os parâmetros curriculares da educação fundamental da França foram reformulados após a elaboração dos parâmetros brasileiros. Aprendi muito com a experiência, as discussões e os problemas do Brasil. Sob muitos aspectos, o parâmetro francês é semelhante ao brasileiro. Mas o Parâmetro Curricular Nacional (PCN) do Brasil tem um defeito: é muito complexo. Parece ter sido formulado para o pesquisador universitário e não para o professor da escola básica. Além de ser muito teórico, ele não diz como preparar uma aula nem dá ao professor indicações seguras sobre o que fazer." 1

Por "cultura" estamos nos referindo ao patrimônio literário, artístico, filosófico e científico acumulado pela humanidade ao longo dos séculos. Cabe ao dispositivo escolar transmitir o que é mais significativo deste legado aos alunos, para que estes possam tomar conhecimento, apreendê-lo e reelaborá-lo de outras formas. Sem memória, não há educação, nem vida pública digna deste nome.

No entanto, a meu ver, Hébrard não leva sua premissa até as últimas consequências, tendendo para um tom mais conciliatório entre a cultura escolar e o mundo de fora. De qualquer forma é uma posição lúcida e diferenciada num ambiente educacional que de certa forma defende uma indistinção entre a escola e o mundo exterior (a “vida”e/ou “realidade”, ou ainda "o mercado"). Algo que acaba redundando em mesmice, conformismo e mediocridade... reiteração do que crianças e jovens já conhecem. Limitando suas oportunidades de formação intelectual mais ampla.

Pouco original é sua defesa da escola em tempo integral, algo de que não estou muito convencido, pois tende a ser mais um clichê de palanques, seminários e congressos, sem grande efeito prático. A experiência escolar deve ser algo significativo para a formação cultural do aluno e o dispositivo escolar deve fornecer aos educandos o que eles não encontrariam em outros lugares. O tempo de permanência na instituição é secundário. Além do mais, o cotidiano infantil e adolescente já é demasiadamente colonizado por elementos pedagógicos e psicológicos, dos mais explícitos aos mais sutis (jogos, brinquedos, passeios ditos "educativos", cursos, programas de televisão e outras mídias etc) que acaba transformando o lúdico e a necessária separção entre a escola, família, casa, rua em uma "educação eterna/interminável" que poucos progressos parece realizar, além de um estresse infantil, crianças e adolescentes sobrecarregados de atividades, para as quais vêem pouco sentido (não obstante seja uma mercadoria bastante lucrativa para esta indústria que não se quer nomear de indústria). Todavia, em sociedades precárias como a nossa, passar um tempo mais prolongado na escola é o preço a ser pago pelos mais pobres por causa da omissão pública.

Hébrard também escreveu um artigo importantíssimo, lamentavelmente inédito em português, entitulado “Instruction ou éducation.” no periódico Ornicar? Bulletin Périodique du Champ Fréudien, n. 26-27 (Paris:Seuil, s/d). Trata-se da questão do otimismo pedagógico da escola republicana francesa do século XIX, modelo do qual nossa educação pública é um espelho distorcido. Suas raízes se encontram na Ilustração e na Revolução Francesa. A função desta escola seria de instruir, ou seja, ensinar a ler, escrever e a contar, além de proporcionar elementos para que a criança se formasse através da leitura. Esta escola seria orientada por uma comunidade esclarecida, segundo o ideário de enciclopedistas como Diderot, Condorcet e Helvétius. Depois veio o discurso da filantropia, como crítica ao programa iluminista e revolucionário, tido como insuficiente. A escola deveria também educar, ou melhor, moralizar e disciplinar os pobres, prevenindo males oriundos da miséria e ignorância, como o alcoolismo e outros vícios, a falta de higiene, a vadiagem e a promiscuidade. Desse modo a escola republicana francesa de Jules Ferry seria uma síntese tensa entre estes dois projetos: a instrução e a educação.

Jean Hébrard em português:

"A escolarização dos saberes elementares na época moderna."  In Teoria &Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 65-107, 1990

"Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: o espaço gráfico do caderno escolar ." In  Revista Brasileira de História da Educação janeiro Junho de 2001 n.1 pp115-141

"A lição e o exercício: algumas reflexões sobre a história das práticas escolares de leitura e escrita." In
Revista do Centro de Educação. Vol 32, n. 1, 2007

Discursos sobre a leitura 1880-1980. São Paulo: Ática, 1995 (com Anne-Marie Chartier).
As bibliotecas escolares: entre leitura escolar e leitura pública na França do II Império e da III República. Porto Alegre: Mercado de Letras, 2009

Nota:
1 "O Brasil precisa de escolas" http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/revista-ch-2004/210/ch-210-entrevista-jean-hebrard



domingo, 5 de junho de 2011

Ancient Rites - Fatherland




Fatherland, da banda belga de Folk/Black Metal Ancient Rites é um dos meus álbuns preferidos. Consistente do princípio ao fim. Dificilmente pulo uma faixa quando coloco no cdplayer. A exemplo de vários grupos do Underground europeu e de outros continentes, o Ancient Rites não possui muita regularidade em termos de lançamentos, sempre com constantes mudanças na formação. No momento, salvo engano, está inativo.

Com origens no Black Metal, o Ancient Rites, a partir do Fatherland, passou a introduzir também elementos do Folk, Viking e Thrash. Um uso sábio e preciso do piano, flauta, teclados e o recurso à melodias medievais e renascentistas como introdução em algumas faixas. Esses elementos, somadas ao instrumental vigoroso, dão um toque mítico e sobrenatural às canções.

A parte lírica da banda, como sugere seu próprio nome, gira em torno do imaginário mítico e religioso dos povos europeus, em especial celtas e escandinavos (sempre em contraposição ao cristianismo). São ritos antigos/arcaicos de poder, fúria, êxtase e evocação de tempos gloriosos. As letras tratam basicamente de acontecimentos históricos, como as crenças dos templários, as lutas dos guerreiros celtas contra o domínio romano, as tiranias que atravessaram a história do Velho Mundo e o amor à pátria, à terra natal.

Entretanto, não existem sinais de extremismo político, chauvinismo e ideias racistas em Fatherland. Embora à época de seu lançamento tenha recebido estas acusações. O líder da banda, Gunther Theys gosta de História, conhecer culturas diferentes e ama seu país, algo que pode provocar mal-entendidos na difícil contemporaneidade européia, tensionada entre conflitos entre imigrantes extrema direita, nacionalismos e universalismos, dilemas universalistas/integracionistas e propostas de separação e afirmações identitárias radicais.

De qualquer maneira estamos diante de um passado idealizado, imaginário. O real é adaptado às concepções do letrista que sonha com a liberdade e pureza pagã em colisão com a opressiva e asfixiante cristandade. Todavia, os processos históricos são mais complexos e nuançados. Porém não se trata de um estudo histórico e antropológico, mas de uma obra de arte com sua legalidade própria. E que cumpre muito bem seu papel.


Günther Theys - bass/vocals.
Jan Yrlund and Erik Sprooten - guitars,
Walter van Cortemberg - drums,
Oliver Phillips - keyboards






Mother Europe

Oh remember the proud Hellenic civilisation
The cradle of Europe where it all began
Or the Portuguese and Spanish Armada
Overwhelming Thy power, a tribute to the south

Bruges, Antwerp, Ghent forever in my heart
Representing medieval Flemish pride
Brave Teutonic, French and English knights
Thy shining armour now long vanished
Thy glory, however, forever remains
Praised be the Scandinavian hordes
Once the nightmare of the Christian world

I talk of not of mercy
I talk not of fear
The hopeless warriors of a Willing Doom

Children of Italia
In ancient times "Roma Caput Mundi"
De Verenigde Nederlanden, parel van het noorden
Belgium and The Netherlands stood as one

Mother Europe born from your womb
Mother Europe on Your soil shall be my tomb

I talk of not of mercy
I talk not of fear
The hopeless warriors of a Willing Doom
Oh what that gallant spirit shall resume
Leap from Europe's bank and call Thee from the tomb

(Hail to the sons of eastern Europe
the Slavonian soul never fades)
Blessed are Scotland, Ireland and Bretagne
Where the Celtic dream still lives on

Shall be my tomb!

Mãe Europa

Ah, lembro da soberba civilização helênica
O berço da Europa, onde tudo começou
Oh Armada Portuguesa e Espanhola
Esmagador Teu poder, um tributo ao sul

Bruges, Antuérpia, Ghent sempre em meu coração
Representando o orgulho medieval flamengo
Admiráveis cavaleiros Teutônicos, Franceses e Ingleses
Tua armadura brilhante há muito desaparecida
Tua glória, no entanto, permanece para sempre
Louvado seja as hordas escandinavas
Outrora o pesadelo do mundo cristão

Eu não falo de misericórdia
Eu não falo de medo
Os guerreiros sem esperança de um Doom Disposto

Filhos da Itália
Em tempos antigos "Roma Caput Mundi"
De Verenigde Nederlanden, Noorden van het parel
Bélgica e Holanda manteve-se como um

Mãe Europa nascido de seu ventre
Mãe Europa seu solo será meu túmulo
Eu não falo de misericórdia
Eu não falo de medo
Os guerreiros sem esperança de um Doom Disposto
Oh, o que o espírito galante será retomada
Salto do banco da Europa e Ti chamada do túmulo

(Salve os filhos da Europa de Leste;
a alma eslava nunca se desvanece)
Bem-aventuradas são a Irlanda, Escócia e Bretanha
Onde o sonho celta ainda vive.

Será meu túmulo!



Download do álbum Fatherland




sábado, 4 de junho de 2011

Poemas de Georg Trakl (1887-1914) com ilustrações de Grzegorz Kmin.



HUMANIDADE

Humanidade posta ante abismos de chama,
Um rufo de tambores, frontes de guerreiros tenebrosos,
Passos pela névoa de sangue; negro ferro exclama;
Desespero, noite em cérebros pesarosos;
Aqui a sombra de Eva, caça e rubra dinheirama;
Nuvens que a luz atravessa, vespertina refeição.
Em pão e vinho deve um doce silêncio residir.
E aqueles lá reunidos, doze são.
À noite sob ramos de oliveira gritam ao dormir;
São Tomé mergulha na ferida a mão.



NASCIMENTO

Montanhas: negror, neblina e neve.
Vermelha, a caça desce a floresta;
Oh, os olhares de musgo da presa.
Silêncio da mãe; sob pinheiros negros
Abrem-se as mãos dormentes
Quando, vencida, aparece a fria lua.
Oh, o nascimento do Homem. Noturna murmura
A água azul no fundo da rocha;
O anjo decaído olha em suspiros sua imagem,
E pálido corpo desperta em câmara úmida.
Duas luas
Iluminam os olhos da anciã pétrea.
Dor, grito que dá à luz. Com asa negra
A noite toca a têmpora do menino,
Neve que desce de nuvem purpúrea.



AOS EMUDECIDOS

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.
A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.
Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.



SEBASTIÃO NO SONHO
Para Adolf Loos

A mãe teve a criança sob a lua branca,
À sombra da nogueira, do sabugueiro secular,
Embriagada pela seiva da papoula, do lamento do melro; .
E silencioso
Sobre elas inclinava-se piedoso um rosto barbado,
Discreto, na escuridão da janela; e velharias
Dos antepassados
Jaziam podres. arnor e fantasia outonal.
Escuro o dia do ano, triste infância,
Quando o rapaz desceu às águas frias, peixes prateados,
Quietude e semblante;
Quando petrificado jogou-se aos corcéis em disparada,
E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele.
Ou quando pela mão fria da mãe
À tardinha passava pelo outonal cemitério de São Pedro;
Um frágil cadàver jazia inerte no escuro da câmara
E erguia sobre este as pálpebras geladas
Mas ele era um pequeno pássaro em galhos nus,
O sino ao longo do novembro da noite,
O silêncio do pai, dorrnindo ao descer a espiral crepuscular.
Paz da alma. Noite de invemo solitário,
As escuras sombras dos pastores no velho lago;
Criança na cabana de palha; quão discreta
Baixava o rosto em febre negra.

Noite sagrada.
Ou quando pela bruta mão do pai
Subi em silêncio o sinistro Monte Calvário
E em crepusculares nichos dos rochedos
A figura azul do Homem passava pela sua lenda,
E da ferida sob o coração corria o sangue purpúreo.
Oh, com que leveza erguia-se a cruz na alma sombria.
Amor; quando em recantos escuros derretia a neve,
Uma brisa azul aninhava-se alegre no velho sabugueiro,
Na abóbada de sombras da nogueira;
E à criança aparecia devagar um anjo rosado. .
Alegria quando em quartos frios soava uma sonata noturna
Nas vigas de madeira marrom '
Saía da crisálida prateada.
Oh, a proximidade da morte! Em muro de pedra
Inclinava-se uma cabeça amarela, a criança muda,
Quando naquele mês de março caía a lua.
Róseo sino de Páscoa na abóbada tumular da noite
E as vozes prateadas das estrelas
Fizeram descer da fronte do adormecido uma sombria loucura
[em calafrios.
Oh, tão silencioso um passeio pelo rio azul abaixo
Lembrandoo esquecido, quando nos galhos verdes
O melro chamava ao ocaso um desconhecido.
Ou quando pela magra mão do ancião
Passava à noite ante o muro em ruínas da cidade
E aquele de casaco negro levava uma criança rosada,
E à sombra da nogueira aparecia o espírito do mal.
Tatear os verdes degraus do verão. Oh, tão silenciosa
Ruína do jardim no silêncio marrom do outono,
Odor e melancolia do velho sabugueiro,
Quando na sombra de São Sebastião expirava a voz prateada do anjo.


AMÉM


Decomposição deslizando pelo quarto podre;
Sombras no papel de parede amarelo; em escuros espelhos se
Curva a tristeza ebúrnea de nossas mãos.
Pérolas marrons correm pelos dedos falecidos.
No silêncio
Abrem-se azuis os olhos-papoula de um anjo.
Azul é também a tarde;
O momento de nossa morte, a sombra de Azrael,
Que escurece um jardinzinho marrom.



DE PROFUNDIS


Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom;ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer
Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.
Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.
Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.
Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.
À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.



GRODEK


Ao entardecer, as florestas outonais
ecoam de armas mortíferas, e as planícies douradas
e os lagos azuis, por sobre os quais rola
um sol sombrio; a noite abraça
guerreiros moribundos, o lamento selvagem
das suas bocas destroçadas.
Mas, em silêncio, num fundo de salgueiros,
juntam-se nuvens rubras, onde um Deus irado habita;
e o sangue derramado, e frescura lunar;
todos os caminhos desembocam em negra podridão.
Sob dourada ramagem da noite e sob estrelas
a sombra da irmã vacila pelo bosque de silêncio,
para saudar os espíritos dos heróis, as cabeças
ensangüentadas;
e levemente, nos canaviais, soam as flautas sombrias do
outono.
Oh, dor orgulhosa! Vós, brônzeos altares,
Uma dor portentosa alimenta hoje a chama escaldante do
espírito,
Os filhos que ainda hão-de nascer.






Todas as traduções são de Cláudia Cavalcanti, do livro De Profundis e outros poemas, antologia do poeta publicada pela editora Iluminuras, com exceção de "Grodek", traduzido por João Barrento. As ilustrações são de Grzegorz Kmin, artista polonês contemporâneo.