quarta-feira, 22 de junho de 2011

Paulo, o Simples, trecho da "História Lausíaca, de Paládio.


O termo Padres do Deserto compreende um grupo de eremitas, ascetas, monges e monjas que se estabeleceram no deserto do Egito a partir do século III d.C., consolidando-se no século seguinte. Viviam de forma solítária1 em celas (nome dado aos recintos que consistiam em grutas escavadas em rochas ou mesmo buracos na areia no deserto ou alguma forma de construção que lhes possibilitasse o necessário isolamento)em torno de uma igreja. Desse modo, em várias partes do deserto egípcio, surgiram as primeiras comunidades monásticas, sob a orientação de um pai espiritual. Paulo de Tebas é o primeiro eremita conhecido, que estabeleceu uma tradição do ascetismo e contemplação monástica, enquanto Pacômio de Tebaida é considerado o fundador do cenobitismo, do monasticismo primitivo. Entretanto, cabe a Santo Antão do Egito o estabelecimento de um protótipo de santidade reclusa e heroísmo religioso, notadamente para a Igreja Oriental. Influência que se intensificou com a sua biografia, escrita por Atanásio de Alexandria, intitulada Vita Antonii .

Todavia, cabe salientar que o fenômeno monástico ocorreu em diversas partes do mundo mediterrâneo, notadamente na Mesopotâmia, Síria e Palestina. De qualquer forma, o Egito permaneceu como um ponto de referência para os outros monaquismos cristãos. Assim, as biografias dos monges siríacos sempre mencionam uma “viagem-peregrinação” ao Egito para uma busca espiritual mais intensa.

A vida austera dos Padres do Deserto atraiu um grande número de seguidores devido à simplicidade, disciplina individualista, severa e concentrada busca pela salvação e união com Deus. Eram muito solicitados para direção espiritual e conselho aos seus discípulos.

O texto que transcrevo aqui é um pequeno trecho da História Lausíaca, obra escrita por Paládio de Helenópolis. Nascido na Galácia (Ásia Menor) em 363 ou 364, Paládio tornou-se monge em 386. Tendo vivido entre os ascetas da Palestina e do Egito por cerca de 14 anos, Desse modo, manteve contato direto com expoentes do movimento monástico à época, como Dídimo, o Cego, Evágrio Pôntico e Melânia. Por volta de 400, é consagrado bispo de Helenópolis, na Bitínia. A data de sua morte é incerta.

Entre 419-420, Paládio escreve a História Lausíaca, obra que vai dedicada a Lauso, alto funcionário da corte de Teodósio II. Tributária,entre outros documentos, da História dos monges do Egito, de autoria desconhecida e reelaborada por Rufino entre 404 e 410 e enriquecida com as memórias de viagem do próprio Paládio pelo Egito e Palestina. Em setenta e um capítulos, narra as ações piedosas de um conjunto de monges do Egito e da Síria-Palestina. A obra tornou-se muito influente nos círculos monásticos. O fragmento que selecionei reporta à decisão de Paulo consagrar-se monge, indo ao encontro de Antão, que no início considera-o inapto para esta função, tentando assim, demovê-lo da ideia, porém, a persistência e fé intensa de Paulo convence o experiente eremita. É um ótimo documento sobre os habitus religioso, social e cultural de um grupo específico da Antiguidade Tardia. Não esquecer que o escrito possui certo grau de fabulação e idealização de personagens e situaçãoes, típico da literatura hagiográfica.


22. Paulo, o simples.

1)Ainda de Crônio, como também de Hierax e de muitos outros, é que soube o que direi a respeito de Paulo, este agricultor extremamente simples e sem malícia. Era ele casado com uma mulher muito bela,mas depravada, que, durante muito tempo lhe escondeu suas faltas. Um dia, em que ele voltava de improviso do campo, encontrou-a com um outro, quando iam pecar. Isso aconteceu para que Paulo fosse conduzido pela graça ao que lhe seria vantajoso. Pondo-se docemente a rir, ele os interpela: "Bem, bem! Em verdade isso não me perturba. Por Jesus, eu não a tomo mais. Guarda-a com seus filhos. Quanto a mim, retiro-me e me faço monge".

2) Sem nada dizer a ninguém,ele se apressa em realizar o seu intento. Vai procurar Antão e bate a sua porta. Este sai e lhe pergunta: "Que queres?" - "Quero tornar-me monge". "Tens 60 anos", responde Antão, "não podes tornar-te monge aqui. Vai à cidade, trabalha e vive, como um operário, dando graças a Deus, porque não és capaz de sustentar as provações do deserto." O velho replicou: "Farei tudo o que ordenares".

3)Antão replicou: "Já te disse que és velho e não és mais capaz. Se verdadeiramente queres ser monge, vai a uma comunidade de irmãos mais numerosos, que poderão suportar tua fraqueza. Eu habito sozinho, como de 5 em 5 dias, sem me saciar".Com essas e outras palavras semelhantes, procurava afastar Paulo. Como não o atendia, Antão fechou a porta e não saiu durante 3 dias nem mesmo para as suas necessidades. Mas Paulo não se foi embora.

4)No 4o.dia, constrangido por suas necessidades, Antão saiu e disse novamente a Paulo: "Vai-te daqui, velho!Por que queres forçar-me? Não podes ficar aqui". "Para mim é impossível morrer em outro lugar, a não ser aqui", respondeu Paulo. Antão observou, então, que o homem não trazia alimento algum consigo, nem pão nem água. E já se haviam passado 4 dias em que ele jejuava! Temendo que ele morresse e não desejando responder por isso, Antão o aceitou. E adotou, então, um regime de vida como nunca tivera, nem mesmo na sua juventude.

5) Após ter feito molhar folhas de palmeira, ordenou a Paulo: "Toma-as e trança-as como eu". O velho trançou 15 braças, até a hora nona, com muito esforço. Antão examinou o trabalho e não ficou satisfeito. "Está mal feito", disse ele. "Desmancha e torna a tecer desde o começo". Embora Paulo estivesse em jejum e estenuado, Antão lhe impôs esta tarefa desagradável para que o velho perdesse a paciência e se fosse dali. Mas ele desfez e trançou de novo as mesmas folhas que, amassadas, se haviam tornardo mais difíceis de serem trabalhadas. Não o vendo queixar-se nem desencorajar-se nem indignar-se, Antão comoveu-se.

6) Como o sol havia baixado, ele lhe perguntou: "Queres que comamos um pedaço de pão?" - "Como quiseres, abba" respondeu Paulo. De novo Antão comoveu-se por ver que o velho não acorrera precipitadamente ao anúncio de alimento, mas lhe deixara a escolha. Ele pôs a mesa e trouxe pães. Eram pedaços de 6 onças. Ele umedeceu um para si - porque estavam secos - e 3 para Paulo. Depois entoou o salmo que sabia de cor e após têlo-lo salmodiado 12 vezes, repetiu 12 vezes uma oração, para provar Paulo.

7)Mas esse uniu-se com fervor À prece. Creio que ele teria ainda preferido apascentar escorpiões a viver com uma mulher adúltera. Após 12 orações, eles se assentaram para comer. A noite adiantava-se. Antão comeu um pedaço de pão e não tomou outro. O velho comia mais lentamente. Antão, depois que ele terminou, lhe disse: "Toma outro pedaço, paizinho!" "Se comeres, também comerei, mas se não comeres, também não o farei". Antão respondeu: "Isso me basta, porque sou monge".

8) "Isso me basta igualmente, porque quero tornar-me monge", respondeu Paulo. Antão levantou-se, recitou 12 orações e salmodiou 12 salmos. Depois de ter dormido um pouco um primeiro sono, ele se levantou de novo, no meio da noite, para salmodiar até o amanhecer. Vendo que o velho havia seguido com ardor o seu modo de proceder, disse-lhe: "Se podes fazer isso todos os dias, fica comigo!" Paulo respondeu: "Se houver outra coisa mais, nada sei dela. Mas o que vi, faço-o sem dificuldade". No dia seguinte, Antão lhe disse: "Tu te tornaste monge".

9) No fim de alguns meses, Antão compreendeu que Paulo era uma alma perfeita, de inteira simplicidade e guiada pela graça. Construi-lhe uma cela a 3 ou 4 milhas, mais ou menos, da sua, e lhe disse: "Agora és monge. Deves ficar só para seres provado pelos demônios". Depois de ter morado um ano nessa cela, Paulo mereceu receber o dom de expulsar demônios e curar as doenças. Um dia, levaram a Antão um possesso horrível: era possesso de um dos espíritos mais fortes e amaldiçoava até o céu.

10) Antão o examinou e disse aos que o haviam trazido: "Não é trabalho para mim, porque não recebi o poder de expulsar esse gênero de demônios. Isso compete ao Paulo".
Ele os levou a Paulo. "Abba Paulo", disse ele "expulsa o demônio deste homem , para que ele volte curado!" "Mas por que não o expulsas?" "Não tenho tempo, tenho outro trabalho". Antão se despediu e voltou para outra cela.

11) O velho levantou-se recitou uma prece com fervor e depois ordenou ao demônio: "Abba Antão diz: Sai deste homem!" Mas o demônio se põs a blasfemar e gritar: "Não sairei, velho mau!"
Paulo tomou o seu manto e com ele batia nas costas do possesso: "Sai, disse o abbá Antão!" O demônio o injuriou ainda mais, a ele e a Antão. Finalmente, Paulo lhe disse: "Sai ou contarei ao Cristo. Por Jesus, se não sais neste instante, vou dizer a Cristo e te acontecerá uma desgraça!"

12) Mas o demônio gritava, blasfemando: "Não sairei!" Paulo, então, indignado com o demônio, saiu de sua cela, em pleno meio-dia. Ora, o calor do Egito é como a fornalha da Babilônia. Ele subiu a um rochedo da montanha e rezou assim: "Tu, Jesus Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos, sabes que não descerei do rochedo, não comerei nem beberei, ainda que morra, se não expulsares o demônio deste homem e o libertares!" Antes mesmo que ele tivesse acabado de falar, o demônio soltou um grito: "Violência! Estou expulso!A simplicidade de Paulo me expulsa! Para onde irei?"
O demônio saiu e se transformou num dragão de 70 côvados, que se arrastou até o Mar Vermelho. Assim se cumpriu a palavra: "O justo proclamará uma fé que se prova por atos" (Pr 12,17)2.
Tal foi o milagre de Paulo, apelidado o Simples, por toda a comunidade dos irmãos.

Fonte: Paládio Os monges do Deserto,História Lausíaca. Tradução do francês "Les Moines du désert, Histoire lausiaque", Coleção "Les Pères dans foi", Desclée de Brower, 1981, pelas Monjas Beneditinas do Mosteiro de Nossa Senhora da Paz, de Itapecerica da Serra, São Paulo, CIMBRA,1986
pp. 68-73

Notas:

1. O sentido original de "monge" é do que vive em solidão. Quando o monaquismo se estruturou para maior comunidade de vida, a palavra foi ampliando seu sentido. Denota qualquer monge, viva solitário ou em mosteiro.
2. Não encontrei referência mais detalhada desta citação.




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