sexta-feira, 17 de junho de 2011

Karl Philipp Moritz - Meditação sobre o esqueleto (1786)




É a ossatura do homem, despojada da carne, que nos apresenta a imagem da morte.
A natureza inteira parece ter empregado todas as suas forças para manter, durante um certo tempo, no âmbito deste crânio e desta estrutura óssea, a maravilhosa textura de pensamentos e sensações. Nisso ela como que excede a si própria, alcançando a culminação da sua beleza e perfeição, em um ser pensante, capaz de conceber a ideia e de alegrar-se por ela.
E agora a própria natureza destroçou este precioso espelho que, antes, reproduzia, de modo tão grandioso, sua formosura.
No lugar dos olhos que tantas vezes retratavam o semblante do sol, agora nos fitam duas aberturas ocas e horripilantes.
Os lábios, nos quais habitavam a alegria e o sorriso, desapareceram.
As fibras macias que recebiam as brandas impressões do mundo e as conduziam até a sede do pensar, já se desprenderam da dura matéria da ossatura, enquanto esta resiste, durante algum tempo, à destruição total, mostrando ainda nesta destruição resquícios da dignidade que reside no andar e na posição ereta do homem, igual às ruínas de um templo desmoronado que continuam inspirando admiração e respeito.
Aqui teríamos o ponto final da criação do homem?
Com esta triste metamorfose tudo estaria terminado?
A natureza, geralmente tão econômica, teria feito tantos esforços só para ter uma destruição mais imponente ainda?
Ela teria engendrado em cada indivíduo uma nova criação, apenas para destruí-la cada vez de novo?
Se fosse assim, os esqueletos humanos e animais seriam a última e permanente finalidade da criação perpétua da natureza. Apenas para acumular um número cada vez maior de esqueletos, ela faria nascer milhões de seres, todos destinados a serem devorados pela goela da tumba?
Será que a estrutura óssea dura mais que o homem pensante, a obra mestra da natureza?
O esqueleto faz surgir, como muralhas, as divisões mais radicais que existem no âmbito dos nossos pensamentos e ideias:

VIDA e MORTE

se defrontam num contraste medonho.
No esqueleto temos os escombros de um mundo sujeito à destruição.

INÍCIO e FIM

da existência,

ambos para nós estão igualmente envoltos em trevas.
Aqui, o nosso pensamento chega, de dois lados, ao seu ponto final.
Aqui o horizonte declina até o solo, impedindo a nossa visão.
Ao contemplarmos o esqueleto, tudo esvanece: torres, cidades, desejos, esperanças, ciências, artes, tudo desaparece na escuridão noturna, submerge no caos primitivo das coisas.
Perdemos os nossos pensamentos, ao imaginarmos-nos no lugar desta estrutura óssea.
Nosso espanto cresce sem cessar – não vemos possibilidade alguma para uma tal transformação do nosso ser.
Essa transformação radical nos parece em si, uma contradição.
Estamos inclinados a crer, que é apenas o envólucro do nosso ser íntimo, e não este ser que foi assim transformado.

HOMEM PENSANTE – ESQUELETO:

é inconcebível a transformação de um para o outro!
O que já chegou a pensar, nunca poderá ser transformado desta maneira.
Assim como da destruição exsurge a vida nova, a contemplação meditativa do esqueleto engendra, na alma, um pensamento sublime, um conceito novo que, de vez, afasta os terrores da morte.
O meu Eu pensante é tão diferente daquilo que vejo no esqueleto, que nunca se poderá trenasformar nele.
Aqui vejo um conjunto de matéria corpórea, rígida e dura, que se apresenta ao tato como se fosse madeira ou pedra; esta estrutura material foi removida do âmago do meu corpo e agora está diante de mim, como objeto da minha contemplação.
E estes pensamentos que vivem dentro de mim, isto é, no meu ato de contemplar e observar – como são infinitamente diferentes do objeto que está diante de mim!
Necessariamente, devo dar àquilo que, dentro de mim, está observando e contemplando um outro nome do que aquele que dou a esta materia corpórea tão rígida e dura.
Devo dar um nome cujo significado abranja: vida e movimento, poder de pensar e agir.
Sinto-me impelido a traçar, no âmbito das minhas ideias, uma linha divisória entre:

CORPO e ESPÍRITO

Nas trevas da meia-noite a aurora principia a brilhar; da destruição do mundo corpóreo surge:

O MUNDO DOS ESPÍRITOS

A contemplação meditativa da morte nos permite lançar um olhar para além da cortina que encobre, para o nosso olhar, o mistério daquilo que se encontra do outro lado da tumba.
Outra vez se amplia o nosso horizonte, e se descerram, ao longe, serenas perspectivas.
Será verdade, então, que a natureza edifica apenas para depois poder destruir?
Muito pelo contrário: ela destrói para depois edificar. Na edificação, ou seja, na formação, consiste a finalidade da natureza; a destruição é apenas seu meio.
Em cada outono as folhas tombam do jovem tronco da árvore, mas outras brotam, já na próxima primavera; o tronco, entrementes, cresce de ano em ano, cada vez mais sólido e vigoroso.
Seres humanos nascem e morrem; o pó em que se transformam se mistura ao pó de milhões que já morreram; mas em meio da destruição surge o Mundo dos Espíritos, lutando vitoriosamente para se arrebatar da esfera da morte e devastação, e crescendo de geração em geração.
O perpétuo aperfeiçoamento do Mundo dos Espíritos é o que chamamos de progresso da natureza. Sem este progresso os ciclos da evolução não teriam finalidade alguma e seriam apenas um jogo desprovido de intenções.
O que adianta a roda eternamente girar em torno de si, sem que o veículo avance?
O próprio globo terrestre possui um movimento duplo: perpetuamente gira em torno do seu eixo.
O eterno ciclo da natureza consiste em:

VIDA e MORTE,
JUVENTUDE e VELHICE,
FORMAÇÃO e DESTRUIÇÃO.

A isto corresponde na natureza a rotação em torno do eixo, ou ainda, a alternância de dia e noite.
Assim como a jovem aurora, com a juventude de um ser humano ascende um mundo jovem que, no fim do percurso, retorna à escuridão da tumba.
Em que consiste, então, o progresso deste ciclo eterno, dessa rotação em torno de um eixo? Aonde encontramos nisto o progresso, necessário para o universo não ser um mero jogo sem finalidade?
É isto: o perpétuo crescimento e aperfeiçoamento do Mundo dos Espíritos que se dá cada vez que um ciclo está consumado.
Aqui se abre o panorama de um campo imenso, a perspectiva consoladora de uma trama infinita, repleta tanto de diversidade como de unidade; na sua contemplação o espírito humano pode deter-se sem jamais se cansar.
Tradução: Gusmão de Oliveira Manzur


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